O que é uma referência bibliográfica aceitável? 4 – Estudo em animais

A manchete vem com força:


Caminho para a obesidade


Dietas ricas em gorduras saturadas, como as das carnes bovina e suína, danificam o hipotálamo ─ região do cérebro responsável pelo controle da fome e do dispêndio de energia

Eu não sei você, mas eu fico bem desconfortável entretendo a ideia de que algo possa “danificar” o meu cérebro.


Salvo engano, creio (ainda) não ser possível terminar de cursar jornalismo sem dominar o uso do modo subjuntivo de nosso idioma. Assim, a machete acima, ao optar pelo presente do indicativo, deixa claro que uma dieta rica em carne suína e bovina danifica um pedaço do seu cérebro.


No artigo que se segue, há as seguintes afirmações:

  • Segundo pesquisa desenvolvida pela Unicamp, algumas pessoas, quando expostas a dietas hipercalóricas, perdem gradativamente esse controle neural e passam a consumir mais calorias que gastam, tornando-se obesas com o passar do tempo.
  • “A perda de neurônios com função central no controle do peso pode explicar porque pessoas obesas que se submetem a dietas rigorosas, ainda que consigam emagrecer nas primeiras semanas, voltam a engordar.
  • “Hoje podemos afirmar que gorduras saturadas contribuem para o ganho de peso não apenas por seu valor calórico mas também devido às propriedades moleculares desses nutrientes. O efeito depende da carga genética de cada pessoa. Nos experimentos, segundo ele, “verificamos que animais com predisposição à obesidade perdem mais neurônios”.
  • Um outro aspecto analisado mostrou que animais submetidos a dietas ricas em gordura saturada produziam várias citocinas pró-inflamatórias no sistema nervoso central, reduzindo o número de neurônios.


Em seguida à publicação desse tipo de reportagem, começa a chuva de emails: “meu deus, é sinal que temos que retirar toda a gordura da dieta! O ideal, mesmo, é comer peito de frango bem sequinho e salada de alface. No café da manhã, aveia com leite desnatado”. Dor. Sofrimento. Eis o que antecipo, só de pensar no trabalho que vou ter para responder… Agora, poderei apenas apontar para essa mensagem.

Então, quando vamos ver de onde saiu esta reportagem, descobrimos o seguinte:

J Neurosci. 2009 Jan 14;29(2):359-70.
Saturated fatty acids produce an inflammatory response predominantly through the activation of TLR4 signalingin hypothalamus: implications for the pathogenesis of obesity.

Trata-se de EXCELENTE artigo de ciência básica, e o Brasil deveria sentir-se honrado em ter, no nosso meio, laboratórios e pesquisdores capazes de produzir estudos dessa qualidade.

O que o estudo mostra?

  • Em modelos animais de obesidade, a presença de inflamação no hipotálamo produz resistência ao efeito inibidor do apetite provocado pela leptina e pela insulina;
  • Em modelos animais, uma dieta rica em gordura produz obesidade;
  • Não se sabe exatamente o mecanismo – em modelos animais – pelo qual a gordura induz inflamação hipotalâmica e, portanto, resistência à insulina e à leptina no hipotálamo;
  • O presente estudo demonstrou que, em ratos, o efeito dos ácidos graxos saturados na indução de inflamação no hipotálamo se dá através de um receptor denominado TLR-4, e que ratos mutantes que não possuem este receptor são imunes a esse efeito.

Ok, o importante aqui não são os detalhes. O importante aqui é o seguinte:

Onde estão as PESSOAS nesse estudo? De onde saíram as afirmações de que o consumo de gordura saturada leva pessoas a engordar? Da cabeça de quem escreveu a reportagem. E porque isso é importante?

Um grande cientista e pesquisador, já falecido, o Dr. Judah Folkmann, o pai da pesquisa em angiogênese e câncer, certa vez disse: “Se você for um camundongo, e tiver câncer, eu posso curá-lo”. Essa maravilhosa pérola de sarcasmo mereceria ser colocada em um quadro e emoldurada. A situação era a seguinte. Anos 1990. o Dr. Folkmann e seu laboratório estabelecem o fato de que o câncer não pode sobreviver se não for capaz de produzir a proliferação dos vasos sanguíneos necessários para manter seu crescimento. É como um exército, que não pode avançar sem que haja uma logística, uma linha de suprimentos contínua, que permita alimentar milhares de soldados à medida em que avançam no front. A esse fenômeno, o Dr. Folkmann chamou de angiogênese. A ideia, então, era inibir a angiogênese, de forma a matar o tumor de fome. Quando o Dr. Folkmann produziu os primeiros estudos de inibição da angiogênese em modelos animais, levando à regressão e cura do câncer, a imprensa – como é de se esperar – veio em busca do furo jornalístico. Cura do câncer!! E então, ao ser questionado sobre suas descobertas, o Dr. Folkmann poderia ter dito algo como “descobrimos uma forma de acabar com essa terrível doença”, ou “em 10 anos, o câncer deixará de ser uma doença fatal” ou ainda, “essa descoberta abre as portas para o desenvolvimento de novas drogas que serão para o câncer aquilo que os antibióticos foram para as infecções bacterianas”. Mas não. O Dr. Folkmann era um verdadeiro cientista, na acepção mais pura do termo. Sua resposta, mais uma vez, foi “Se você for um camundongo, e tiver câncer, eu posso curá-lo”. Nesta curta frase, está explicitado de forma maravilhosamente eloquente o fato de que não se pode extrapolar resultados de ciência básica para além do modelo que foi estudado. São estudos geradores de hipótese – só isso.

Mais de 15 anos depois, as drogas antiangiogênicas fazem parte do armamentário terapêutico, acrescentam alguns meses de vida a alguns tipo de câncer, mas não curam ninguém. O Dr. Folkmann, infelizmente, tinha razão em sua cautela e ceticismo.

Essa pequena história serve para lembrar dois importantes postulados:

  • Estudos em animais servem apenas para levantar HIPÓTESES.
  • Estudos em animais são pouco relevantes quando estudos em humanos já demonstraram que o fenômeno em questão ocorre de forma diversa.

Sobre o primeiro postulado, o número incontável de vezes em que doenças são curadas em roedores, apenas para que depois descubramos que o mesmo não ocorre em humanos, fala por si.

Sobre o segundo, vamos nos debruçar um pouco. Quando algo é um fenômeno real em humanos, sua reprodução em animais é útil para desenvolver modelos para estudar o fenômeno em laboratório. Por exemplo, nos primórdios da medicina científica, a ideia de que o bacilo da tuberculose fosse a causa dessa doença foi reforçado pelo fato de que a injeção desse germe em cobaias provocava o surgimento da doença.

Mas veja: primeiramente, é preciso estabelecer que o fenômeno em questão é real em humanos.

Eu posso demonstrar experimentalmente que é possível engordar bodes com couve e alface (e até mesmo com capim). A relevância disso para o ser humano é, obviamente, nenhuma, visto que já é sabido que não é possível engordar pessoas com folhas verdes (o ser humano, diferentemente destes ruminantes, não é capaz de extrair energia de celulose). Assim, por mais que MIL estudos mostrem que bodes engordam comendo alface, a alface continuará a não produzir ganho de peso em humanos.

Excesso de couve produz acúmulo de gordura visceral!!! Se você for um bode. claro.

Da mesma forma, o fato de que coalas comem basicamente folhas de eucalipto é pouco útil para que se faça inferências sobre a dieta humana, e mesmo sobre a dieta de outros herbívoros. As folhas de eucalipto são bastante tóxicas – uma forma de proteção da planta contra predadores – mesmo bovinos podem morrer ao consumi-las. o fato de que vacas adoecem comendo eucalipto não torna o eucalipto tóxico para coalas. Os coalas evoluíram comendo eucalipto, e possuem um fígado capaz de detoxificá-lo.

Este coala está abusando de folhas verdes! Se não quer ficar com a cintura assim, não coma tantos vegetais. Será?

Já escrevi antes sobre o fato de que, antes de explicar em detalhes um fenômeno (por exemplo, que uma dieta com mais gordura produz obesidade em humanos), convém ter o cuidado de verificar se o fenômeno é real ou ilusório.

Relembrando: “conceito de “ciência da fada do dente“:

“Você poderia medir quanto dinheiro a fada do dente deixa em baixo do travesseiro, se ela deixa mais dinheiro para o primeiro ou para o último dente perdido, se a recompensa é maior para o dente deixado em um saquinho plástico ou enrolado em um guardanapo. Você pode conseguir montes de dados, reprodutíveis e estatisticamente significativos. Sim, você aprendeu algo. Mas você não aprendeu aquilo que você acha que aprendeu, pois você não se preocupou em estabelecer se a fada do dente realmente existe“.

Antes de analisar todos os dados sobre a fada do dente, não custa verificar PRIMEIRO se ela EXISTE.”

Vamos a um exemplo? Digamos que eu faça a seguinte afirmação:

“É sabido que uma dieta rica em alface, espinafre, couve e outros hortaliças folhosas promove o ganho de peso. Um novo estudo em bodes indica que o consumo excessivo deste alimentos provoca ganho acelerado de peso nestes animais. O controle do consumo de folhosas ajudou a manter os bodes mais magros”.

Qual o problema com essa afirmação? O problema não é a parte dos bodes – essa é verdadeira! O problema é a primeira frase. Afinal, existe alguma evidência de que “uma dieta rica em alface, espinafre, couve e outros hortaliças folhosas promova o ganho de peso” em humanos? Com certeza não! Muito pelo contrário. Assim, repito, não importa quantos estudos mostrem que o excesso de alface provoque ganho de peso em bodes, isso continua sendo pouco relevante para humanos. Pois, como eu disse no início dessa postagem, Estudos em animais são pouco relevantes quando estudos em humanos já demonstraram que o fenômeno em questão ocorre de forma diversa.. Então, se houvesse estudos em humanos demonstrando que hortaliças provocam ganho de peso, então, e somente então, bodes passariam a ser um bom modelo experimental para a dieta humana.

Dito de outra forma: quando se estabelece que um fenômeno observado em animais é inexistente em humanos, os detalhes de como e porque a coisa ocorre em animais (como eucalipto é saudável para coalas, como roedores engordam comendo gordura animal) nada mais é do que fornecer explicações complexas para um fenômeno fictício.

Onde está a evidência experimental em HUMANOS de que o consumo de gordura leva ao ganho de peso??

Novamente, me reporto à postagem de 2014 na qual já tratei desse assunto:

Recebi este email de outra leitora:

“Dr. Souto, estou fazendo um curso sobre Síndrome Metabólica e foi falado que a gordura saturada aumenta a resistência à insulina. Vi um artigo da Unicamp dizendo que a gordura saturada provoca uma inflamação do hipotálamo levando a resistência à insulina, por liberar citocinas inflamatórias. Estou bem insegura quanto ao consumo desta gordura depois de ter acesso a estas informações.”Na verdade, esse é apenas UM email, mas eu devo ter recebido uns dez emails semelhantes. O motivo de tantos emails é um estudo, conduzido em camundongos.

Minha resposta foi:

“Dois problemas.

    1) Camundongos são animais muito diferentes de nós no que diz respeito à dieta. Eles, por exemplo, são adaptados justamente a comer aquilo a que nós não somos: grãos!! Lembre-se, eles são ROEDORES, seres que efetivamente conseguem comer sementes sem processá-las antes. E eles NÃO são carnívoros, de modo que dar bastante gordura animal para um ser cuja dieta básica é grãos e vegetais pode não ser uma boa, pelo MESMO motivo que dar muitos grãos e pouca gordura animal para um ser humano também não faz sentido. 2) O coordenador do estudo já parte de uma premissa completamente errada: “É sabido que quem ingere muita gordura ganha peso”. É sabido por QUEM, cara-pálida?? Me mostre UM estudo em humanos em que isso tenha sido demonstrado. TODOS os estudos demonstram o OPOSTO. Se você já parte da conclusão, é fácil montar experimentos que confirmem sua hipótese. O processo científico é feito ao contrário. Parte-se de uma hipótese, e monta-se um experimento para tentar provar que a hipótese é falsa. Se a hipótese sobreviver, ela fica mais forte. Procure no blog os estudos que realmente importam, os prospetivos randomizados feitos em humanos. Compre os livros do Taubes, e você encontrará DEZENAS de estudos em camundongos que contradizem este aí. E ONDE ESTÁ o braço de dieta com mais gordura e menos carboidrato? Pois há estudos em roedores mostrando benefícios de uma dieta com menos carbs. E a dieta que mais engorda e vicia os bichos… adivinhou, é a com alto açúcar, e Yudkin já havia estudado isso na década de 50. Mas se você parte do PRINCÍPIO que as gorduras saturadas são más, e desenha seu experimento para testar apenas isso, você achará o que quer achar. “Se sua única ferramenta é um martelo, tudo é prego.”
Nesta postagem (https://lowcarb-paleo.com.br/2013/12/o-figado.html), há um outro detalhe – o tipo de dieta de alta gordura que engorda roedores é uma dieta inflamatória, pelo tipo de gordura utilizada e por ser nutricionalmente deficiente:

“Uma coisa que confunde quem é novo na área é o seguinte: embora todos os estudos em roedores mostrem que reduzir os carboidratos e/ou aumentar as proteínas seja benéfico para o fígado (e para os rins, e para a síndrome metabólica), há vários estudos em roedores nos quais uma dieta de alta gordura INDUZ esteatose, resistência à insulina e até mesmo obesidade. Isso contrasta radicalmente com os efeitos das mesmas dietas LCHF em humanos. Se, por um lado, é verdade que roedores têm uma dieta natural muito diferente da nossa (grãos, por exemplo, fazem parte da dieta normal destes animais, que são virtualmente herbívoros na natureza, não tendo evoluído comendo carne gorda portanto), por outro lado é importante saber que as dietas que são fornecidas aos animais de laboratório são dietas sintéticas comercialmente disponíveis. Uma dieta de alta gordura para camundongos, por exemplo, não é feita com manteiga de vacas alimentadas com pasto e ovos de galinhas caipira. Isto fica bem demonstrado neste fascinante estudo no qual os pesquisadores descobriram que dietas de alta gordura, baixa proteína e baixíssimo carboidrato produzem acúmulo de gordura no fígado de roedores. Aumentar a quantidade de proteínas na dieta protege o fígado até certo ponto, mas o que realmente faz diferença é a presença ou ausência de COLINA na dieta. A colina está normalmente presente nas dietas LCHF de humanos, pois faz parte da gordura animal oriunda de comida de verdade, mas está AUSENTE das dietas LCHF sintéticas oferecidas aos roedores. Esta dieta deficiente em colina provoca disfunção das mitocôndrias, que perdem a capacidade de oxidar adequadamente as gorduras, levando à acumulação das mesmas nas células hepáticas (e isso é agravado pela deficiência de proteínas na dieta). A reintrodução da colina na dieta dos roedores eliminou o efeito deletério da dieta LCHF sobre o fígado dos roedores.(Schugar, R.C. et al., 2013. Role of Choline Deficiency in the Fatty Liver Phenotype of Mice Fed a Low Protein, Very Low Carbohydrate Ketogenic Diet. PLoS ONE, 8(8), p.e74806. Available at:http://dx.doi.org/10.1371/journal.pone.0074806). Ou seja, não era a gordura na dieta dos animais que lhes prejudicava, mas a ausência de colina (que, na comida de verdade, estaria presente). E quais as maiores fonte de colina na dieta humana? Ovos (gema!) e carnes gordas.

2) Outro detalhe importante é que óleos poliinsaturados ômega-6 são especialmente eficazes em produzir o acúmulo de gordura no fígado e consequente resistência à insulina. Sabedores desse fato, pesquisadores induziram disfunção hepática em ratos associando álcool e óleo de milho em suas dietas. Quando o óleo de milho foi substituído por gordura saturada, o fígado dos animais melhorou (Zhong, W. et al., 2013. Dietary fat sources differentially modulate intestinal barrier and hepatic inflammation in alcohol-induced liver injury in rats.American journal of physiology. Gastrointestinal and liver physiology, 305(12), pp.G919–932.)
Os autores salientam que as gorduras poliinsaturadas (óleos extraídos de sementes) são frágeis, oxidam-se facilmente, o que aumenta muito os danos oxidativos. Já as gorduras saturadas, especialmente as de cadeia média (óleo de coco por exemplo), são muito mais estáveis, reduzindo o stress oxidativo.”

Ok, eu sei que a explicação foi comprida. A versão curta, à luz da “ciência da fada do dente” seria a seguinte:

1) Ratos que comem gordura saturada engordam;
2) Pessoas que comem gordura (saturada ou não), emagrecem;
3) Isso não significa que, a partir da publicação desse estudo da Unicamp, as pessoas que comem gordura saturada passarão a engordar. Isso significa que pessoas não são Ratos.

Numa análise Popperiana, o raciocínio seria:

– Hipótese 1: gordura saturada produz inflamação no hipotálamo de ratos que os levam a engordar
– Hipótese 2: o mesmo ocorrerá com seres humanos
-> experimento conduzido em camundongos deu suporte (não refutou) a hipótese 1
-> experimentos (DEZENAS) conduzidos em seres humanos REFUTAM a hipótese 2.
-> resultado: é necessário reanalisar a teoria para sabermos onde erramos (roedores são herbívoros, a ração comercial é feita com óleos refinados e é deficiente em colina, etc), e postularmos novas hipóteses (tais como a desse artigo) a serem testadas em futuros experimentos.

***XXXX***

No início da postagem, usei o exemplo de um grande cientista, o Dr. Folkmann, que quando questionado sobre as implicações de suas descobertas na área da angiogênese, respondeu:“Se você for um camundongo, e tiver câncer, eu posso curá-lo”.

 

Parafraseando o Dr. Folkmann, a resposta correta referente à pesquisa da Unicamp seria: “Se você for um rato, e comer muita gordura saturada de origem animal, seu hipotálamo poderá ficar inflamado”.

Por fim, para vocês, caprinos, lembre-se: consuma couve com moderação!

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