Flora intestinal 3 – Amido Resistente – parte 1, os fatos

PARTE 1 – a ciência e os fatos (se quiser saber COMO fazer, vá para a parte 2)

Se ainda não leu, leia antes as postagens sobre FLORA INTESTINAL 1 e 2 (aqui e aqui)

Na “blogosfera páleo” internacional, não se fala de outra coisa. Mark Sisson anda escrevendo sobre isso; Robb Wolf anda relatando suas experiências com isso; Chris Kresser tem falado sobre isso nos podcasts, e aborda o assunto em seu novo livro; Jimmy Moore também escreveu sobre o assunto. Finalmente, Angelo Coppola, uma das pessoas que mais admiro, não tem falado de outra coisa.

Estou falando de amido resistente. AMIDO? O nome deste blog não começa com “low carb”? OK, vamos começar do início.

O assunto não é novo, mas confesso que estava fora do meu radar até o ano passado. E duas pessoas merecem todo o crédito por ter trazido este assunto à luz do dia: Richard Nikoley e Tim Steele. Outros já haviam escrito sobre isso, mas essa dupla fez aquilo que é capaz de chamar a minha atenção: citou uma penca de estudos científicos originais. Contra fatos não há argumentos.

Richard Nikoley é autor de um (controverso) blog chamado freetheanimal.com. Deve haver umas 50 postagens sobre amido resistente por lá, e uma extensa revisão bibliográfica (ver aqui e aqui). Não há como ser mais completo do que isso. De modo que deixo esses links originais para quem desejar ir a fundo, e vou tentar simplificar o tema nos parágrafos que se seguem.

1) Amido resistente é um amido que resiste à digestão. Não quer dizer que é um pouco mais difícil de digerir. Nem que é absorvido mais lentamente. Nem que é um “carboidrato complexo”. Quer dizer que RESISTE à digestão. Simplesmente não é digerido, seu impacto na glicemia é zero. Não conta como carboidrato para todos os efeitos. Seu comportamento é o mesmo de uma fibra alimentar.

2) Amido resistente não é o mesmo que “amidos seguros” (“safe starches”). Amidos seguros é um conceito criado por Paul Jaminet, autor do excelente Perfect Health Diet, e significa amidos que não são tóxicos (exemplo de um amido tóxico é a farinha de trigo). Exemplo de um amido “seguro” seria a batata doce, ou o arroz branco. Amidos seguros não são tóxicos, mas elevam a glicose no sangue e elevam a insulina. Amido resistente NÃO eleva em NADA a insulina.

do blog freetheanimal.com (esse amido é RESISTENTE, idiota!)

3) Amido resistente (em sua forma pura) não afeta em NADA a glicemia. Como vocês sabem, amido nada mais é do que um polímero de glicose. Na sua forma mais comum (o amido dos grãos cereais, por exemplo), é uma forma altamente eficaz de elevar o açúcar no sangue (mais do que comer açúcar diretamente de um açucareiro). Mas o fato de ser feito de açúcar não quer dizer muita coisa. Madeira é feita de celulose. Celulose é um polímero de açúcar, da mesma forma que o amido. A diferença é a estrutura química desse polímero. Se você comer serragem (celulose), isso não irá afetar sua glicemia. Pense no amido resistente das mesma forma: amido em uma forma química que o torna não digerível.

4) O amido resistente não interfere com dietas cetogênicas. De acordo com os relatos de várias pessoas na blogosfera (inclusive a Patrícia Ayres, nossa colaboradora), o consumo de amido resistente puro não interfere de forma significativa com a cetose, nas pessoas que precisam ou desejam fazer uma dieta cetogênica. Mais uma prova de que realmente não é digerido, visto que só olhar para um quindim é capaz de retirar alguém do estado de cetose nutricional.

5) Amido resistente é facilmente digerível pelas bactérias do cólon. Embora nós não tenhamos enzimas capazes de digerir o amido resistente, as bactérias colônicas têm. O amido resistente funciona literalmente como uma “ração” para a flora intestinal.

6) O amido resistente alimenta seletivamente a flora intestinal saudável, anti-inflamatória e anti-obesogênica. Ao contrário do que acontece com os carboidratos densos acelulares (açúcar e farinha), que estimulam uma flora altamente inflamatória, indutora de síndrome metabólica e obesidade.

Há 4 tipos de amido resistente:

  • Tipo 1 – presente e sementes, grãos integrais e leguminosas, resiste à digestão por estar fisicamente protegido por paredes celulares fibrosas. Menos útil devido à toxicidade de suas fontes principais;
  • Tipo 2 – Encontrado em alguns alimentos tais como batata crua ou banana verde;
  • Tipo 3 – chamado amido retrógrado, forma-se quando o amido é aquecido e depois resfriado (acontece com batatas e arroz, por exemplo)
  • Tipo 4 – são amidos resistentes artificiais (industriais).

O tipo 2 é a principal fonte para suplementação.

-> Low carb versus flora intestinal

Como já comentamos na primeira postagem da série, uma dieta low carb é muito eficaz na reversão da síndrome metabólica ao remover os principais culpados – açúcar e farinha – da dieta. Porém, a remoção indiscriminada de quase todos os carboidratos deixa a flora intestinal à míngua. Como visto na segunda postagem sobre o assunto, o equilíbrio das populações bacterianas é essencial na manutenção de uma flora não-inflamatória e de um intestino menos permeável. Havendo uma flora intestinal inflamatória e um aumento da permeabilidade intestinal, haverá a passagem de moléculas presentes na parede externa dessas bactérias, chamadas “endotoxinas“, da luz intestinal para a corrente sanguínea, e a inflamação crônica resultante é capaz de induzir resistência insulina, fígado gorduroso e resistência à leptina INDEPENDENTEMENTE de quão low carb for a dieta. Pior ainda: na vigência de uma flora intestinal inflamatória, a gordura saturada facilita o “vazamento” dessas endotoxinas da luz intestinal para o sangue. A mesma gordura que não traz nenhum malefício na dieta de alguns, pode piorar as coisas na dieta de outros, na dependência exclusiva do estado da flora intestinal. Cada um de nós carrega 10 vezes mais bactérias do que células humanas, mas o balanço ecológico exato entre as 500 a 1000 espécies que habitam o nosso corpo é único para cada um de nós, uma espécie de impressão digital microbiológica. Possivelmente, isso explique em parte a grande variabilidade das respostas observadas em diferentes indivíduos quando submetidos à uma dieta low carb, desde completa e fácil adaptação até alguns desastres, com constipação severa e dislipidemia descontrolada (esta última frequentemente como resultado de inflamação crônica, por sua vez secundária a disbiose, “leaky gut” e endotoxemia).

Isso nos coloca em uma situação complexa.

1) A obesidade e síndrome metabólica estão associadas a uma flora intestinal inflamatória, cujo desequilíbrio foi gerado pelo consumo crônico de carboidratos refinados e comida processada em geral;

2) Por definição, esta população apresenta resistência à insulina e baixa flexibilidade metabólica;

3) Muitos dos alimentos ricos em pré-bióticos e em amido resistente são também ricos em açúcar (frutas) e em amido comum (raízes), provocando grandes elevações de glicemia e de insulina, o que impediria o seu consumo por esta população específica;

4) Uma dieta low carb é incrivelmente benéfica nestes casos ao eliminar boa parte da glicose da dieta, permitindo níveis mais baixos de insulina, o que ajuda a diminuir a resistência à insulina bem como facilita a perda de peso;

5) Contudo, como já dissemos, a eliminação quase total dos carboidratos frequentemente leva a um microbioma de perfil altamente inflamatório, o que nos leva novamente ao item 1 dessa lista.

Como sair desse ciclo vicioso?

Imagine que houvesse uma substância capaz de alimentar a flora intestinal. Não apenas isso, mas alimentar seletivamente as espécies associadas com baixa inflamação, normalidade metabólica e peso normal. Imagine ainda que essa substância não seja digerida em nem absorvida pelo ser humano, e tenha impacto zero sobre a glicemia e sobre a insulina. Por fim, imagine que seja barata, natural e fácil de se obter. Parece bom demais para ser verdade?

Como já disse, não vou dissecar toda a literatura sobre o assunto, visto que Richard Nikoley e Tim Steele já o fizeram aqui e aqui. Vou citar alguns dos estudos apenas para dar uma dimensão dos benefícios potenciais do Amido Resistente, bem como salientar que não se trata de pura especulação.

Robertson, M.D. et al., 2005. Insulin-sensitizing effects of dietary resistant starch and effects on skeletal muscle and adipose tissue metabolism.The American Journal of Clinical Nutrition, 82(3), pp.559–567. Available at: http://ajcn.nutrition.org/content/82/3/559 [Accessed March 1, 2014].

Neste estudo em humanos, a suplementação com 30g de amido resistente por dia reduziu a resistência à insulina e reduziu a resposta insulínica ao consumo de carboidratos (ou seja, menos insulina foi necessária para metabolizar a mesma quantidade de carbs).

Higgins, J.A. et al., 2004. Resistant starch consumption promotes lipid oxidation. Nutrition & Metabolism, 1(1), p.8. Available at:http://www.nutritionandmetabolism.com/content/1/1/8/abstract[Accessed March 1, 2014]. 

Neste estudo em humanos o amido resistente levou a um aumento de 23% na oxidação de gorduras após uma refeição. Em outras palavras, queimou-se mais gordura.

Nesta interessante tese de PhD, o autor demonstrou que o amido resistente fez com que ratas castradas perdessem gordura quando comparadas com o grupo controle, mesmo comendo mais calorias. O mecanismo parece envolver a produção de ácidos graxos de cadeia curta (butirato, propionato, acetato) pela flora intestinal, e essas substâncias por sua vez induzem a produção de outros mediadores que interferem na resistência à insulina (GLP-1) e no apetite (peptídeo YY).

Topping, D.L. & Clifton, P.M., 2001. Short-Chain Fatty Acids and Human Colonic Function: Roles of Resistant Starch and Nonstarch Polysaccharides.Physiological Reviews, 81(3), pp.1031–1064. Available at:http://physrev.physiology.org/content/81/3/1031[Accessed March 1, 2014].

Excelente revisão, explicando os mecanismos de ação do amido resistente:

1) O amido resistente passa intacto pelo intestino delgado até chegar ao cólon;

2) No cólon, é fermentado pela comunidade bacteriana, produzindo ácidos graxos de cadeia curta (AGCC – butirato, propionato e acetato), sendo o butirato mais importante;

3) A quantidade de butirato produzida é bem maior com amido resistente do que com qualquer outro tipo de fibra;

4) Os AGCC nutrem as células intestinais – enterócitos – aumentando a saúde destas células e reduzindo o risco de câncer.

Walker, A.W. et al., 2011. Dominant and diet-responsive groups of bacteria within the human colonic microbiotaThe ISME Journal, 5(2), pp.220–230. Available at:http://www.nature.com/ismej/journal/v5/n2/full/ismej2010118a.html[Accessed March 1, 2014].

Esse estudo ilustra o que eu disse mais acima: voluntários obesos foram submetidos a uma dieta com amido resistente, ou com fibras polissacarídeas (os pré-bióticos tradicionais) e a uma dieta low carb.

1) Low carb afetou negativamente a flora intestinal;

2) Pré-bióticos polissacarídeos não tiveram grande influência;

3) Apenas o amido resistente alterou significativamente a flora intestinal, e no sentido favorável;

4) A reposta variou muito de indivíduo para indivíduo.

Ok, isto é apenas uma minúscula amostra da literatura disponível – como já disse, não há porque eu repetir um trabalho exaustivo que já foi feito com maestria por outrem (aqui e aqui). Talvez mais fascinante sejam os resultados que algumas pessoas vêm relatando com seus experimentos n=1 (ou seja, auto-experimentação).

Alguns casos relatados:

1) Caso de diabetes tipo 2 de difícil controle (original descrito aqui): paciente que foi diagnosticada com DM tipo 2 com glicose de 680. Com very low carb (cetogênica), baixou até 140; mas depois de um tempo começou a piorar o controle da glicose, mesmo mantendo-se com dieta cetogênica (provavelmente pela deterioração da flora intestinal). Vinha acordando com valores na casa de 180. Começou a suplementar com Amido Resistente em novembro de 2013; agora em fevereiro, glicemia de jejum 95; 110 após comer um filé com bastante arroz (mostrando normalização da sensibilidade à insulina). Duas horas após, de volta a 90.

2) Steve Cooksey, do blog www.diabetes-warrior.net, um diabético tipo 2 que entrou em remissão com low carb, relata seu experimento n=1 com amido resistente. Sua glicemia de jejum caiu sensivelmente durante a suplementação. Isso me faz pensar que os níveis mais elevados de glicose em jejum observados em algumas pessoas que fazem low carb cetogênico possam ser não apenas uma fenômeno fisiológico, como escrevi nesta postagem, mas talvez reflitam alterações reversíveis da flora intestinal. Sua tolerância aos carboidratos aumentou dramaticamente: antes, comer uma batata assada levava sua glicemia a níveis muito elevados (264 mg/dl); agora, suplementando com amido resistente, os níveis ficam em 160!

3) Caso de diabetes tipo 2 há anos controlado com low carb (original descrito aqui). Trata-de de Diana, que durante anos ganhava e perdia os mesmos 10 Kg. Passou a suplementar amido resistente nos últimos 6 meses. Perdeu 27 Kg, e tem a impressão de maior saciedade. A glicemia de jejum está 20-30 mg/dl mais baixa do que era antes, a resposta glicêmica a carboidratos (batata) normalizou, e deixou de apresentar algumas queixas que tinha antes (queda de cabelo, dificuldade para dormir, etc.);

4)  Diabético tipo 2 que continua comendo a dieta ocidental padrão e apenas aumentou o amido resistente (original aqui): melhora do controle glicêmico (esta não é uma estratégia que eu defendo, mas ilustra o efeito da flora intestinal sobre a resistência à insulina);

 5) Pŕe-diabético cuja glicemia de jejum está 15 a 20 pontos mais baixa após iniciar a suplementação (relato original aqui).

Em resumo, eis o que sabemos sobre os benefícios da suplementação com amido resistente:

  1. Melhora a resistência à insulina;
  2. Reduz a glicemia de jejum;
  3. Reduz a resposta glicêmica após a ingestão de carboidratos, tanto quando consumido junto com a refeição, como quando consumido na refeição anterior (o chamado “second meal effect”);
  4. Reduz os picos de insulina após a refeições;
  5. Regulariza a função intestinal (algo importante, visto que a constipação é uma queixa frequente entre “low carbers”, mesmo os que comsomem bastante salada, pois a mesma contém apenas fibra insolúvel);
  6. Aumenta a oxidação de ácidos graxos (queima de gordura);
  7. Aumenta seletivamente a presença de espécies benéficas na flora intestinal (como bifidobactérias).
  8. Aumenta a produção de ácidos graxos de cadeia curta no intestino, em especial o butirato, cujos efeitos metabólicos são quase milagrosos (veja essa revisão).

E quanto aos efeitos colaterais?

Há um efeito colateral universal – gases. E não são poucos. O que faz sentido, uma vez que estamos, literalmente, adubando nosso jardim colônico. A quantidade de gases pode ser realmente incômoda, e sugere-se que o consumo seja aumentado aos poucos, em quem tem dificuldades com esse aspecto. Mas, como testemunho da significativa mudança da composição do microbioma, em cerca de 14 dias há grande redução – basta ter paciência.

Interessado? Gostaria de adicionar amido resistente à sua dieta? Vá para a parte 2 dessa postagem, dedicada ao aspecto prático da suplementação.

Já está suplementando? Relate suas experiências (especialmente os diabéticos!).

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