O martelo e o prego

Refletindo sobre a resistência dos profissionais de saúde em ceder às evidências de que as diretrizes nutricionais estão equivocadas, me ocorreu que um dos grande problemas é a fixação em doenças cardiovasculares e colesterol. Ou seja, preocupação exclusiva com um desfecho em detrimento dos demais.

Suponhamos, para fins de argumentação, que uma dieta de baixo carboidrato, aplicada a toda uma população, efetivamente aumentasse o colesterol total e o LDL desta população, e suponhamos que isso de fato aumentasse o risco cardiovascular. Segundo a sabedoria convencional vigente (mas não segundo as evidências científicas), isto seria uma suposição razoável. Agora, suponhamos que esta mesma dieta, aplicada a toda uma população, reduzisse a incidência de obesidade, síndrome metabólica e câncer.

1) Sabemos que a maioria das pessoas que infartam têm colesterol normal ou abaixo do normal;

2) Sabemos que os maiores determinantes de doenças crônico-degenerativas nos dias de hoje são a obesidade, a síndrome metabólica e o diabetes;

3) Aceitamos, novamente para fins de argumentação, que uma dieta de baixo carboidrato aumente o risco cardiovascular através do mecanismo de elevação do LDL.

4) Aceitamos, baseados na preponderância da evidência científica, que uma dieta de baixo carboidrato produza desfechos favoráveis no que diz repeito a síndrome metabólica, obesidade e diabetes.

Se aceitarmos todos estes postulados, teríamos que concluir que não é possível contemplar todos eles ao mesmo tempo. Em outras palavras, teríamos de escolher entre duas situações: 1) uma população que consome menos carboidratos e mais gordura, com baixos índices de síndrome metabólica, obesidade e diabetes, mas com colesterol mais elevado ou 2) uma população que consome menos gordura e mais carboidratos, com colesterol mais baixo, mas com proporções epidêmicas de obesidade, síndrome metabólica e diabetes (a nossa realidade).

O que nos coloca na seguinte situação: MESMO que os postulados da teoria lipídica da doença cardiovascular estivessem corretos, ainda assim seria melhor comer menos carboidratos e mais gordura. Por quê? Porque todos morreremos de alguma coisa. E há OUTRAS causas de morte além do infarto agudo do miocárdio, e há outras coisas que causam infarto além de colesterol – como diabetes, síndrome metabólica e obesidade.

Há uma frase, cunhada pelo psicólogo americano Abraham Maslow, que se aplica muito bem para problemas como esse: “Se tudo que você tem é um martelo, tudo se parece com um prego”. Os médicos em geral e os cardiologistas em particular parecem ter olhos apenas para o LDL. Quanto mais baixo o LDL, melhor. Custe o que custar. Parece que, em algum momento, no meio do caminho, o objetivo disso tudo (prevenir a morte, a morbidade e melhorar a qualidade de vida) perdeu-se – manter o LDL baixo virou um objetivo em si mesmo, tautológico, auto-evidente. 

A foto abaixo é real (veja o relato aqui), e o resultado foi obtido com dieta de baixo carboidrato (conheça outros casos parecidos aqui, aqui e aqui). Os resultados de exames e os dados de saúde foram inventados por mim para ilustrar a discussão que se segue:

Imagine-se que a paciente acima fosse diabética, em uso de metformina e insulina, com 127 Kg e 1,75 de altura, hipertensa. Seu colesterol total era de 180 e seu LDL era de 88. Agora, imagine que esta paciente fez uma dieta de baixo carboidrato, e perdeu 45 Kg, deixou de usar insulina na primeira semana de sua dieta e deixou de usar metformina após 60 dias; sua glicemia está normal, sua pressão está normal, e ela sente-se suficientemente bem a ponto de praticar esportes 3x por semana. Mas seu colesterol total agora está em 220, e seu LDL em 152. Seu risco de morrer era maior ANTES ou DEPOIS de sua mudança de estilo de vida? Obviamente antes! Quanto à sua qualidade de vida e auto-estima, então, nem se fala. Mas, se sua única ferramente é o martelo, tudo é prego. Você só enxerga colesterol. Há incontáveis relatos, aqui mesmo entre os leitores deste blog, de pessoas que tiveram exatamente essa trajetória, mas que foram admoestados por parentes, amigos e – pior de tudo – por seus médicos, abandonaram a dieta, e estão novamente obesos, diabéticos e hipertensos, mas seu LDL baixou – ufa, que alívio.

Exemplo:

                                         ANTES                     DEPOIS

Peso …………………………… 127Kg …………………. 82Kg (melhor)

Glicose ………………………. 195 ……………………… 87 (melhor)

Hb Glicada …………………. 14,1 …………………….. 5,4 (melhor)

Triglicerídeos ……………… 285 ……………………… 63 (melhor)

Colesterol total …………… 180 ……………………… 220 (“pior”)*

HDL ………………………….. 35 ………………………. 55 (melhor)

LDL ………………………….. 88 ………………………. 152 (“pior”)

PCR ………………………….. 1,8 ……………………… 0,1 (melhor)

Uso de insulina …………… Sim ……………………… Não (melhor)

Uso de metformina ……..  Sim ……………………… Não (melhor)

Hipertenso …………………. Sim ……………………… Não (melhor)

Atividade …………………… Sedentário …………… Ativo (melhor)

Muito melhor depois da dieta do que antes, certo? Óbvio! Mas quando sua única ferramenta é o martelo, tudo é prego. Sob essa ótica, o quadro acima aparece assim:

Peso …………………………… 127Kg …………………. 82Kg

Glicose ………………………. 195 ……………………… 87

Hb Glicada …………………. 14,1 …………………….. 5,4

Triglicerídeos ……………… 285 ……………………… 63

Colesterol total …………… 180 ……………………… 220

HDL ………………………….. 35 ………………………. 55

LDL ………………………….. 88 ………………………. 152

PCR ………………………….. 1,8 ……………………… 0,1

Uso de insulina …………… Sim ……………………… Não

Uso de metformina ……..  Sim ……………………… Não

Hipertenso …………………. Sim ……………………… Não

Atividade …………………… Sedentário …………… Ativo

Em termos populacionais, o mesmo se aplica. Na postagem sobre as ilhas de Vanuatu e Kiribati, o Dr. Dr. Grant Schofield observou que em Vanuatu as pessoas têm um estilo de vida tradicional, com uma dieta de caçadores/coletores, pobre em carboidratos processados e mais rica em gorduras naturais, através de alimentos oriundos da própria ilha. Em Kiribati, a população consumia uma dieta baseada em carboidratos processados e importados do “ocidente”.

  • Vanuatu: a maior parte da população saudável e feliz, vivendo da forma que sempre viveram, em vilarejos isolados com mínima influência do mundo exterior. 
  • Kiribati: virtualmente todos os adultos tinham sobrepeso ou eram obesos. As crianças eram mal nutridas. O diabetes estava tão fora de controle que o hospital local amputava até 20 pernas por semana.

Se, para fins de argumentação, acreditarmos que a dieta mais rica em carboidratos em mais pobre em gordura de Kiribati possa reduzir os níveis populacionais de colesterol, significa que Kiribati está no caminho certo? Afinal, eles estão MUITO mais próximos das diretrizes nutricionais vigentes, não é mesmo? Bem, se seu critério de saúde é LDL, sua conclusão seria a de que Kiribati está melhor do que Vanuatu. Se sua única ferramenta é o martelo, tudo é prego.

Em 2009, foi publicado um estudo que demonstrou que mais da metade dos pacientes internados nos EUA por ataques cardíacos tinham LDL abaixo de 100. Na verdade, está cada vez mais claro que os principais determinantes de risco cardiovascular são, no mundo de hoje, a obesidade, a síndrome metabólica e o diabetes.

Junte-se a isso o fato de que nunca foi demonstrado que a dieta recomendada pelas diretrizes (low fat) reduza a mortalidade cardiovascular; e junte-se a isso o fato de que foi demonstrado que dietas de baixo carboidrato reduzem os marcadores de risco cardiovascular e são mais eficazes na redução da obesidade, síndrome metabólica e diabetes (veja também aqui). E teremos então, a seguinte conclusão:

1) Por medo do colesterol total e do LDL, contra-indica-se uma dieta de baixo carboidrato (e recomenda-se uma dieta comprovadamente ineficaz em seu lugar);

2) Em virtude disso, as pessoas passam a desenvolver obesidade, síndrome metabólica e diabetes;

3) Mesmo que fosse verdade que uma dieta mais rica em gordura e mais pobre em carboidratos aumentasse o risco cardiovascular (e não é), ainda assim a combinação de obesidade, diabetes e síndrome metabólica mataria mais pessoas – como é óbvio nos dias em que vivemos.

Em outras palavras – MESMO que uma dieta com mais gordura aumentasse o colesterol; e MESMO que um colesterol mais elevado aumentasse a mortalidade cardiovascular; ainda assim, a dieta recomendada deveria ser uma dieta de baixo carboidrato, pois há outras causas de morte além do coração, e mesmo o coração adoece por outras causas além do colesterol. Nos tempos de hoje, em que 75% dos pacientes que morrem do coração têm níveis de colesterol considerados adequados, está na hora dos profissionais de saúde reconsiderarem sua resistência histórica às dietas de baixo carboidrato (como fizeram as autoridades de saúde suecas). Temos que diversificar nossas ferramentas; afinal, o mundo não é feito apenas de pregos.

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