Jornal Zero Hora – Chegou a Hora de Absolver a Gordura

Jornal Zero Hora de hoje, com bela matéria, assinada por Vivian Eichler, inspirada pelo livro The Big Fat Surprise, de Nina Teicholz, e pela capa da última revista Time.

Os PDF’s da reportagem podem ser conferidos clicando nas imagens abaixo (a íntegra do texto está mais abaixo):

Não comprou o livro ainda? Esperando o quê??


Revista time (clique na imagem para ler a matéria):

Texto integral da matéria:

Hora de absolvê-la?

Gordura saturada pode não ser a inimiga do coração que a medicina condenou

A ciência tem apontado, e mais e mais médicos têm acatado: a gordura pode ser inocentada por falta de provas

por Vivian Eicher

06/07/2014 | 07h01

Gordura saturada pode não ser a inimiga do coração que a medicina condenou Fernando Gomes/Agencia RBS

Gordura saturada, presente sobretudo em alimentos de origem animal, estaria ligada ao acúmulo do “mau colesterol”Foto: Fernando Gomes / Agencia RBS

Com o canudo de Medicina em mãos, o cardiologista Flavio José Kanter saiu da faculdade, em 1969, munido para a trincheira de combate à gordura saturada. Inimigos do coração, bife, ovos, banha, manteiga e leite integral ameaçavam tanto ou mais a engrenagem vital do que sal, fumo e preguiça.

Fazia oito anos que a American Heart Association e o National Institute of Health, nos Estados Unidos, haviam declarado guerra a esses elementos vistos como causadores de metade das mortes de americanos. A ordem era extirpar a carne vermelha, aniquilar o bacon, banir a nata. Até o então presidente Dwight Eisenhower, que sofreu o primeiro infarto em 1955, entrou para a história da medicina como um porta-voz da guerra ao colesterol (o fato de que fumava quatro maços de cigarro por dia era apenas um parêntese). Assim, a batalha diária contra os alimentos entupidores de veias formou gerações de especialistas e fixou-se à sabedoria popular.

Coma, no máximo, gordura vegetal. Prefira sempre a margarina à manteiga, repetiu Kanter à exaustão, seguindo à risca a cartilha. Repetia. Não repete mais. Ele perfila-se em um batalhão cada vez mais robusto de críticos à vilanização das gorduras saturadas. O fenômeno borbulha pelas laterais da medicina e da nutrição há uma década e ganhou corpo com a publicação de artigos em prestigiadas revistas científicas este ano.

Também turbina essa discussão o livro da jornalista investigativa Nina Teicholz,The Big Fat Surprise: Why Butter, Meat and Cheese Belong in a Healthy Diet (A grande surpresa da gordura: por que manteiga, carne e queijo pertencem a uma dieta saudável, Simon & Shuster, lançado em maio nos EUA, sem edição em português). Com resenhas positivas na The Economist e no Wall Street Journal, a obra serviu de base para uma reportagem de capa em junho na revista Time – uma espécie de farol para o tema desde 1961.

– Vivemos décadas baseados em teoria, mas nunca foi comprovado o que se dizia a respeito das gorduras – afirma o agora veterano Kanter, do corpo clínico do Hospital Moinhos de Vento.

Ele só criou coragem e assumiu sua convicção há três meses em um artigo publicado em ZH e sabe que a maioria de seus colegas não pensa dessa forma. Maturou a ideia durante uma década, motivado pelos nove quilos que perdeu comendo sem restrições de gordura – exceto as trans – e colocando o corpo em movimento. Kanter acredita que a maioria das pessoas pode ingerir 30% das calorias diárias de gordura saturada. É o equivalente a cerca de seis colheres de sopa de manteiga, mas três vezes mais do que preconiza a Sociedade Brasileira de Cardiologia.

Desde 1970, os americanos cortaram 11% do consumo de gordura saturada, mas aumentaram em 25% o de carboidratos. Mesmo assim, a incidência de obesidade e doenças cardiovasculares cresceu, o que desperta a dúvida: e se o problema não estiver no omelete com bacon pelas manhãs? Esse é o ponto de partida do livro de Nina – inspirado no trabalho do jornalista científico Gary Taubes, autor de artigos críticos publicados no The New York Times e na revista Science e do livroGood Calories, Bad Calories (Alfred A. Knopf, 2007), referência para dietas ricas em gordura e de baixo carboidrato. Durante nove anos, Nina escarafunchou até as notas de rodapé de estudos históricos e listou contradições em suas metodologias.

– Cientistas perceberam que deveriam revisar a ciência. Nessas revisões, concluíram, como eu concluí, que as evidências para condenar a gordura saturada não existem – disse Nina a ZH.

Um desses trabalhos de revisão foi liderado pelo epidemiologista cardiovascular Rajiv Chowdhury, da Universidade de Cambridge, na Inglaterra, publicado em março na revista Annals of Internal Medicine. Utilizando o método de metanálise, a equipe revisou 72 pesquisas realizadas com 600 mil pessoas em 18 países e não encontrou evidências para sustentar recomendações de restrição extrema a esses lipídeos.

Por e-mail a ZH, Chowdhury conta que o estudo foi realizado porque, após tantos anos de esforços, a associação entre ácidos graxos e risco de doença coronária permanecia obscura, com trabalhos de resultados conflitantes.

Segundo o pesquisador, a gordura saturada definitivamente eleva os níveis de LDL no sangue (o “mau colesterol”), associados a doenças. Mas não da forma como se pensava. Há evidências de que eleva subpartículas menos prejudiciais do LDL, e não as subpartículas “realmente más” – uma constatação que se origina em pesquisas dos anos 1980, do professor Ronald Krauss, da Universidade da Califórnia em Berkeley, mas que requerem mais testes.

A tendência é, também, não mirar nas gorduras saturadas de forma generalizada, já que cada tipo poderia estar associado a maior ou menor risco de doenças.

– Nossas conclusões não devem servir de carta verde para comer gordura saturada. Há grandes estudos em progresso e que deverão oferecer esclarecimentos definitivos em um futuro próximo. Por enquanto, recomendo prudência e distância da carne vermelha – alerta Chowdhury.

Na Capital, com a serenidade de seus 68 anos, metade deles auscultando corações, Kanter resume o sentimento de apreensão que perpassa pelo seu consultório.

– Precisamos ter humildade para reconhecer. Comparo esta mudança à que Galileu vivenciou quando comprovou que a Terra girava ao redor do Sol. É tão forte, que ainda tenho dificuldade de encará-la – afirma.

Trata-se de uma guerra com inimigos ainda desconhecidos.

Sai um problema, entra outro


Não é de hoje que espocam contradições na seara nutricional. O exemplo clássico é a gema do ovo, que de estricnina na veia passou à condição de elixir

– rico em colesterol in natura, pouco absorvido pelo corpo, e com propriedades nutritivas que o colocam como alimento fundamental, por exemplo, para o desenvolvimento cerebral de crianças.

Em 1999, em meio à reverberação da absolvição do ovo, o escritor Luis Fernando Verissimo questionou quem o indenizaria por todas as gemas douradas que deixou de furar durante anos de medo inútil. “Ainda não liberaram a manteiga, mas é uma questão de tempo”, escreveu, em premonição certeira.

As gorduras são essenciais para dar ao corpo energia e sustentar o crescimento das células. Também auxiliam na proteção dos órgãos e na manutenção da temperatura corporal. Afetam a absorção de nutrientes e a produção de hormônios. A questão que divide especialistas é quais fazem bem e quais fazem mal. Essa é a cruzada em que se encontram há décadas.

– Pesquisas que testam os efeitos de alimentos no corpo a longo prazo são de difícil execução. Controlar, com rigor, o que as pessoas comem por um longo período é o mais complicado. Essa é uma das explicações para haver tantas variações – avalia Vera Portal, cardiologista do Hospital de Cardiologia, que pesquisa fatores de risco para doenças cardiovasculares.

A disseminação de orientações baseadas apenas em associações, antes de testes clínicos provarem a relação de causa e efeito, estariam na base desse vaivém.

– Essa ciência fraca, que não estaria pronta para ser “usada”, tem nos levado a caminhos errados – lamenta a jornalista Nina Teicholz.

Após idas e vindas, os especialistas agora farejam o vilão do século 21 para a saúde: os açúcares. Para fugir da gordura, a solução encontrada para saciar a população foram os carboidratos (que se transformam em açúcar). Pareciam perfeitos, até menos calóricos. Assim, a pirâmide alimentar americana se estruturou em quase três vezes mais carboidratos do que carne, peixe, ovos, feijão e nozes juntos. E sem ovo no café da manhã, vieram as caixinhas de cereal matinal com leite desnatado, pão com margarina e iogurte light, mas adoçado.

Há consenso de que trocamos um problema por outro. A população está mais obesa, mais diabética, acometida por doenças senis e só não morre ainda mais de infartos fulminantes porque evoluíram as medicações e o diagnóstico.

Os carboidratos seriam os responsáveis por elevar as subpartículas mais nocivas de LDL no sangue, e não as gorduras, apontam estudos. Seguindo essa lógica, há linhagens de nutricionistas e médicos que usam a gordura para combater o açúcar. Receitam aos pacientes a ingestão de proteínas e gorduras saturadas e monoinsaturadas (abacate, nozes, azeite de oliva) para controlar a fome e a gana por doces, pães e massas. É o caminho inverso.

– Aprendi na faculdade que a gordura faz mal, mas, depois, vi que não se tem evidências. O que vai matar a pessoa não é a gordura, mas a combinação churrasco com pão e doce depois – diz Gabriel Carvalho, nutricionista, farmacêutico bioquímico e introdutor da nutrição funcional no Brasil em 1999.

No consultório de Gabriel, o perfil dos pacientes mudou. Em geral, são pessoas que, como ele descreve, acham que sabem cuidar da alimentação. Não comem ovos porque têm colesterol, tomam leite desnatado ou semi, comem pouca carne de gado durante a semana, comem frango, evitam manteiga e nata e estão com colesterol alto. A explicação, segundo ele, são o pão branco ou o “falso integral”, massas, bolachas e doces, para citar alguns vilões.

O mesmo observa o médico Jose Carlos Souto, que é urologista e especialista na chamada dieta paleolítica “low-carb”:

– O que temos é um fenômeno global de aumento dos alimentos processados e redução da gordura. Como todos acreditam nesse dogma, basta escrever “não contém gordura” ou “zero colesterol”, e as pessoas comem. Mas o que elas estão ingerindo é açúcar.

Há um ano e meio, Souto recebeu a empresária Camila Marquetto Saikoski, 28 anos, 1m82cm de altura, 64 quilos, que apresentava uma doença autoimune que reduzia as plaquetas. Tinha triglicerídeos altos e relação entre colesterol bom e ruim que deixava a desejar.

– Eu comia já tudo bem magro. Fugia da gordura como o diabo da cruz, e agora faço o inverso, só que deixei de comer glúten e parei de comer industrializados, só comida 100% natural – diz a empresária, cuja geladeira está recheada de nata, manteiga, carnes e ovos.

Resultado: os exames de Camila mostraram, além da normalização das plaquetas, aumento do HDL no sangue e redução dos triglicerídeos.

Terreno de divergências


No Brasil, a Sociedade Brasileira de Cardiologia (SBC) dá sinais de estar atenta à discussão. Elevou em 2012 sua recomendação máxima de 7% para 10% das calorias diárias obtidas de gordura saturada (algo como dois cubos de bacon frito), uma flexibilização maior do que a das entidades americanas, que restringem a ingestão em 5% a 6%, o equivalente a menos de duas colheres de sopa de manteiga.

– Esse percentual de consumo de gordura saturada que o governo recomenda hoje só foi visto em períodos de fome, no pós-II Guerra Mundial. É muito drástico – afirma a autora do livro The Big Fat Surpise, Nina Teichloz, reconhecendo um grão de mudança pelo fato de, por outro lado, terem deixado de bater na tecla da gordura como número 1 de suas preocupações.

A diretriz brasileira sobre o consumo de gorduras e saúde cardiovascular, publicada em janeiro, cita a discussão e reconhece que a substituição de gordura saturada por carboidratos simples pode ter grande impacto no aumento do risco de doença cardiovascular e diabetes.

– Hoje, se sabe que existe correlação do alto consumo de gordura saturada com problemas do coração. O que a gente não sabe é qual deve ser a ingestão diária. O que questionamos é se precisa ser tão restrito – pondera o presidente do departamento de arterosclerose da SBC e professor da PUCPR, José Rocha Faria Neto.

Mais preocupada com a combinação de macronutrientes do que com a vilania de um tipo de gordura, Carisi Anne Polanczyk, chefe do Centro de Cardiologia do Hospital Moinhos de Vento e presidente da Sociedade de Cardiologia do RS (Socergs), diz que a execração da gordura saturada teve alto efeito psicológico. Houve uma “lavagem cerebral”, reconhece.

– Restringíamos muito. Manteiga, nem pensar. Retirava o ovo, carne era permitida em pouquíssima quantidade. Agora, achamos que manteiga é melhor do que margarina. Abandonei o creme vegetal, mesmo os que dizem não conter gordura trans. Os cardiologistas mudaram, e até os pacientes nos cobram em tom de brincadeira. Mas devemos olhar para a alimentação como um todo, não para nutrientes isolados – diz Carisi.

Um dos maiores nomes no Brasil em medicina cardíaca, o cirurgião Fernando Lucchese, da Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre, afirma que não há evidências que o permitam relativizar o conselho de evitar a gordura saturada.

– Corremos o risco de multiplicar doenças cardíacas – afirma Lucchese.

– Pode prescrever a dieta que quiser, mas 15% a 20% (dos pacientes) cumprem à risca. Eles têm conhecimento do tema, mas não abrem mão de comer gordura saturada, por isso a medicação é importante.

Carisi também alerta:

– Provavelmente, a maioria das pessoas pode comer gordura em quantidades razoáveis, mas, para as pessoas que acumulam, o colesterol faz mal. Não adianta passar uma ideia de que todo mundo pode comer tudo. Existe um padrão de alimentação saudável que envolve manter peso e uma combinação de nutrientes que pode ter gordura, desde que (a pessoa) não tenha predisposição de ter colesterol alto.

ENTREVISTA: “Coma mais alimentos verdadeiros”


Por Maria Rita Horn ([email protected])

Nutricionista francesa que mora no Brasil, Sophie Deram pesquisa transtornos alimentares e neurociência do comportamento



Se fala muito em terrorismo nutricional. O que seria isso?Tenho visto muitos jovens que nunca aprenderam a comer de forma tranquila. Vejo, na verdade, uma grande dificuldade frente a “o que comer”. E uma das causas disso é o exagero de regras super-rígidas veiculadas e, às vezes, contraditórias, que fazem com que achemos que comer bem é saber mais e mais de nutrição.

Uma hora não se pode comer gordura ou ovo, um tempo depois, está liberado novamente. Esse vaivém confunde as pessoas?Confunde muito. Antigamente, o perigo era um alimento que era estragado. Hoje, é dito que o que você coloca na boca pode ser muito tóxico. Vejo muito mal-estar com isso. Foi feita uma pesquisa sobre o conhecimento nutricional nos EUA e na França. Nos EUA, todo mundo sabia o que é ômega 3, ômega 6, muitas coisas sobre a gordura. Os franceses sabem apenas que baguete com camembert é muito bom. E o pesquisador questionou: será que saber muito de nutrição não atrapalha a relação com a comida? Provavelmente.

O que temos de mudar na relação com a alimentação para nos sentirmos mais felizes e termos menos problemas com obesidade?Não é porque uma pessoa tem obesidade que está comendo errado. Tenho um paciente que come superbem, mas tem obesidade por problemas de hormônio. Sobre a relação com a comida, em vez de se estressar demais com as regras, tente incluir mais alimentos verdadeiros no seu dia. Beba mais água. Na alimentação de adolescentes brasileiros, 15% das calorias vêm de bebidas doces. Inclua legumes e frutas, em vez de comer tudo pronto em pacotes. Tenho três dicas: parar de fazer dieta, comer alimentos verdadeiros – e aqui não estou dizendo que você não pode comer alimentos da indústria – e cozinhar.

Área de Membros Ciência Low-Carb

Acesso a conteúdo
premium exclusivo