O erro de tratar os diferentes de forma igual – resistência à insulina impacta na resposta à low carb

Esta postagem foi atualizada em 2023 para a área de membros deste blog.

Alguns carros são flex. Outros, só usam gasolina:

No carro FLEX, tanto faz. Agora, se o modelo à gasolina for abastecido com álcool, terá problemas.

Gasolina é forma de dizer pois, no Brasil, 27% da gasolina é etanol. Ou seja, o carro à gasolina “tolera” uma certa quantidade de etanol, mas não muito. Já o carro FLEX pode rodar com 100% de álcool hidratado sem problemas.

A Anfavea ainda está conduzindo estudos para avaliar o efeito que o acréscimo de quantidades crescentes de etanol à gasolina terá sobre motores desenhados para rodar apenas com gasolina. Tudo indica que 27% ainda é tolerável, mas se a proporção seguir aumentando, há riscos para a saúde dos veículos. Em uma estratégia que lembra a introdução das diretrizes alimentares nos anos 1970, as mudanças têm sido implementadas pelo governo primeiro, e os estudos são deixados para depois.

Mas uma coisa é certa: eu posso colocar quantidades ilimitadas de etanol em um carro FLEX. Já no carro à gasolina, isso poderia trazer severos danos. Os carros, como as pessoas, não são todos iguais.

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A qualidade do combustível (estar livre de impurezas, não estar adulterado) é sempre importante, para qualquer veículo, não importa se o veículo tolera apenas gasolina ou se é um carro flex. Para um carro flex, a proporção de álcool e gasolina é irrelevante, contanto que o combustível seja de qualidade. Já para uma carro a gasolina, até mesmo um combustível puro, da melhor qualidade, será ruim, se sua proporção de etanol for alta – ele simplesmente não tolera etanol acima de um certo nível.

De forma semelhante ao que ocorre com os carros, nós podemos funcionar com dois tipos de combustível, carboidratos e gorduras. Todos nascemos FLEX, isto é, temos flexibilidade metabólica, e podemos nos adaptar a diferentes proporções de carboidratos e gorduras em nossa dieta. E, da mesma forma, a qualidade dos alimentos é fundamental. Um refrigerante e uma fruta são ambos fontes de carboidratos, mas não há como comparar sua qualidade.

Por questões genéticas (história familiar de diabetes tipo 2, por exemplo) e também de estilo de vida (sedentarismo, ganho de peso), muitos de nós (talvez a maioria dos adultos) desenvolveremos um quadro de resistência à insulina. Nestas pessoas, a mesma quantidade de glicose consumida provocará elevações muito maiores deste hormônio e, à medida que a resistência à insulina progride, elevações cada vez maiores da glicose no sangue, até que se atinja a franca diabetes tipo 2.

Estas pessoas, portadoras de resistência à insulina, não são flex. Uma dieta rica em carboidratos, que pode ser inócua ou (dependendo do tipo de carboidratos) até mesmo saudável para quem é sensível à insulina (flex), produz doença e progressiva deterioração do quadro de síndrome metabólica, mesmo que a qualidade de tais carboidratos seja boa. O etanol mais puro e aditivado continuará sendo ruim para o motor de um carro que não seja flex. Assim como nos carros a gasolina, uma certa quantidade de carboidratos é tolerada por estas pessoas (e, naturalmente, devem ser carboidratos de alta qualidade) – mas há um limite de quantidade.

Desta forma, antes de adentrar determinadas discussões, é necessário determinar o tipo de carro (ou o tipo de pessoa) a que estamos nos referindo.

Afinal, a discussão sobre o aumento de 25 para 27% de etanol na gasolina é, para quem possui um carro flex, uma discussão completamente sem necessidade ou consequência. O carro flex tolera etanol sem problemas, mesmo em altas concentrações. De forma análoga, a discussão sobre consumir mais ou menos carboidratos quando as pessoas em questão são altamente sensíveis à insulina é uma grande perda de tempo.

O desconhecimento sobre esse fato, o de que alguns de nós somos mais resistentes à insulina (RI) do que outros – ou seja, de que alguns são flex, e outros não – leva a todo o tipo de confusão. E isso atinge seu ápice nas redes (anti)sociais.

Exemplo típico:

Fulaninho, 38 anos, resolve postar no Instagram seus exames e suas fotos, antes e depois, dizendo: 

eu cortei os carboidratos e perdi 20 Kg, meus triglicerídeos baixaram de 300 para 85 e meu HDL subiu de 28 para 55, e me sinto muito melhor“.

Em seguida, fulaninha, 22 anos, posta suas fotos, com barriga de tanquinho e negativa, dizendo:

Já EU como pão e massa todos os dias e tenho barriga de tanquinho, mas você não tem – aliás, continua gordo! Ah, e meu HDL é 80, e eu como sorvete todos os dias“.

No mundo automobilístico, isso seria equivalente à seguinte conversa:

Fulaninho não é flex, não tem injeção eletrônica, e já foi táxi.
  • Fulaninho, um Chevette com 100 mil Km rodados, resolve mostrar como melhorou sua performance depois que passou a usar apenas gasolina – está feliz pois seu motor nao engasga mais;
Fulaninha é flex, e ainda está na garantia – mesmo que seja mal-tratada, tem pouca chance de dar defeito
  • Fulaninha, um Corolla com 5 mil Km rodados e cheiro de novo, com um potente motor flex, passa então a se gabar, indicando como não apenas pode usar qualquer combustível, mas também anda mais e é mais bonita. “Se você usasse o mesmo combustível que eu uso, seria assim como eu”. 

Por sorte, veículos não frequentam redes sociais.

A discussão sobre restringir em maior ou menor grau a quantidade de carboidratos na dieta é, para uma pessoa altamente sensível à insulina, tão infrutífera e inútil quanto a discussão sobre o aumento de 25 para 27% de etanol na gasolina para quem possui um carro flex. O carro flex tolera etanol sem problemas, mesmo em altas concentrações. Se o governo aumentar para 50% a quantidade de álcool adicionada à gasolina, isso não fará nenhuma diferença para o Corolla acima. Já para o Chevette…

Em resumo: não somos todos flex. Os diferentes devem ser tratados de forma diferente. 

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Já escrevi sobre síndrome metabólica uma vez. Trata-se de uma constelação de sinais e sintomas decorrentes da resistência à insulina e da hiperinsulinemia compensadora.

Tradicionalmente, a síndrome metabólica é diagnosticada quando 3 ou mais dos seguintes critérios estão presentes:

  • Obesidade abdominal (índice cintura/quadril > 0,9 para homens e 0,85 para mulheres, ou ainda cintura masculina com mais de 102 cm e a feminina com mais de 88 cm;
  • Triglicerídeos acima de 150 mg/dl  (ou já estar em tratamento para isso);
  • Colesterol HDL < 40 mg/dl (homens) ou < 50 (mulheres) (ou já estar em tratamento para isso);
  • Pressão acima de 130/85 (ou já estar em tratamento para baixar a pressão);
  • Glicose em jejum acima de 100 mg/dl (ou já estar em tratamento para baixar a glicose);
  • Diabetes tipo II

No fundo, estes critérios são apenas formas clínicas de diagnosticar a resistência à insulina (RI) e a hiperinsulinemia compensadora.

O pai do conceito de síndrome metabólica, o Dr. Gerald Reaven, escreveu em 1988:

A resistência à captação de glicose estimulada pela insulina é um fenômeno comum. A resposta compensatória a esse defeito é secretar mais insulina. A resistência à insulina (RI) leva à hiperinsulinemia, intolerância à glicose, aumento dos triglicerídeos e redução do HDL“.

O seguinte diagrama mostra a constelação de problemas ligados à hiperinsulinemia crônica:

Como se pode ver, abastecer o Chevette com álcool não é nada bom!

Então, é preciso que fique claro:

  • Uma dieta paleolítica, por exemplo (clique aqui para saber do que se trata) não é uma dieta low carb; é apenas uma estratégia alimentar focada em alimentos naturais, não processados ou minimamente processados, mais semelhantes àqueles que o ser humano consumia durante a evolução. Na analogia automobilística, seria um combustível mais próximo ao recomendando nas especificações do fabricante.
  • Dieta low-carb é uma intervenção terapêutica: trata-se de uma estratégia comprovadamente eficaz para o manejo de síndrome metabólica, diabetes, e sobrepeso (especialmente em pessoas portadoras de resistência à insulina – RI). Ou seja, low-carb é uma estratégia focada em uma porção específica da população: aqueles que não são flex.

Essas ideias não são apenas ideias minhas. Há suporte científico para as mesmas.

Uma das palestras mais incríveis a que já assisti online (já falei sobre ela aqui) foi a palestra do Dr. Chris Gardner de 2008. Ele é o autor principal do estudo prospectivo e randomizado denominado A to Z, no qual 4 dietas (desde very low carb até very low fat) foram comparadas em mulheres obesas por 1 ano. A palestra inteira é ABSOLUTAMENTE FASCINANTE, e eu sugiro fortemente que todos a assistam na íntegra. Contudo, para quem deseja pular diretamente para a parte em que o Dr. Gardner explica a relação entre resistência à insulina (RI) e resposta à dieta low carb, comece no minuto 38:

Há uma DRAMÁTICA diferença na resposta à dieta low-carb de pessoas RI (resistentes à insulina) em relação às demais. Uma dieta low-carb é simplesmente mais eficaz para portadores de RI e síndrome metabólica.

Neste estudo de Ebbeling, 2007, prospectivo, randomizado, com duração de incríveis 18 meses e com 73 participantes, observe a diferença na resposta à dieta low carb versus low fat entre pessoas com resistência à insulina (RI) e naquelas sem resistencia à insulina (“FLEX”):

Quando se observa o gráfico mais à esquerda, as duas dietas (low carb e low fat) parecem iguais (pois nesse gráficos todas as pessoas, RI ou Flex, estão misturadas). Quando, porém, os voluntários são divididos naqueles que não são resistentes à insulina (FLEX, em vermelho, acima), versus RI (Resistentes à Insulina, em verde, acima), fica claro que a restrição de carboidratos (bolinhas pretas, no gráfico), é muito mais eficiente para quem NÃO é flex (portanto, quem é RI – Resistente à Insulina). De fato, se olharmos bem, o grupo FLEX teve um desempenho até mesmo um pouco melhor com uma dieta low fat!

Dito de outra forma: mudar o combustível não muda o resultado em carros flex, mas muda completamente o resultado em carros movidos apenas à gasolina. Se você não é um carro FLEX, não deve ser abastecido com álcool. Se você for flex, tanto faz!

Este não é um achado isolado.

Neste fascinante estudo de Pittas et. al, de 2005, no qual voluntários receberam 100% de sua comida fornecida pelos pesquisadores por 6 meses (incrível!!), 32 voluntários fora randomizados para uma dieta de alto carboidrato (60%) versus baixo (40%). Ok, eu sei que 40% não é baixo, mas é MAIS baixo do que 60%. Ambas dietas foram calculadas com uma restrição calórica de 30% em relação às calorias necessárias para manter o peso estável. Ou seja, a restrição calórica foi a MESMA nos dois grupos.

Eis o resultado de perda de peso, de acordo com o grau de resistência à insulina:

Fica claro, mais uma vez, que o grupo RI (em verde) responde muito melhor a dietas com menos carboidratos; já o grupo FLEX (em vermelho, sem resistência à insulina), parece responder melhor a dietas low fat.

Quem assistir o vídeo do Dr. Gardner, acima, a partir do minuto 38, verá que ele cita esses dois estudos, e mais outro, e depois demonstra que, nos seus próprios dados, o mesmo fenômeno ocorre: aquelas mulheres resistentes à insulina (RI), ou seja, aquelas que não são FLEX, são as que mais se beneficiaram da dieta Atkins.

Em resumo: uma dieta saudável baseada em comida de verdade pode ser low-carb ou high carb. A indicação de low-carb é para pessoas resistentes à insulina (RI), não para pessoas saudáveis, com peso adequado, sem síndrome metabólica nem diabetes. Sim, essas pessoas FLEX podem seguir um estilo de vida low-carb, mas elas não precisam seguir. Assim como o Corolla da foto mais acima, qualquer combustível lhes cai bem.

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Como saber se sou resistente à insulina?

Às vezes, é muito fácil. Todo o diabético tipo 2 é resistente à insulina. A maioria das pessoas com insulina de jejum acima de 10 é resistente à insulina (RI), e qualquer um acima de 15 tem RI com certeza. Qualquer pessoas que preencha os critérios para síndrome metabólica é resistente à insulina. Nenhuma pessoa que se enquadra nessas circunstâncias é FLEX. Todas terão desfechos de saúde melhores com restrição de carboidratos.

Alguns dos estudos citados acima usaram critérios diferentes (insulina de jejum < 7 versus > 10, <10 versus >15, ou ainda insulina 30 minutos após 75g de glicose < 57 ou >57). Há ainda os critérios de Kraft (Diabetes Epidemic & You), seguramente o autor que mais estudou o poder preditivo da curva insulinêmica para determinar a presença de resistência à insulina.

Esta é a curva normal, que caracteriza uma pessoa sem resistência à insulina, ou seja, FLEX:


Basicamente, o valor da insulina após 1 hora da solução de glicose deve ser menor do que 60.

Mas nada disso é necessário, ou obrigatório, para que se possa classificar, de forma geral, alguém no grupo IR ou no grupo FLEX.

Assim, segue o GUIA FÁCIL.

Você tem alta chance de se beneficiar de low carb se você…

  • for diabético;
  • tiver insulina de jejum acima de 10;
  • tiver ovários policísticos;
  • tiver síndrome metabólica (3 ou mais dos seguintes critérios):
  • Obesidade abdominal (índice cintura/quadril > 0,9 para homens e 0,85 para mulheres, ou ainda cintura masculina com mais de 102 cm e a feminina com mais de 88 cm;
  • Triglicerídeos acima de 150 mg/dl  (ou já estar em tratamento para isso);
  • Colesterol HDL < 40 mg/dl (homens) ou < 50 (mulheres) (ou já estar em tratamento para isso);
  • Pressão acima de 130/85 (ou já estar em tratamento para baixar a pressão);
  • Glicose em jejum acima de 100 mg/dl (ou já estar em tratamento para baixar a glicose);
  • Diabetes tipo II
  • Apresentar algumas das seguintes patologias, associadas a alguns dos critérios acima:

Se, por outro lado, você for saudável e não apresentar estes sinais e sintomas, é bem provável que você não tenha IR, ou seja, que você seja FLEX. Neste caso, uma dieta saudável, baseada em comida de verdade, não-low carb (com frutas e raízes à vontade), ou mesmo uma dieta mediterrânea, poderá ser a melhor alternativa para você.

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Para simplificar ainda mais, eis um guia visual:

VERSUS

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