Arroz para diabetes?

Cerca de 10 dias atrás, uma colega endocrinologista enviou-me, pelo WhatsApp, uma foto:

Ela estava exasperada. Eu, nem tanto, pois a ganância há muito já recrutou a ignorância a seu favor. Mas então eu li o resto da mensagem: a foto estava sendo enviada, ao vivo, da mesa do refeitório de um grande hospital universitário de Porto Alegre. Como é possível?

Veja, a placa em questão não esconde em nenhum momento que trata-se de peça publicitária. Está ali, em baixo, o logotipo de um Instituto cuja função é promover a produção e o comércio do arroz. Mas que um hospital universitário permita isso em seu refeitório, é outra história. Isso confere um aparente verniz de verdade sobre a afirmação “arroz: auxilia no tratamento da diabetes”.

Já escrevi sobre diabetes em outra postagem. Vamos nos focar especificamente na questão arroz e diabetes.

Qual a composição do arroz?



Arroz é uma das formas mais puras de amido disponível na alimentação humana. Não difere muito nem mesmo da farinha de trigo refinada (mas nem mesmo a farinha branca de trigo contém tanta glicose):

Dados para arroz branco, cozido

Como se vê, é praticamente PURO amido, com uma quantidade homeopática de outras coisas.

E o que é amido?

Amido é glicose, na forma de um polímero. Quando várias moléculas de glicose são unidas umas às outras (por um tipo de ligação covalente chamada de ligação glicosídica), a isto chama-se AMIDO. Sob pena de ser repetitivo: AMIDO é GLICOSE em sua forma PURA.

Isso é glicose: 

Isto é amido:

Para quem não gosta de química: faça de conta que cada tijolo de Lego na foto abaixo é uma molécula de glicose:

Então, a foto abaixo (um “polímero” de Legos) seria o amido:

Eu imagino que não escape à percepção da maioria das pessoas que esta pequena estrutura feita de vários tijolinhos de Lego pode, fácil e rapidamente, ser transformada em tijolinhos individuais de lego. Do ponto de vista fisiológico, não há diferença entre consumir glicose pura ou amido. Amido É GLICOSE PURA! A única diferença é de natureza gustativa e culinária, não fisiológica!! Os tijolinhos de lego não se transformam em outra coisa quando são ligados uns aos outros. Quando a estrutura é desmontada (o que, no nosso corpo, chama-se digestão), os tijolinhos voltam a ser tijolinhos individuais, indistinguíveis daqueles que nunca fizeram parte de um amido antes. 

Como se diagnostica o diabetes?

Segundo a página da Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia:

1) glicemia de jejum > 126 mg/dl (jejum de 8 horas)
2) glicemia casual (colhida em qualquer horário do dia, independente da última refeição realizada (> 200 mg/dl em paciente com sintomas característicos de diabetes.
3) glicemia > 200 mg/dl duas horas após sobrecarga oral de 75 gramas de glicose.


Vamos nos focar no item 3. Se dermos 75 de glicose para uma pessoa, e sua glicemia estiver acima de 200 após 2 horas (este exame chama-se curva glicêmica ou teste de tolerância oral à glicose), isto caracteriza diabetes. Então, qual seria uma forma de dar 75 gramas de glicose para uma pessoa, na forma de comida?

Que tal 300g de arroz? Não apenas arroz é praticamente amido puro, mas seu índice glicêmico é elevadíssimo. A glicemia de uma pessoa elevar-se-ia mais e mais rapidamente com 75 de glicose na forma de arroz (ou seja, 300g de arroz cozido, visto que a maior parte do mesmo é água) do que com 75 de açúcar puro, retirado do açucareiro.

Então, vamos ver se conseguimos entender:

  1. Existe uma doença chamada diabetes, caracterizada por níveis extremos de intolerância à glicose;
  2. Isto pode ser verificado em um exame chamado de Teste de Tolerância Oral à Glicose;
  3. Neste teste, uma pessoa que consumir 75g de glicose pura (equivalente a 300g de arroz preparado) será considerada diabética se a glicemia de 2h for superior a 200, pois o que define a doença é a capacidade prejudicada de tolerar tais doses de glicose;
  4. Aliás, se a glicemia após 2h ficar entre 140 e 200, é feito o diagnóstico intolerância à glicose.

Certo. Então, vamos supor que uma pessoa seja diagnosticada com diabetes após obter valores de glicemia superiores a 200 duas horas após consumir a quantidade de glicose pura presente em um prato de arroz. De que forma comer arroz auxiliaria no tratamento deste paciente? DE QUE FORMA? Não é o MESMO arroz que desencadeou uma elevação de tal monta da glicemia que levou ao seu diagnóstico? Como isso pode ser terapêutico?

Isso é absolutamente bizarro e acintoso. Poderia ser enquadrado no mesmo naipe das seguintes afirmações:

  • Leite: auxilia no tratamento da intolerância à lactose;
  • Cigarro: auxilia no tratamento da doença pulmonar obstrutiva crônica;
  • Montanha russa: auxilia no tratamento da labirintite;
  • Camarão: auxilia no tratamento da alergia ao camarão;
  • Bebidas destiladas: auxiliam no tratamento da cirrose;
  • Glúten: auxilia no tratamento da doença celíaca

Vejamos um exemplo: existe um teste para asma no qual o paciente é nebulizado com uma medicação chamada metacolina, que induz um ataque de asma em pessoas suscetíveis. Então, o consumo de arroz por um diabético faria tanto sentido quanto utilizar metacolina no tratamento de um paciente com asma, cujo diagnóstico foi feito porque a metacolina desencadeou uma crise de asma. Percebem??

Para deixar ainda mais claro: como algo que se usa para fazer o diagnóstico de uma doença, justamente por causa uma resposta aberrante no corpo da pessoa doente, poderia ser apregoado para “auxiliar no tratamento” justamente da doença que se carateriza por sua intolerância? Percebem?? É tautológico, é auto-evidente, não precisa ser um Einstein para perceber isso.

Desculpe-me, mas há coisas que não precisam de um ensaio clínico randomizado. Basta pensar.

Dito isso, qual ensaio clínico randomizado já mostrou que arroz possa auxiliar no tratamento da diabetes? Nenhum que eu saiba. E quais já mostraram que a restrição de carboidratos auxilia no tratamento do diabetes? Vários! Sugiro a leitura deste artigo de revisão.

Veja bem: mesmo os profissionais que não adotam a estratégia low carb para o manejo dos pacientes diabéticos, compreendem que alguns alimentos ricos em carboidratos são melhores do que outros. Sim, uma cenoura contém carboidratos, mas é uma fonte incrível de nutrientes, além ter carga glicêmica baixa. Sim, o feijão contém carboidratos, mas contém proteína, fibras, nutrientes e tem baixo índice glicêmico. Mas ninguém indica especificamente o arroz. O arroz é extremamente pobre em nutrientes, algumas variedades têm índice glicêmico próximo de 100. O máximo que você ouvirá de um profissional de saúde que não adota a estratégia low carb é que “modere” a quantidade de arroz e de outras fontes concentradas de amido como pão e batata, por exemplo, dando preferência para vegetais de menor índice e carga glicêmica.

Não consigo conceber que alguém que tenha passado pelos bancos de uma universidade possa, de fato, recomendar que um diabético consuma MAIS arroz (isto é, mais glicose pura), pois isso iria auxiliar no tratamento da doença (que se define por intolerância à glicose).

***

De quem patrocina esta campanha, obviamente eu espero que promova seu produto. Mas mesmo isso tem limite.

De uma montadora de automóveis, por exemplo, eu espero todo o tipo de argumentos no sentido de aumentar a venda de carros. Comprem mais carros porque:

  • Cheirinho de carro novo é irresistível;
  • Os novos modelos têm design mais bonito;
  • Tem melhor desempenho, com economia;
  • Você vai poder passear em belas paisagens
  • Você não precisará mais depender do ônibus ou do trem

Enfim, os alegados motivos são muitos e variados. Mas nem mesmo uma montadora faria uma campanha com o seguinte conteúdo:

  • Comprem mais carros, pois isso reduz a poluição das nossas cidades;
  • Comprem mais carros, pois isso contribui para a redução dos acidentes nas estradas.
  • Comprem mais carros, pois isso reduzirá os congestionamentos.

Dizer que “arroz auxilia no tratamento da diabetes” é uma dessas coisas que não se espera nem mesmo de uma entidade dedicada a vender arroz.

Mas, infelizmente, não me espanta. O que me espanta é que essa campanha foi realizada dentro de um hospital universitário de Porto Alegre. Como é possível? Como isso foi sequer permitido? O equivalente nutricional de “cigarro ajuda no tratamento das doenças pulmonares” foi colocado sobre as mesas do refeitório de uma instituição séria, com a permissão da mesma. Como pode?? Só vejo duas possibilidades, e AMBAS me assustam. A primeira é a de que o interesse financeiro tenha silenciado os escrúpulos. Eu não consigo acreditar nisso. Então, fico com a segunda: o estado lamentável do conhecimento nutricional é tal que não permite às pessoas a compreensão de que a afirmação contida na placa é tão acintosa como se ali estivesse escrito “açúcar é saúde: auxilia no tratamento da diabetes”. Do ponto de visto glicêmico, a diferença é que o arroz aumenta mais a glicemia do que o açúcar, visto que esse último contem 50% de frutose (que causa ainda mais danos, por mecanismos distintos). Se quisermos uma comparação exata, com o mesmo efeito metabólico, poderíamos por exemplo recomendar Karo (xarope de glicose de milho) para os diabéticos:

“É saúde! auxilia no tratamento da diabetes”; se for verdade para o arroz, é verdade também para o xarope de glicose – ambos tem exatamente a mesma composição e o mesmo índice glicêmico.

Não bastasse isso, 4 dias depois, o jornal Zero Hora repercutiu a notícia (felizmente no caderno de agricultura, e não no de saúde!):

Campo Aberto

Campanha busca elevar consumo de arroz

Programa de valorização do cereal desembarca em Porto Alegre

Por: Gisele Loeblein

24/01/2017 – 20h41min | Atualizada em 24/01/2017 – 20h41min

CompartilharE-mailGoogle+TwitterFacebook

Campanha busca elevar consumo de arroz Sara Kirchhof/Irga,divulgação

Foto: Sara Kirchhof / Irga,divulgação 

É com o objetivo de abrir o apetite do gaúcho que o Programa de Valorização do Arroz (Provarroz) do Instituto Rio Grandense do Arroz (Irga) vem trabalhando. Lançado na abertura oficial da colheita de 2016, o projeto desembarcou na Capital. Desde a semana passada, no refeitório do Hospital São Lucas da PUCRS foram colocados cartazes que mostram os benefícios do consumo desse cereal (foto acima). A projeção do Irga é de espalhar 400 displays em restaurantes do Estado, com informações como a de que o arroz não contém glúten e auxilia no tratamento do diabetes.

A iniciativa começou com visitas de nutricionistas a escolas e depois a universidades e tem como objetivo ampliar o consumo. Estudo da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura mostra que em 20 anos, de 1986 a 2006, houve decréscimo de 17,1% do consumo no Brasil.

– Futuramente, a ideia é estampar a campanha também em guardanapos – acrescenta Camila Pilownic, coordenadora do Provarroz.

Vejamos, por onde começar?
Arroz não tem glúten. É verdade, não tem mesmo. E daí? O açúcar também não tem – então, isso o torna bom, não é mesmo? Talvez até mesmo para o diabetes… Só que não!

Quem lê meu blog sabe que eu não sou fã do consumo de glúten. Afinal, é uma proteína que está associada com aumento da permeabilidade intestinal, e a um estado inflamação sistêmica em muitas pessoas que não são celíacas. E, de qualquer forma, quando se segue um estilo de vida low carb, você já não consome carboidratos de alta carga glicêmica, de modo que o trigo estaria fora de qualquer maneira, pelo mesmo motivo que a arroz: trata-se de amido purificado, praticamente destituído de valor nutricional.

No entanto, nutricionistas tradicionalmente tendem a ver a restrição do glúten como uma “dieta da moda”, havendo inclusive resoluções oficiais sobre o tema. Sendo assim, novamente é de estranhar que, em um hospital universitário de grande prestígio, placas como esta sejam permitidas no refeitório: 

Como se vê, além de afirmações não baseadas em evidência (não existe evidência de que arroz previne doenças do coração, e no diabetes trata-se de uma piada de muito mau gosto), temos a placa do glúten, que é uma forma pseudo-científica de surfar na onda dos alimentos sem glúten para, ao dizer que o alimento não o contém, conferir-lhe uma falsa aura de alimento saudável.

Sugiro que coloquem plaquinhas idênticas para açúcar e leite condensado; como as fotos abaixo mostram, ambos não contém glúten (o que os torna automaticamente bons, pelo jeito…), e ambos têm, inegavelmente, os mesmo tipo de “benefício” para os diabéticos que o arroz (como qualquer um que estudou bioquímica para o vestibular sabe):

Rótulo de açúcar – não contém glúten, e eleva a glicemia dos diabéticos menos do que o arroz
Rótulo de leite condensado – não contém glúten, e eleva a glicemia dos diabéticos menos do que o arroz

***

Esperança para a humanidade.

Fiquei sabendo que alguns endocrinologistas ficaram suficientemente ofendidos pelo disparate a ponto de colocar algumas dessas placas no lixo. Isso me lembrou a seguinte citação:

***

Minha sugestão aos organizadores desta campanha, e às pessoas responsáveis por sua aprovação dentro de hospitais:

Quando uma campanha é baseada em algo flagrantemente falso, as pessoas logo percebem a farsa, e as duas únicas explicações possíveis (desonestidade intelectual x ignorância) pegam muito mal.

O arroz, para pessoas que não são diabéticas, não são obesas e não apresentam síndrome metabólica, não é inerentemente ruim. Trata-se de uma fonte de amido barata, não perecível e saborosa. Faz parte da cultura culinária nacional, e casa bem com inúmero outros pratos. Então, se quiserem incentivar a venda e o consumo de arroz, façam-no de forma ética e responsável. Salientem o sabor, apostem no conhecido arroz com feijão como preferência nacional, chamem atenção para a insuperável capacidade de combinar-se com diferentes molhos.

Agora, estimular justamente os diabéticos a consumir glicose quase pura é publicidade ruim para todos os envolvidos.

Área de Membros Ciência Low-Carb

Acesso a conteúdo
premium exclusivo