Vilhjalmur Stefansson foi um explorador do Ártico no início do século XX. Mas Stefansson foi muito mais do que isso. Foi um verdadeiro cientista, na acepção de alguém que busca, acima de tudo, a verdade. Nascido em 1879, morreu em 1962 aos 84 anos (em uma época na qual a expectativa de vida para homens brancos nos EUA era de 67 anos).
Stefansson viveu ente os esquimós pela primeira vez em 1906, e conviveu com os mesmos por muitos anos. Descobriu que este povo vivia com zero carboidratos na dieta, e disso não decorria nenhum problema, pelo contrário, tinham saúde superior à média dos europeus. Naquela época, como hoje, os médicos e nutricionistas simplesmente não acreditaram em seu relatos. Era mais fácil aceitar que Stefansson estivesse mentindo, do que aceitar que as teorias vigentes sobre dieta balanceadas estivessem equivocadas.
Stefansson, contudo, realizou o impensável: internou-se em um hospital de Nova Iorque, sendo observado, 24 horas por dia, por cientistas de várias universidades renomadas, para provar que podia viver comendo apenas carnes e água por UM ANO!
Suas aventuras foram por ele relatadas em 3 longos artigos nos números de novembro e dezembro de 1935 e janeiro de 1936 da revista americana Harper’s Monthly. Achei realmente fascinante ler sobre como muitos dos preconceitos sobre dieta já eram os mesmos há 100 anos, e como algumas de nossa perguntas já foram respondidas (respostas essa que foram relegadas ao total esquecimento) também há quase um século. E como voltamos a repetir os mesmo erros…
É importante que o leitor entenda que não estou propondo que se adote uma dieta apenas de carne (embora eu esteja convencido que comer só carne seria MUITO melhor do que a dieta ocidental padrão). Quem acompanha este blog sabe que defendo o consumo liberal de vegetais pobres em amido.
Mas o texto é fascinante em vários aspectos:
– A demonstração cabal de que os carboidratos são completamente opcionais na dieta;
– Que uma dieta low carb não é hiperprotéica, e sim rica em gordura;
– O fato de que o sal (que hoje é vilão) era considerado essencial para a saúde 100 anos atrás (ao que tudo indica, não é nem fundamental e nem prejudicial);
– O fato de que o paladar humano pode se adaptar a qualquer coisa;
– O fato de que o Dr. Stefansson, escrevendo ainda no início do século passado, pudesse ter conceitos tão “modernos” de relativismo cultural;
– O fato de que muitos dos conceitos low carb / páleo já fossem conhecidos há quase 100 anos, inclusive com termos tais como “dieta de nossos ancestrais”;
– O fato de que o escorbuto pode ser prevenido e curado com carne, sem frutas cítricas (caso contrário, obviamente os esquimós estariam extintos);
– O fato de que a classe médica é capaz de continuar afirmando as mesmas coisas mesmo face a evidências contrárias;
– O fato de que as sociedades que adotavam dietas sem carbs não apresentavam problemas dentários.
Prepare-se para um texto longo – me tomou MUITAS horas de tradução, mas acho que vocês também acharão fascinante as histórias deste grande antropólogo – um verdadeiro Indiana Jones low carb!
Aventuras Dietéticas
Por Vilhjalmur Stefansson
Revista Harper’s Monthly, Novembro de 1935.
Tradução de José Carlos Souto
Em 1906 eu fui para o ártico com os gostos e crenças de um americano típico. Em 1918, depois de onze anos vivendo como um esquimó entre esquimós, eu havia aprendido coisas que me fizeram descartar a maior parte de tais crenças. Dez anos mais tarde, eu comecei a me dar conta de que o que eu havia aprendido poderia influenciar significativamente as ciências da medicina e nutrição. Entretanto, o que finalmente impressionou e converteu muitos cientistas durante os últimos 2 ou 3 anos foi uma série de experimentos confirmatórios realizados em mim mesmo e em um colega no Hospital Bellevue, em Nova Iorque, sob a supervisão de um comitê representando várias universidades e outras organizações.
Há não muito tempo atrás a seguinte crença sobre nutrição era comum: “para ser saudável, você precisa de uma dieta variada, composta de elementos tanto do reino animal quanto do reino vegetal. Se você comer sempre as mesmas coisas, você ficará cansado e finalmente sentirá uma repulsa por estes alimentos.” Esta última crença era sustentada por histórias de pessoas que, por força das circunstâncias, viram-se forçadas a viver, por exemplo, por duas semanas comendo apenas sardinhas e biscoitos de água e sal e que, de acordo com tais histórias, juraram jamais tocar em sardinhas de novo enquanto vivessem. O sulistas (que moram no sul dos Estados Unidos) afirmam que ninguém é capaz de comer uma perdiz por dia todos os dias.
Havia ainda outras crenças dietéticas. Era desejável comer frutas e vegetais, incluindo nozes e grãos integrais. Quanto menos carne você comesse, melhor para você. Se você comesse muita carne, você desenvolveria reumatismo, endurecimento das artérias, pressão alta e uma tendência ao mal funcionamento dos rins – em suma, envelhecimento precoce. Uma variante extrema afirmava que você viveria mais saudável, mais feliz e mais tempo se se tornasse um vegetariano.
Especialmente, quando começamos nossos estudos de campo, acreditava-se que, sem vegetais na dieta, você desenvolveria escorbuto. Era um “fato conhecido” que marinheiros, mineiros e exploradores frequentemente morriam de escorbuto “pois eles não comiam frutas e vegetais”. E isto foi muito antes da publicidade sobre a vitamina C.
A adição de sal à comida era considerada ora importante para promover a saúde, ora necessária para a saúde. Isto era “provado” por várias histórias, tais como as de que tribos africanas guerreavam entre si para obter sal; que algumas batalhas da guerra civil americana foram focadas em minas de sal; e que todos os animais herbívoros adoram sal. Eu não lembro de ter visto algum apêndice crítico sobre tais concepções, sugerindo, por exemplo, que as tribos africanas também guerreavam por motivos que ninguém consideraria como biologicamente essenciais; que o tabaco era um fator importante em várias campanhas da guerra civil americana sem que fosse algo essencial para a dieta; e que membros da família dos cervos no estado de Maine, que jamais entraram em contato com sal ou mostraram desejo pelo mesmo, eram tão saudáveis quanto aqueles do estado de Montana, que devoravam quantidades de sal e estavam sempre a procura de mais.
Uma crença que, eu estava prestes a descobrir, seria crucial em meu trabalho no Ártico, fazendo a diferença entre sucesso e falha, e vida e morte, era a de que o homem não pode viver apenas de carne. Os poucos médicos e nutrólogos que achavam que sim eram considerados pouco ortodoxos, ou mesmo charlatães. Os argumentos iam desde a metafísica até a química: “o homem não foi feito para ser carnívoro – você sabia isso pelo exame dos dentes, do estômago, e dos relatos bíblicos.” Como já mencionado, ele desenvolveria escorbuto se não comesse vegetais junto com a carne. Os rins seriam arruinados pelo trabalho excessivo. Haveria um envenenamento por proteínas, enfim, um custo infernal para a saúde.
Com estas visões em minha mente e, deploravelmente, outras parecidas, eu me exonerei de minha posição como instrutor assistente de antropologia em Harvard para me tornar um antropólogo de uma expedição polar. Por acidentes e circunstâncias que não são parte da história, eu acabei, naquele outono, hóspede dos esquimós do rio Mackenzie.
A Companhia da Baia de Hudson (a mais antiga companhia comercial da América do Norte, estabelecida no século 17 no ramo de peles), cujo posto comercial mais ao norte, em Fort McPherson, ficava ainda 200 milhas mais ao sul, não tinha quase influência sobre os esquimós. Isto por que apenas alguns dos esquimós faziam visitas anuais ao posto comercial, no qual não compravam comida, mas apenas chá, tabaco, munição e coisas deste tipo. Mas, em 1889, a frota de navios baleeiros começou a frequentar estas águas e, por 15 anos, houve estreita associação de esquimós com até 12 navios e 400 a 500 homens brancos que passavam o inverno na ilha de Herschel, logo a oeste do delta do rio Mackenzie. Durante este período, alguns esquimós aprenderam um pouco de inglês cerca de 1 em cada 10 deles passou a gostar um pouco das comidas do homem branco.
Mas agora a frota baleeira havia deixado o local pois os preços do mercado haviam desabado, e o distrito enfrentava novamente longos invernos apenas de peixe e água. Os animais de caça, que poderiam suplementar a pesca anos antes, haviam sido exterminados ou afugentados pela caça intensiva que forneceu carne às frotas baleeiras. Havia um pouco de chá, mas nem de longe o suficiente para o inverno todo – e este era o único elemento da dieta do homem branco que os esquimós realmente gostavam, e cuja falta os preocupava. De modo que eu estava prestes a enfrentar um inverno apenas de peixe, sem chá. E a última coisa que eu poderia fazer, como um hóspede não convidado, era parecer não gostar.
O problema peixe e água versus peixe e chá era, no meu caso, como seis e meia-dúzia. Pois eu tivera um preconceito contra peixe minha vida toda. Eu provava um pouquinho, talvez uma ou duas vezes por ano em algum jantar à francesa, e sempre concluía que era tão ruim como eu imaginava que seria. Isto era apenas psicológico, é claro, mas ainda não sabia disto.
Eu fui, de certa forma, adotado por uma família esquimó, cujo chefe falava inglês. Ele crescera como um ajudante de cabine em um navio baleeiro e chamava-se Roxy, embora seu nome real fosse Memoranna. Era o início de setembro, nós vivíamos em tendas, os dias eram quentes mas já começava a congelar durante as noites, que eram agora escuras por 6 a 8 horas.
A comunidade de 3 ou 4 famílias, 15 ou 20 indivíduos, estava ocupada com a pesca. Com longas varas, 3 ou 4 redes eram jogadas da praia a cerca de 100 metros uma da outra. Quando a última era arremessada, a primeira era recolhida, com dúzias a centenas de peixes, a maioria pesando entre meio quilo a 1 quilo e meio, incluindo algumas belas trutas e salmões. Pelo que conheciam de outros homens brancos, os esquimós consideravam estes últimos os mais adequados para mim, e os cozinhavam especialmente, assando-os diretamente no fogo. Quanto a eles, comiam seus peixes apenas fervidos.
Tentando melhorar meu apetite, meu hábito era levantar aos primeiros raios de sol, às 4 da manhã, digamos, pegar meu rifle e sair depois do café da manhã pela pradaria, embora eu não esperasse realmente encontrar nenhuma caça. No meio da tarde eu retornava ao acampamento. As crianças brincando normalmente me enxergavam e já avisavam a mulher de Roxy, que então colocava uma truta fresca para assar. Então eu chegava em casa, mordiscava um pouco do peixe, e ia para meu diário escrever sobre o o horror que estava vivendo.
Contra minhas expectativas, e quase contra a minha vontade, eu estava começando a GOSTAR da truta assada, quando um dia, talvez na segunda semana, eu cheguei em casa sem que as crianças tivessem me visto chegar. Não havia peixe assado pronto, mas as pessoas estavam sentadas ao redor de tachos com peixe fervido. Eu me juntei a eles e, para minha surpresa, gostei mais do que do peixe assado. Desde então o hábito de assar trutas especialmente para mim cessou, e eu passei a comer peixe fervido junto com os esquimós.
II
Já no meio do inverno, eu havia deixado meu hóspede auxiliar de cabine e, por questões de estudo antropológico, estava vivendo com uma família menos sofisticada, na extremidade leste do delta do rio Mackenzie. Nossa habitação era uma casa de madeira e barro, aquecida e iluminada com lamparinas típicas dos esquimós. Nas lamparinas, eles queimavam gordura de focas e de baleia, na sua maior parte de baleia branca de uma caçada da primavera passada quando a gordura foi armazenada em sacos e preservada, embora a carne houvesse sido consumida. Para cozinhar, entretanto, não eram usadas as lamparinas, mas um fogão a lenha que havia sido adquirido dos baleeiros. Éramos 23 pessoas vivendo em uma única peça, e às vezes havia até 10 visitantes. O chão estava então tão completamente coberto de colchonetes que o fogão teve de ser pendurado no teto com cordas. A temperatura à noite ficava em torno de 16 graus. A ventilação era excelente, com ar gelado entrando por uma portinhola que não era nunca fechada, e o ar aquecido saindo por um buraco de ventilação no teto.
Todos dormiam completamente nus – nenhum pijama ou camisetão. Nós usávamos cobertores de algodão ou de lã, obtidos dos baleeiros ou da Cia da Baía de Hudson.
Pela manhã, em torno das 7 horas, peixes apanhados no inverno, tão congelados que quebrariam como vidro, eram trazidos para dentro e deixados no chão até que ficassem um pouco mais macios. Uma das mulheres beliscava-os de tempos em tempos até que ela conseguisse deixar uma pequena marca de pressão – e então começava os preparativos para o café da manhã. Primeiro ela cortava as cabeças e deixava de lado para fervê-las para as crianças á tarde (os esquimós gostam muito de suas crianças, e as cabeças são consideradas as melhores partes do peixe). A segunda melhor parte são as caudas, que também são cortadas e separadas para as crianças. A mulher então cortava a pele ao longo das costas e do ventre e, com os dentes, descascava a pele do peixe da mesma forma que descascamos uma banana, só que para os lados (enquanto bananas descascamos em direção às extremidades).
Preparados dessa forma, os peixes eram colocados em pratos e passados de mão em mão. Cada um de nós pegava um e o mordia da mesma forma que um americano faria com com milho na espiga. Um americano deixa a espiga; da mesma forma, nós comíamos a carne crua da parte de fora do peixe, sem tocar nas entranhas. Quando já tínhamos comido o quanto queríamos, colocávamos o resto no prato, que era destinado para os cães.
Após o café da manhã, todos os homens e cerca de metade das mulheres saía para pescar, e a outra metade das mulheres ficava na cabana para arrumar a casa. Lá pelas 11 horas, voltávamos para uma segunda refeição de peixe congelado, igual ao café. Em torno das 4 da tarde o dia de trabalho terminava, e voltávamos para casa para uma refeição de peixe quente fervido.
E voltávamos para uma casa tão aquecida pelo fogão que a temperatura variava de 30 a 38 graus ou talvez mais – lembrava mais uma sauna do que um aposento aquecido. Pingos de suor escorriam pelos nossos corpos, e as crianças ficavam ocupadas indo e voltando com recipientes de água gelada, a qual naturalmente bebíamos bastante.
Logo antes de dormir nós comíamos mais um lanche gelado de peixe que sobrara da janta. Então dormíamos 7 a 8 hora e a rotina diária recomeçava.
Depois de 3 meses como hóspede dos esquimós, eu já havia adquirido a maior parte de seus gostos por comida. Eu acabei concordando que o peixe ficava melhor fervido do que preparado de qualquer outra forma, e que as cabeças (que ocasionalmente eu dividia com as crianças) eram, de fato, as melhores partes do peixe. Eu não mais desejava variedade no preparo, como um eventual peixe assado: eu passara a preferir peixe sempre fervido, quando não fosse cru. Eu passei a gostar tanto de peixe cru como se eu fosse um japonês. Eu passei a gostar tanto de óleo de baleia fermentado (portanto levemente ácido) com meu peixe quanto gostava de vinagre e azeite de oliva na salada. Mas eu ainda tinha dois problemas com os hábitos dos esquimós: eu não comia peixe podre e continuava a desejar sal nos alimentos.
Havia vários graus de peixe podre. Os apanhados em agosto estavam protegidos dos animais, mas não do calor, e estavam totalmente podres. Os de setembro estavam moderadamente apodrecidos. Os de outubro em diante congelavam-se imediatamente após e pesca, e eram frescos. Havia menos dos peixes de agosto do que quaisquer outros e, justamente por este motivo, eram considerado uma iguaria – consumidos às vezes como um lanche entre as refeições, às vezes como sobremesa, e sempre congelados e crus.
No meio do inverno ocorreu-me filosofar que, nos EUA e em outras terras, gostar de queijos suaves é considerado um hábito um tanto plebeu. Não há dúvida de que os connoisseurs gostam de seus queijos progressivamente mais fortes. O mesmo aplica-se às carnes, como na Inglaterra onde é comum dentre a nobreza o gosto por carnes de caça e de faisão tão maturadas que qualquer americano do meio-oeste ou mesmo um inglês de classe mais baixa consideraria como carne podre.
Eu sabia, é claro, que embora seja bom comer produtos de leite estragado (queijo) e carne de caça estragada, é “muito errado” comer peixe estragado. Também estava ciente da visão comum das pessoas de que havia “ptomaínas” (substâncias químicas tóxicas nitrogenadas, resultado da putrefação) em peixe podre e carne podre de origem plebeia. Mas dei-me conta de que seria uma extensão bizarra da consciência de classe que as “ptomaínas” evitariam as carnes dos nobres, atacando apenas as carnes dos plebeus.
Estas reflexões levaram-me à seguinte questão: se é quase uma marca de distinção social comer queijos “fortes” sem nem piscar ou aves malcheirosas com regozijo, por que seria necessariamente de mau gosto apreciar um peixe podre? Com esta base filosófica, embora com receio e náusea, experimentei o peixe podre um dia e, se a memória não me trai, gostei mais do que da primeira vez que experimentei um queijo Camembert. Nas semanas seguintes, passei a gostar muito de peixe podre.
Lá pelo quarto mês do meu primeiro inverno com os esquimós, eu já esperava ansiosamente pela próxima refeição (fosse ela podre ou fresca), gostava dela, e me sentia bem quando terminava. Ainda assim eu continuava pensando que o peixe fervido seria muito mais gostoso com um pouco de sal. Desde o início de minha estadia com os esquimós eu vinha sofrendo com a ausência de sal. Nos meus primeiros dias, com a desenvoltura de um escoteiro, eu decidi fabricar meu próprio sal, e fervera água do mar até que sobrasse apenas um pouco de um pó marrom. Se eu lembrasse tão vividamente meu livros de química como eu lembrava dos livros de aventuras navais, eu saberia de antemão que a água do mar contém muitas outras substâncias químicas além do cloreto de sódio, entre elas o iodo. A coisa marrom tinha gosto amargo ao invés de salgado. Um químico mais habilidoso conseguiria, sem dúvida, refinar o produto. Eu desisti, em parte pela persuasão de meu hospedeiro que falava inglês, Roxy.
Os esquimós Mackenzie, disse-me Roxy, acreditam que o que é bom para adultos é bom para crianças, e apreciado por elas assim que elas acostumam-se. Desta forma, ensinam-nas a usar tabaco ainda muito pequenas. A criança então amadurece com a ideia de que você não pode viver se tabaco. Mas, disse Roxy, os baleeiros lhe disseram que muitos brancos vivem sem tabaco e ele mesmo havia visto homens brancos que jamais havia usado tabaco – e quanto às poucas mulheres, esposas dos capitães, nenhuma usava (isto, lembre-se, era em 1906).
Pois, Roxy ouvira, os homens brancos acreditam que o sal é bom – e mesmo necessário – para crianças, de modo que começam bem cedo a adicionar sal à sua comida. Esta criança então cresce com a mesma atitude em relação ao sal que os esquimós têm em relação ao tabaco. Entretanto, disse Roxy, uma vez que os esquimós estavam errados em pensar que o tabaco era tão necessário, quem sabe os homens brancos não possam estar igualmente errados no que diz respeito ao sal? Seguindo o argumento, ele concluiu que o motivo pelo qual todos os esquimós não gostavam de comida salgada enquanto todos os brancos gostavam não era racial, mas sim devido aos costumes. Você poderia, então, quebrar o hábito do sal tão facilmente quanto se quebra o hábito do tabaco e você não sofreria nenhum problema além do desconforto mental dos primeiros dias ou semanas.
Roxy não sabia, mas eu como antropólogo sabia que, em tempos pré-colombianos, o sal era desconhecido (ou seu gosto não era apreciado) e seu uso era evitado na maior parte das Américas do Norte e do Sul. É bem provável que os esquimós carnívoros, em cuja língua a palavra “salgado”, ou mamaitok, é sinônimo de “gosto ruim”, gostassem menos de sal do que índios que fossem parcialmente herbívoros. Ainda assim, está claro que o hábito do uso de sal espalhou-se mais lentamente no novo mundo a partir da Europa do que o hábito do tabaco espalhou-se pela Europa a partir dos índios da América. Mesmo hoje há ainda áreas consideráveis, por exemplo na bacia amazônica, onde os nativos ainda detestam o sal. Como não acredito que as raças sejam diferentes em sua natureza básica, senti-me inclinado em concordar com Roxy de que a prática de salgar a comida é uma herança cultural para nós, e que a crença em seus méritos é parte de nosso folclore.
Por intermédio deste pensamento, eu me conformei em ficar sem sal; no entanto, fiquei exultante quando Ovayuak, meu novo hospedeiro no delta oriental, veio para dentro de casa avisar que uma caravana de trenós puxados por cães se aproximava, e ele achava que era a caravana de Ilavinirk, um homem que havia trabalhado com os baleeiros e que possuiria uma lata de sal. De fato era Ilavinirk, e ele ficou muito satisfeito em me dar o sal – uma lata cheia pela metade, que ele disse carregar há 2 ou 3 anos esperando um dia encontrar alguém que a quisesse como presente. Ele pareceu quase tão contente em ver que eu queria a lata quanto eu ao ter acesso a ela. Eu coloquei uma pitada em meu peixe fervido, apreciei tremendamente, e anotei em meu diário que aquela fora a melhor refeição que tivera em todo o inverno. Então, coloquei a lata embaixo do travesseiro, da forma que os esquimós fazem para guardar seus pequenos tesouros. Mas, na próxima refeição, eu já havia praticamente terminado quando lembre do sal. Aparentemente, meu desejo pelo sal era o que você poderia chamar de imaginário. Eu terminei a refeição sem sal, tentei um pouco de sal em mais uma ou duas refeições nos dias seguintes, e depois o deixei intocado. Quando mudamos de acampamento, o sal ficou para trás.
Depois do retorno do sol, eu fiz uma viagem de várias centenas de milhas até o navio Narwhal que, ao contrário do que imaginávamos no final do verão, havia de fato retornado e passado o inverno ancorado na Ilha Herschel. O capitão era George P. Leavitt, de Portland, Maine. Durante os poucos dias de minha visita, eu apreciei a deliciosa cozinha de New England. Mas quando deixei a ilha Herschel, voltei sem nenhuma relutância para a refeições esquimós de peixe e água fria. Na verdade eu sentia que, física e mentalmente, eu nunca tivera melhor saúde em toda a minha vida.
III
Durante os primeiros meses de minha primeira visita ao Ártico, eu adquiri, embora naquele momento eu ainda não me dessa conta, a munição de fatos e experiência que, na minha própria mente, derrotariam as visões convencionais de nutrição aludidas no início deste artigo. Eu podia ser saudável comendo uma dieta exclusivamente de peixe e água. Quanto mais eu a seguia, mais eu gostava dela. O que significa que, ao menos como conjectura provisória e por meio de inferência, posso concluir que você nunca enjoa de sua comida quando você só tem uma coisa para comer. Eu não desenvolvi escorbuto na dieta de peixe exclusivo, e desconheço qualquer de meus amigos comedores de peixe que jamais tenha desenvolvido. Tampouco a ausência de escorbuto era devida ao fato de que os peixes eram consumidos crus – nós viemos a comprovar isso mais tarde (trataremos deste assunto no segundo artigo desta série). Certamente não havia sinais de endurecimento das artérias e pressão alta, ou de falha dos rins ou de reumatismo.Estes meses comendo peixe foram o início de um período de vários anos nos quais eu vivi com uma dieta exclusivamente de carne. Pois incluo peixe quando me refiro a uma dieta exclusiva de carne, usando o termo “carne” mais como um professor de antropologia do que como um editor de revista culinária. O termo, neste artigo e em outras discussões científicas assemelhadas refere-se a uma dieta na qual todas as coisas oriundas do reino vegetal estão ausentes.
Assim, minha estimativa é que vivi no Ártico por mais de 5 anos consumindo exclusivamente carne e água (não foram 5 anos consecutivos, é claro, mas este tempo distribuído durante um total de 10 anos). Um dos membros de minha expedição, Storker Storkensen, viveu sob uma dieta exclusiva de carne pela mesma quantidade de tempo, enquanto vários outros viveram de 1 a 3 anos na mesma dieta. Estas pessoas eram de várias nacionalidades e de três raças – brancos europeus comuns, nativos de Cabo Verde (com grande percentual de sangue negro) e nativos das ilhas dos mares do sul. Nem da experiência com meus próprios homens, nem tampouco do que ouvi de experiências similares de outros exploradores, pude achar qualquer diferença racial. Mas há diferenças individuais marcantes.
Tipicamente, uma dieta de carne começa quando três dentre cinco de nós saem de um acampamento de base que tem praticamente tudo o que de melhor em termos de comida europeia o dinheiro pode comprar. Os novatos são avisados de que é possível viver apenas de carne. Nós os alertamos que é duro acostumar-se nas primeiras semanas, mas lhes asseguramos que no final eles passarão a gostar e que qualquer dificuldade na mudanças de dietas deve-se somente à sua imaginação.
Os homens acreditam em variados graus nessas afirmações. Minha sensação é que, de cada 20 indivíduos, 2 ou 3 acreditam em mim completamente, e esta crença, juntamente com sua juventude e adaptabilidade os leva rapidamente à aceitar a dieta.
Normalmente, penso, os homens acreditam que o que lhes digo é verdade para mim, mas que eu sou peculiar, uma espécie de aberração – que uma pessoa normal não iria reagir da mesma forma, e que eles são normais e portanto passarão tempos terríveis. Suas experiências passadas parecem dizer-lhes que, se você come a mesma coisa todos os dias, você está fadado a enjoar-se dela.No fundo de suas mentes, há também o que eles leram e escutaram sobre a necessidade de uma dieta variada. Eles têm medos específicos de desenvolver doenças que eles ouviram falar que são causadas pela carne e prevenidas pelos vegetais.
Nós asseguramos nossa comida no Ártico pela caça, e no inverno não há luz suficiente para caçar. Assim, nós levamos conosco, a partir do acampamento de base, provisões para várias semanas – o suficiente para nosso sustento por longos dias. Durante este tempo, à medida que nos afastamos do litoral, nós ocasionalmente matamos uma foca ou um urso polar e consumimos a carne juntamente com nossos outros mantimentos. Nossos homens apreciam estes mantimentos como parte de uma dieta mista.
Nós não racionamos. Comemos o quanto queremos, e alimentamos os cães com o que achamos ser bom para eles. Quando as condições de viagem estão boas, comemos duas refeições grandes por dia, manhã e noite, mas quando ficamos presos pela tempestade somos retardados por áreas de água não congelada, comemos várias refeições para passar o tempo. Ao final de 4, 6 ou 8 semanas no mar, finalmente consumimos toda a nossa comida. Não tentamos guardar algumas guloseimas para consumir com foca e urso polar, pois a experiência demonstrou que tais coisas apenas aumentam a aflição.
Subitamente, temos apenas foca para comer. Pois embora nossa alimentação no mar seja composta de cerca de 10% de urso polar, há meses que não vemos um único urso. Os homens então, lealmente, voltam-se para a foca; eles foram voluntários e, qualquer que seja o sofrimento, eles pediram por isso e pretendem suportá-lo. Por um dia ou dois, comem uma refeição substancial. Então, o apetite começa a minguar e eles descobrem aquilo que no fundo já esperavam: que para eles, pessoalmente, as opções são meter a cara ou fracassar. Alguns admitem que não conseguem comer, enquanto outros fingem ter bom apetite, com o auxílio discreto de um cão para quem veladamente dispensam a sua parte. Em casos extremos, que normalmente são o dos homens conservadores e de meia-idade, eles passam 2 ou 3 dias sem comer praticamente ou absolutamente nada. Nós não possuíamos balança, mas eu estimo que alguns homens perdiam de 5 a 10 Kg fazendo trabalho duro de estômago vazio. Eles tornavam-se lúgubres e e resmungões e, como escrevi certa feita: “eles começam a dizer uns para os outros, e às vezes para mim, coisas sobre o que tinham na cabeça quando decidiram unir-se a uma expedição polar que eu não posso repetir”.
Mas após alguns dias mesmo os conservadores começam a beliscar a carne de foca, e depois de mais uns dias eles já estão comendo uma boa quantidade, ainda que sob protesto. Ao final de 3 ou 4 semanas estão comendo refeições substanciais, embora ainda falando que estariam dispostos a entregar a alma ou o braço direto por isso ou aquilo.Ironicamente, ou talvez instrutivamente, eles frequentemente desejam presunto e ovos, ou bife à milanesa, ou ainda carne em conserva quando, de acordo com a teoria, eles deveriam estar desejando frutas e vegetais. Alguns de fato referem desejos por coisas como chucrute ou suco de laranja; mas, mais frequentemente, o desejo é por panquecas com xarope ou pão com manteiga.Há duas formas de se olhar para uma mudança abrupta de dieta – o quão difícil é acostumar-se ao que você tem que comer, e o quão difícil é estar privado das coisas de que você gosta e está acostumado a comer. Do ponto de vista destas últimas coisas, eu considero fisiologicamente significativo que nossos homens, quando privados, desejem igualmente coisas consideradas uma necessidade para a saúde, como o sal; coisas nas quais um vício em drogas está envolvido, como o tabaco; e coisas consideradas como parte da cesta básica, como o pão.
Já vi acontecer em várias viagens, com um grupo de cerca de 20 homens cada vez, que eles tivessem de quebrar de uma só feita seus hábitos de sal, tabaco e pão. Frequentemente eu fiz a experiência de perguntar o que eles prefeririam: sal para a refeição, pão com a refeição ou tabaco para uma fumada pós-refeição. Em quase todos os casos os homens diziam não pensar mais nisso, e nunca houve qualquer unanimidade nas respostas.
Quando voltamos para o navio após vários meses de carne e água, eu costumo dizer que o comissário de bordo tem ordens de providenciar refeições separadas para cada membro da expedição, com o que ele quiser e quanto ele quiser. Especialmente durante os últimos 2 ou 3 dias, há grande quantidade de conversa entre os novatos, em parte sobre quais serão suas escolhas. Um homem deseja um prato cheio de purê de batatas; outro quer um galão de café e pão com manteiga; um terceiro talvez uma pilha de panquecas com xarope e manteiga.Ao chegar ao navio, cada um de fato recebe o quanto quer do que escolher. A comida tem gosto bom, embora não tão superlativo como eles imaginavam que seria. Eles disseram que comeriam muito, e de fato comem. Então eles ficam com indigestão, dor de cabeça, sentem-se péssimos e, dentro de uma semana, em nove de cada 10 casos que já comeram carne por 6 meses ou mais, eles estão dispostos a voltar para a dieta de carne. Quando um homem não está disposto a participar de uma segunda jornada de trenó, é normalmente por outras razões que não a comida.
Ainda assim, como deixei implícito, o veredito depende de por quanto tempo você ficou na dieta. Se, ao final dos primeiros 10 dias, nossos homens pudessem ser miraculosamente resgatados da dieta de focas e trazidos de volta para seus alimentos variados, a maioria deles juraria para sempre que estavam prestes a morrer ao serem resgatados, e jurariam que jamais experimentariam foca novamente – juramentos que seriam fáceis de manter, pois não há dúvida de que, em tais casos, mesmo anos depois, o simples ato de pensar em focas já seria suficiente para provocar náuseas. Se um homem comeu exclusivamente carne por apenas 3 ou 4 meses ele poderá ou não ficar relutante em voltar à dieta. Mas se o período foi de 6 meses ou mais, eu não lembro de nenhum homem que não estivesse disposto a retomar esta dieta. Além disso, aqueles que viveram sem vegetais por um período agregado de vários anos normalmente passam a comer um percentual de carne maior do que o cidadão mediano, quando têm condições para isso.
Revista Harper’s Monthly, Dezembro de 1935.
Agora que os experimentos dietéticos que Karsen Andersen e eu levamos a cabo no Hospital Bellevue já foram aceitos pelo mundo médico, é difícil imaginar que pudesse haver tamanha tempestade de excitação sobre o anúncio de nosso plano, tão violenta colisão de opiniões, e tanta unanimidade na previsão de resultados terríveis.
A sensação de que um estudo decisivo e controlado era necessário começara a se espalhar depois que eu contei a um dos diretores científicos do setor governamental responsável pela alimentação (“Food Administration”), em 1918, que eu vivera muito bem por um total de 5 anos comendo apenas carne e água. O momento crucial foi em 1920 quando eu tive a oportunidade de explicar por uma hora a dieta de carne para os médicos da Clínica Mayo. A fase de conclusão começou em 1928 quando o Sr. Andersen e eu demos entrada no Hospital Bellevue a fim de oferecer à ciência a primeira chance na história de observar cobaias humanas enquanto viviam através do frio do inverno e do calor do verão, por 12 meses, numa dieta exclusiva de carne. E deveríamos fazê-lo sob condições de vida urbana comum.No início de nosso trabalho nórdico em 1906 era sabedoria convencional entre médicos e nutricionistas que o homem não pode viver apenas de carne. Eles acreditavam, especificamente, que uma série de doenças sérias eram ou causadas diretamente pela carne, ou preveníveis apenas por vegetais. Tais crenças ainda existiam quando, no outono de 1918, um velho amigo, Frederic C. Walcott (que mais tarde viria a ser senador por Connecticut), decidiu que minhas experiências e as opiniões resultantes eram revolucionárias em certas áreas, e apresentou-me ao professor Raymond Pearl, da Johns Hopkins, que trabalhava então no ramo governamental responsável pela alimentação (“U.S. Food Administration”) em Washington. Pearl considerava várias coisa que lhe contei incômodas no que diz respeito aos pontos de vista vigentes. Ele então me entrevistou perante um datilógrafo, e mandou o texto resultante para vários nutricionistas. Suas respostas variaram desde concordância com ele (e comigo) até a observação de David Hume de que é mais provável que você encontre mil mentirosos do que um milagre.
Pearl estava convencido de que não se tratava nem de mentiras e nem de milagres, e propôs que nós escrevêssemos um livro sobre nutrição. Eu concordei, mas outros compromissos surgiram e a coisa se arrastou.
Em 1920 eu tive a referida chance de falar na Clínica Mayo, em Rochester, Minnesota. Um dos irmãos Mayo sugeriu que eu passasse duas ou três semanas na clínica para fazer um check-up e ver se eles conseguiam achar alguma evidência dos supostos efeitos ruins da carne. Eu bem queria, mas compromissos em Nova Iorque me impediram.
Então, certo dia, enquanto falava com o gastroenterologista Dr. Clarence W. Lieb, eu lhe contei sobre meu arrependimento de não poder ter aproveitado a oferta de check-up da Clínica Mayo. Lieb então disse que havia bons médicos com Nova Iorque também, e se voluntariou para reunir uma junta de especialistas que me submeteria a uma bateria de testes tão rígida quanto qualquer coisa que pudesse ser feita na Clínica Mayo.A junta médica foi organizada, eu me submeti à testagem, e o Dr. Lieb publicou os resultados na revista da Associação Médica Americana (JAMA – Journal of the American Medical Association) de 3 de julho de 1926 sob o título de “Os efeitos de uma dieta prolongada exclusivamente de carne”. A junta médica não detectou nenhum traço de nenhum dos supostos efeitos deletérios da carne.
Com esta publicação, os trabalhos de Lieb e Pearl uniram-se. Pois quando o Instituto das Indústrias Processadoras de Carne da América escreveu-nos pedindo permissão para reproduzir uma grande quantidade de cópias do artigo para distribuição à classe médica e aos nutricionistas, Lieb, Pearl e eu resolvemos nos reunir. O resultado foi uma carta ao Instituto dizendo que recusávamo-nos a permitir a reimpressão, mas sugerindo que eles poderiam conseguir algo muito melhor e mais valioso para publicação, e com os direitos para publicar, se fornecessem fundos para uma instituição de pesquisa para realizar uma séria de experimentos desenhados para verificar, sob as condições de vida urbana, os questionamentos oriundos de minhas experiências e pontos de vista. Pois era a opinião de muitos que uma dieta exclusiva de carne poderia funcionar em um clima muito frio, mas não em um clima quente; que poderia funcionar nas condições árduas do Ártico, mas não nas condições comuns (sedentárias) da vida urbana americana.
Nós alertamos os Processadores de Carne que a instituição que fosse escolhida trabalharia com total isenção a fim de garantir que nenhum resultado fosse colocado sob suspeita em virtude da origem do dinheiro.
Após muita negociação, o Instituto concordou em fornecer o dinheiro. A instituição selecionada foi o Instituto de Patologia Russel Sage. O comitê encarregado era composto por líderes das áreas científicas mais relevantes para o problema, e representava um total de sete instituições de pesquisa:
Museu de História Natural: Dr. Clark Wissler
Escola de Medicina da Universidade Cornell: Dr. Walter L. Niles
Universidade de Harvard: Drs. Lawrence J. Hendereson, Earnest A. Hooton e Percy Howe.
Instituto das Indústrias Processadoras de Carne da América: Dr. C. Robert Moulton
Universidade Johns Hopkins: Drs. William G. McCallum e Raymond Pearl
Instituto de Patologia Russel Sage: Drs. Eugene F. DuBois e Graham Lusk.
Universidade de Chicago: Dr. Edwin O Jordan
Independentes: Dr. Clarence W. Lieb e Vilhjalmur Stefansson.
O presidente do comitê era o Dr. Pearl. O principal trabalho de pesquisa foi chefiado pelo Dr. DuBois, que é atualmente o diretor médico do Hospital New York e do Instituto de Patologia Russel Sage. Entre seus colaboradores estavam Dr. Walter S. McClellan, Dr. Henry B. Richardson, o Sr. V. R. Rupp, o Sr. G. F. Soderstrom, Dr. Henry J. Spencer, Dr. Edward Tolstoi, Dr. John C. Torrey e Sr. Vincent Toscani. A supervisão clínica ficou a cargo do Dr. Lieb.
Após encontros do comitê supervisor, eleição de um subcomitê executivo e de muita discussão, foi decidido que, conquanto o experimento devesse ser dirigido estritamente aos problemas científicos, levaríamos em conta algumas crenças populares. Por exemplo: nossa definição de uma dieta de carne como sendo “uma dieta na qual todos os elementos vegetais foram excluídos” permitiria-nos usar leite e ovos, visto que não são vegetais. Mas alguns vegetarianos são suficientemente ilógicos para permitir ovos e leite em suas dietas; nós, então, concordamos em ser igualmente ilógicos e excluir estes alimentos também. Isto eliminaria a possível desculpa de que nós fôramos salvos dos efeitos maléficos de uma dieta sem vegetais devido ao leite e aos ovos.
O objetivo do projeto não era, como a imprensa chegou a alegar, “provar” uma coisa ou outra. Não estávamos tentando provar ou refutar nada; estávamos meramente em busca dos fatos. Cada aspecto dos resultados seria estudado, mas uma atenção especial seria dada a certas visões comuns, tais como a de que o escorbuto se desenvolveria pela ausência de vegetais, de que outras doenças causadas por deficiências surgiriam, de que haveria prejuízos nos sistemas circulatório e renal, de que certos microorganismos perigosos proliferariam no trato intestinal e de que haveria deficiência de cálcio.
O teste foi originalmente planejado comigo como sendo a única cobaia, mas eu poderia ser atingido por um raio antes que conclusões fossem obtidas, ou poderia ser atropelado por um caminhão, e isso seria interpretado pelos vegetarianos e pelas pessoas de dietas mistas como um indicador de que eu estava prejudicado em minha acuidade mental e vigor físico pela monotonia e pelo veneno da carne. Era difícil achar um colega, pois você não pode conduzir este tipo de experimento em qualquer um que apareça, por alguns motivos.
Imagine que a notícia de uma quebra da bolsa de valores é dada às pessoas após as mesmas consumirem uma boa refeição. A digestão se interromperia quase que de imediato. Obviamente a indigestão que se seguiria não teria nada a ver com a comida em si.
Ou convide alguns amigos facilmente impressionáveis para almoçar. Sirva-lhes vitela, de boa qualidade e bem preparada. Quando a refeição houver terminado, você pergunta sobre a vitela; eles responderão com os cumprimentos habituais. Então, diga-lhes que sua hipótese foi comprovada. Seu cão Rex morreu, e eles acabaram de comê-lo. Se você for um bom ator, ao menos alguns de seus convidados sairão correndo para o banheiro. O que os adoeceu não foi a carne de cachorro, mas a ideia de que houvessem consumido carne de cachorro.
Assim, o experimento de Russel Sage não poderia ser conduzindo com alguém que fosse controlado por fortes crenças dietéticas, tais como a de que a carne faz mal, que abstinência de vegetais traz problemas, ou de que você enjoa de uma comida se você tem que comê-la todos os dias. Mas quase todas as pessoas acreditam nestas coisas. Assim, ficamos praticamente compelidos a escolher membros de uma de minhas expedições; eles eram os únicos europeus vivos que sabíamos haver usado carne por tempo suficiente a ponto de eliminar completamente estes bloqueios mentais.
Por sorte, havia um homem disponível. Seu nome era Karsten Andersen, um jovem dinamarquês que havia sido membro de minha terceira expedição polar. Durante aquela época, ele viveu mais de um ano em uma dieta estritamente de carne e água sem ter sofrido nenhum problema. Na verdade, ele havia sido curado pela dieta de carne de um escorbuto que havia desenvolvido previamente em sua dieta mista. Ademais, ele sabia pela convivência com uma dúzia de companheiros de expedição que sua saudável apreciação pela dieta não lhe era peculiar, mas comum a todos que tentavam, incluindo membros de 3 raças – brancos, homens negros de Cabo Verde e homens oriundos das ilhas dos mares do sul.
Mas havia outras coisas que tornavam Andersen incrivelmente talhado para nosso experimento. Por vários anos ele vinha trabalhando por conta própria na Flórida, passando a maior parte do tempo na rua e sem camisa, exposto aos benefícios do sol subtropical. Em tal ambiente físico e mental, ele vinha naturalmente seguindo uma dieta fortemente baseada em vegetais, e sofria constantemente de sinusites, seu cabelo estava rareando e vinha desenvolvendo uma condição associada com “toxemia intestinal” que faria qualquer médico olhar seriamente e dizer “você deve reduzir seu consumo de carne” ou “eu receio que você deverá eliminar completamente a carne”.
Não conseguíamos achar nenhuma outra pessoa como Andersen, cuja mente não atrapalharia seu corpo neste experimento. Assim, em janeiro de 1928, o teste começou para nós dois, sob a supervisão direta do Dr. DuBois e sua equipe na ala dietética do Hospital Bellevue, em Nova Iorque.
Uma onda de protestos de amigos surgiu quando a imprensa anunciou que estávamos nos internando em Bellevue. Estes protestos eram fundamentalmente devidos a relatos de que comeríamos carne crua e à crença de comeríamos exclusivamente carne magra pura. O primeiro era apenas uma falso rumor. O segundo problema era semântico.
Comer carne crua, nossos amigos diziam, nos tornaria párias sociais. É completamente aceitável comer ostras e moluscos crus nos Estados Unidos, arenque cru na Noruega; vários tipos de peixe cru no Japão; e carne praticamente crua em quase todos os países desde que você mude seu nome de “cru” para “mal passado”. A moda de oferecer pedaços de carne crua para crianças pequenas estava se espalhando, mas nós não éramos bebês e não podíamos nos aproveitar desta exceção…
A resposta à questão da carne crua foi explicar os procedimentos básicos de nosso experimento – Andersen e eu escolheríamos a comida de acordo com nosso paladar (desde que fosse carne). Resulta que, na maioria de nossas refeições por um ano, Andersen preferia ao ponto e eu, bem passado.
O problema semântico veio de uma mudança recente no emprego das palavras no inglês americano. No inglês elizabetano (inglês antigo), carne (“meat”) era qualquer tipo de comida, como na expressão “meat and drink” – “comida e bebida”. Na Inglaterra atual, o termo servia para carne em geral. Mas, nos EUA, o termo vinha sendo usado de forma cada vez mais restrita, em geral sendo entendido como carne bovina magra.
No aspecto linguístico, nós também tranquilizamos nossos amigos. Nossa dieta seria de carne no sentido britânico do termo (carnes em geral, de qualquer animal). Apenas viveríamos sob condições modernas mas com a dieta de nosso ancestrais mais ou menos remotos; a mesma comida, também, de alguns “caçadores primitivos” contemporâneos.
II
Durante nossas primeiras 3 semanas no hospital Bellevue, fomos alimentados com quantidades pré-mensuradas do que poderia ser descrito como uma dieta mista padrão: frutas, cereais, ovos e bacon para café da manhã; carnes, vegetais e frutas para almoço e janta. Durante este período, vários especialistas nos examinaram sob todos os ângulos que pudessem der pertinentes.
Mais tediosos e, esperemos, proporcionalmente valiosos, foram os testes em calorímetro. Em jejum desde a noite da véspera, nós éramos conduzidos no final da manhã à sala de calorimetria na qual tínhamos de sentar quietos por uma hora apenas para eliminar os efeitos fisiológicos de ter subido um mero lance de escadas. Então, com o menor esforço possível, nós entrávamos dentro dos calorímetros, que pareciam grandes caixões com as laterais de vidro, e então todos esperavam mais uma hora até que nossos corpos voltassem ao estado de repouso após o mínimo esforço de ter entrado lá dentro. A caixa então era lacrada e, por três horas, nós ficávamos deitados lá dentro tão imóveis quanto possível enquanto uma legião de cientistas, visíveis através do vidro, estudava nossos processos corporais químicos e fisiológicos. Não tínhamos permissão sequer para ler, e éramos aconselhados a nem mesmo pensar em nada particularmente agradável ou desagradável, pois pensamentos e sentimentos podem aquecê-lo ou resfriá-lo, acelerar ou desacelerar as coisas, enfim, bagunçar os processos “normais” do organismo.
(O Dr. DuBois contou-nos de um teste de calorimetria arruinado por uma perturbação emocional. Um romeno nervoso chamado Max havia desenvolvido uma intensa antipatia por um outro paciente chamado Kelly. Durante a segunda hora de um teste que estava transcorrendo normalmente, Max viu rapidamente o odiado Kelly através do vidro. Isto bastou para elevar seu metabolismo em 10% durante uma hora inteira.)
Com o ar que respirávamos e o restante do que entrava e saía de nossos corpos cuidadosamente analisados, com a química de nosso sangue determinada e com uma checagem nos milhões de microrganismos que habitam o trato intestinal humano, estávamos agora prontos para a carne.
Durante as 3 semanas de dieta mista e check-up preliminar, estávamos livres para ir e vir. A partir de agora, estávamos trancafiados. Nenhum de nós tinha permissão para ficar fora da vista de um medico ou enfermeira em nenhum momento, dia ou noite. Isto era em parte a rigidez normal de um experimento científico controlado, mas era também uma exigência em função do ceticismo dos defensores das dietas mistas e da verdadeira tempestade emocional que tomava conta das hordas vegetarianas.
O ceticismo e excitação não eram apenas por parte da imprensa. Uma das mais importantes autoridades europeias, muito ortodoxo, estava em visita aos EUA. Durante as 3 semanas preliminares, ele falou a nós e aos médicos, de forma solene, que nós jamais conseguiríamos aguentar mais do que 4 ou 5 dias apenas com carne. Ele próprio havia tentado em alguns pacientes, que normalmente desistiam em torno do terceiro dia. Tais desistências, eu pensei, eram de caráter psicológico; mas nossa autoridade europeia afirmou que os motivos eram estritamente fisiológicos – independentes de emoções.
O experimento começou de forma tranquila para Andersen, que podia comer o quanto quisesse do que gostasse, desde que pudesse ser definido como carne – filés, costeletas, miolos fritos em gordura de bacon, costelas, frango, peixe, fígado e bacon. Já no meu caso, houve um pequeno problema, de certa forma previsível.
Eu havia previamente publicado, em 1913, nas páginas 140-142 de meu livro “Minha vida com os esquimós” uma narrativa de como eu e alguns nativos ficáramos doentes quando tivemos de de passar 2 ou 3 semanas comendo apenas carne magra – um caribu tão magro que não possuía gordura visível nem mesmo atrás dos olhos ou no tutano dos ossos. Assim, quando o Dr. DuBois sugeriu que eu começasse o período de dieta exclusiva de carne comendo as maiores quantidades possíveis de carne picada sem nenhuma gordura, eu antevi problemas. Mas ele me disse para tentar mesmo assim, pois na minha história leváramos 2 a 3 semanas para adoecer, e ele propunha apenas 2 ou 3 dias. Então e concordei.
O principal motivo de me colocar abruptamente em uma dieta de carne magra exclusiva era o de me contrastar com Andersen, que estava consumindo uma dieta de carne normal, com a proporção de carne e gordura determinada pelo seu paladar.
Como já disse, no Ártico nós adoecemos após a segunda ou terceira semana desprovida de gordura na dieta. Desta vez, eu adoeci no segundo dia. A diferença entre Bellevue e o Ártico era, sem dúvida, a existência de uma pequena quantidade de gordura em nosso caribu polar – nós havíamos comido o tecido que ficava atrás dos olhos e quebrado os ossos para comer o tutano e, ao fazer tudo o que podíamos para conseguir um pouco de gordura nós evidentemente tivemos mais sucesso do que imaginávamos à época. Já em Bellevue a carne, cuidadosamente escrutinada, era tão magra quanto um tecido muscular o pode ser. No Ártico, nós consumíamos tendões e outros tecidos não digeríveis, nós mastigávamos as extremidades mais macias dos ossos de forma que, tentando consumir alguma gordura, acabávamos por consumir tecidos que ocupavam espaço no estômago. O que comíamos em Bellevue não continha resíduos não digeríveis, de modo que meu estômago conseguia acomodar uma quantidade bem maior deste músculo magro.Os sintomas produzidos em Bellevue por esta dieta de carne incompleta (isto é, músculo sem gordura) eram exatamente os mesmos do Ártico, porém vieram mais rapidamente – diarreia e uma sensação de incrível desconforto generalizado.
No polo, os esquimós e eu fomos imediatamente curados quando conseguimos um pouco de gordura. O dr. DuBois agora curou-me da mesma maneira, dando-me filés com capa de gordura, miolos fritos em gordura de bacon e coisas deste tipo. Em 2 ou 3 dias eu já estava ok, mas havia perdido uma quantidade considerável de peso.
III
Durante as primeiras 3 semanas eu era observado noite e dia pelo staff do Instituto. Minha atividade física deveria ser a de um típico homem de negócios. Eu saía para caminhadas, mas sempre sob guarda. Se eu ia telefonar, um funcionário vigiava na porta da cabine telefônica; se eu fosse uma loja, o funcionário nunca ficava a menos de uns poucos metros; e ele estava sempre vigilante. Como explicou o Dr. DuBois, e como eu já sabia antecipadamente, isto não era porque a equipe de supervisão suspeitasse de mim, mas sim por que eles queriam poder afirmar que eles sabiam, com seus próprios olhos, de minha total abstinência de quaisquer sólidos e líquidos exceto aqueles que eu recebia em Bellevue, e que consumia apenas enquanto observado pelo staff.
Mas minhas responsabilidades infelizmente exigiam que eu viajasse muito pelos EUA e Canadá. Este foi mais um motivo pelo qual Andersen havia sido selecionado para o experimento. Quando, após 3 semanas, eles tiveram de me colocar em “liberdade condicional”, por assim dizer, eles o mantiveram trancafiado no hospital por mais de 90 dias.
Aqueles que acreditavam que uma dieta de carne exclusiva levaria à morte haviam estabelecido qualquer coisa entre 4 a 15 dias como sendo o ponto em que o Dr. Lieb, como supervisor clínico, teria de suspender o experimento para proteger nossas vidas. Aqueles que esperavam por uma deterioração mais lenta de nossa saúde haviam estimado o aparecimento de terríveis sintomas muito antes de 90 dias. De qualquer forma, a dieta foi mantida mesmo depois de 90 dias, e Andersen reportava-se constantemente ao hospital depois de ser liberado da internação, e eu o fazia sempre que estava em Nova Iorque.
Depois de minhas 3 semanas no hospital (e das 13 semanas de Andersen), em com as constantes análises de nosso sangue e excreções quando voltávamos ao hospital para check-ups, os médicos tinham certeza de que detectariam facilmente qualquer quebra na dieta. Ademais, muito antes do término das 13 semanas eles haviam se convencido de que Andersen não apresentava nenhum desejo intenso por frutas e vegetais e, portanto, nenhum forte motivo para a quebra de contrato.
Próximo ao fim de nosso ano de contrato, Andersen e eu retornamos a Bellevue para um round final de estudos intensivos de algumas semanas de dieta internados, seguidas de 3 semanas de dieta mista. Nesta ponta do experimento, tudo transcorreu normalmente comigo, mas não com Andersen.
Meu problema, lembre-se, havia ocorrido no início quando me encheram de músculo magro, sem nenhuma gordura. A dificuldade de Andersen, ou ao menos seu incômodo, começou no segundo dia depois que ele completou um ano comendo apenas carne (25 de janeiro, 1929), quando lhe foi solicitado que comesse toda a gordura que fosse capaz, até o limite da náusea, permitindo apenas uma minúscula porção de carne magra ao dia, em torno de 45 gramas. Deixaram-no então no limite da náusea por uma semana inteira. Na segunda semana, adicionaram seu primeiro gostinho de um vegetal – couve frita redundando em cerca de 35 gramas de carboidratos ao dia. Na terceira semana omitiram a couve mas mantiveram a alta proporção e gordura.
Estas 3 semanas, disse Andersen, foram a única parte difícil de todo o experimento. Olhando para trás, ele acha que, tirando a náusea, havia ainda outros tipos de mal estar. Ele, em verdade, não se sentia muito bem ao final daquelas 3 semanas. Entretanto, isto poderia ser apenas especulação ou produto de sua imaginação.
Voltando aos fatos, ocorre que uma terrível epidemia de pneumonia estava varrendo Nova Iorque (nota do tradutor – isto foi muitos anos antes da descoberta dos antibióticos). O hospital estava abarrotado de pacientes; alguns membros do staff contraíram a doença, e Andersen também. Era pneumonia tipo II no seu caso, e o médicos estavam profundamente preocupados, pois este tipo em particular vinha provando-se mortal nesta epidemia, matando 50% de suas vítimas em Bellevue. Andersen, contudo, reagiu rapidamente ao tratamento, teve um quadro menos duradouro do que o normal, recuperando-se rapidamente.
IV
Os resultados gerais do experimento foram, tanto quanto Andersen e eu conseguimos vislumbrar, e tanto quanto os médicos puderam dizer, que nós estávamos com nossa saúde geral no mínimo tão boa durante aquele ano quanto estávamos durante as três semanas de dieta mista do início. Nós pensamos, inclusive, que nossa saúde estava até mesmo melhor do que antes. Nós apreciamos e prosperamos igualmente com carne no verão e no inverno, e não sentimos nenhum desconforto a mais com o calor do que os outros novaiorquinos.
Em virtude das estranhas crenças atualmente vigentes (de que as carnes no verão devem ser mais “leves”), vale a pena enfatizar que nós apreciamos nossa carne tão gorda em julho quanto em janeiro. Isto não deveria surpreender os americanos (embora normalmente os surpreenda) pois eles sabem ou já ouviram falar que carne de porco gorda é a base da alimentação dos negros no Mississipi (um estado do sul do EUA, com temperaturas elevadas). Nossa literatura negra exalta a carne gorda, e os negros não desenvolveram esta preferência por gordura quando chegaram aos estados sulistas, pois Carl Akerly relata histórias de consumo de tanta gordura na África tropical que superaria o consumo dos esquimós. Uma queixa frequente dos turistas na Espanha é a de que a comida nada em óleo, e há queixa semelhantes quando visitamos a América Latina. Nós descobrimos, quando paramos para pensar, que muitos (senão a maioria) dos povos tropicais adoram comida gordurosa.
E há a crença paralela de que o maior consumo de carne ocorre nos países frios. Bem, é verdade que os povos que consomem 100% de carne vivem muito ao norte, como os Esquimós, os Samoyeds e os Chukchis. Mas os maiores consumidores de carne de língua inglesa são os australianos, tropicais e subtropicais, enquanto o mais próximo que você chega de uma dieta exclusiva de carne entre pessoas de origem europeia é a Argentina, onde os homens do campo vivem basicamente de carne e erva mate. E eles gostam de sua carne gorda e (ao menos é o que me conta um argentino que mora em Nova Iorque) correm o risco de largar o emprego (ao menos o fariam 20 anos atrás) se você tentar alimentá-los com quantidades consideráveis de cereais, saladas e frutas.Parece que, exceto quando as preferências são controladas pela moda e pela propaganda, o desejo pela gordura, seja inverno ou verão, depende do que mais você come. Se a sua dieta é baseada em carne, você simplesmente precisa de gordura junto com esta carne; do contrário, você adoeceria e morreria. Mas uma vez que gorduras, açúcar e amido são, do ponto de vista prático, energeticamente equivalentes, se você come uma quantidade maior de um deles em uma dieta mista, você acaba diminuindo a quantidade combinada dos outros dois.
Sir Hubert Wilkins, quando vivíamos no Ártico juntos, ambos consumindo exclusivamente carne, contou-me o que permanece meu melhor exemplo de como a gordura acabou escanteada por força do comércio, moda e custo. No quesito custo, por exemplo, a gordura, que é apenas duas vezes mais nutritiva do que o açúcar, custa, no momento em que escrevo e no comércio das redondezas, 50 centavos por libra (bacon) ou 35 centavos por libra (manteiga), enquanto o açúcar custa apenas 5,5 cents.O pai de Sir Hubert, a primeira criança branca a nascer no sul da Austrália, disse que, quando ele era jovem, os tropeiros, que constituíam a maior parte da população, comiam praticamente exclusivamente carne de ovelha (e eventualmente de gado) e chá. Durante todo o ano eles matavam a ovelha mais gorda para o seu próprio uso e, quando ao ar livre, o que era frequente, eles assavam as partes mais gordas no fogo com uma panela em baixo para coletar a gordura que pingava; mais tarde, mergulhavam os pedaços de carne na gordura antes de comer. Mas aos poucos o comércio foi se desenvolvendo, pães, confeitos e doces passaram a ser usados, geleias e compotas foram importadas e fabricadas e, com o avanço dos amidos e açúcares, o uso de gordura foi perdendo espaço. Hoje, exceto pelo fato de os australianos consumirem mais carne por ano do que os britânicos, a proporção de gordura em relação ao restante da dieta é provavelmente a mesma na Austrália que no resto do Império Britânico.
Uma conclusão de nosso experimento que a profissão médica aparentemente tem tido dificuldade em assimilar, mas que ao mesmo tempo é um de nossos resultados mais evidentes, é que uma dieta de carne normal não é uma dieta de alta proteína.Nós comíamos em média 600g de carne magra e 220g de gordura (isto equivale aproximadamente a comer um contra-filé de 900 gramas grelhado, com a gordura que este corte naturalmente contém). Em princípio, parece ser predominantemente carne (músculo); mas, quando fazemos as contas, você descobre que, em unidades de energia, estávamos de fato consumindo três quartos de nossas calorias em gordura. E é isso que os cientistas querem dizer quando afirmam que nossa dieta não era assim tão alta em proteínas.
Que a carne, como alguns alegam, é um alimento particularmente estimulante, eu verifiquei durante nosso experimento em Nova Iorque, na medida em que eu me sentia mais otimista e energético do que normalmente. Eu esperava com mais entusiasmo pelo dia seguinte, pelo próximo trabalho e tinha maior probabilidade de experimentar prazer e sucesso. Isto pode ter alguma importância nos relatos comuns de que os esquimós não civilizados são as pessoas mais felizes do mundo. Já foram postuladas muitas explicações – que a vida de um caçador é agradável, ou que os pobres coitados simplesmente não têm noção de quão mal vivem. Agora, podemos acrescentar esta sugestão, de que o otimismo possa ser diretamente causado pelo que eles comem.
Algumas coisas bem precisas podem ainda ser ditas sobre como passamos o ano na dieta de carne. Por exemplo, enquanto o Dr. DuBois nos cronometrava, a cada poucas semanas nós corríamos ao redor do reservatório do Central Park, depois até a sua casa, subindo as escadas de 2 ou 3 degraus a cada vez e nos precipitando sobre macas onde cientistas registravam nossa respiração, pulso e outras reações orgânicas. Tais testes parecem mostrar que nossa força física aumentara com o transcorrer do período da dieta de carne.
Andersen, que tivera uma sinusite atrás da outra enquanto trabalhava quase nu nos pomares de laranja da Flórida, sofrera apenas 2 ou 3 ataques durante o ano de carne em Nova Iorque, e foram episódios rápidos e leves. Seu cabelo não voltou a crescer, mas parou de cair. Como já dissemos, de acordo com o relatos dos médicos, Andersen estava acometido por alguns microorganismos intestinais produtores de toxinas quando veio da Flórida, para os quais normalmente os médicos prescreveriam a eliminação da carne da dieta. Sua condição não se manifestou nenhuma vez durante a dieta de carne exclusiva.
Um aspecto de nosso experimento tem relação com emagrecer, afinar, reduzir medidas – o tratamento da obesidade. Eu estava cerca de 5 Kg acima de meu peso no início da dieta de carne, e perdi todo o peso. Isto me lembra de dizer que os esquimós, quando ainda em sua dieta nativa de carnes, nunca são gordos – eu pelo menos nunca vi nenhum. Eles podem ser fortes, robustos. Alguns, especialmente mulheres, são mais pesados na meia-idade do que quando jovens. Mas nunca são “corpulentos” na nossa acepção do termo.
Quando você vê esquimós em suas roupas tradicionais, você pode ter a impressão de rostos redondos e gordos em corpos gordos e redondos, mas o rosto redondo é uma peculiaridade da raça e o resto do efeito é produzido por roupas largas e estufadas. Veja-os nus, e você não encontrará as protuberâncias abdominais e dobras que são tão numerosas nas praias de Coney Island e que se constituem em argumentos tão persuasivos contra o nudismo.
Não há imunidade racial dos esquimós contra a corpulência. Isto é comprovado por quão rápido eles ficam gordos e o quão gordos eles ficam com dietas europeias.
Apenas um dos receios quanto aos experimentos resultou ser verdade – nossa dieta daquele ano foi deficiente em cálcio. Isto não foi demonstrado por nenhum teste feito em mim ou em Andersen, e certamente você você não poderia provar isso nos questionando ou olhando para nós, eis que sentíamo-nos e parecíamo-nos melhor do que nossa média de anos passados. A deficiência de cálcio apareceu somente através da análise dos alimentos pelos químicos.
Parte de nossa rotina era fornecer aos químicos pedaços de carne o mais idênticos possível ao que comíamos para análise. Por exemplo, um cordeiro era dividido em dois no meio da espinha e as costeletas de um lado eram assadas para nós e as do outro lado eram analisadas pelos químicos. Quando a dieta era de contra-filé, eles recebiam um equivalente ao nosso. O único aspecto no qual a dieta não era idêntica ao que era analisado era que Andersen e eu seguíamos o costume esquimó de comer os ossos de peixe e mastigar as pontas das costelas; desta fontes nós com certeza obtivemos uma certa quantidade de cálcio.
Mais para o fim do experimento, ficou evidente que nós não estávamos consumindo uma quantidade suficiente de cálcio para a saúde. Não obstante, estávamos saudáveis. Para escapar deste dilema, postulamos que uma deficiência de cálcio que não nos prejudicava em um ano poderia destruir-nos em 10 ou 20 anos.
Se você procura por deficiência de cálcio, você estuda ossos. O que tinha de ser feito, então, era estudar os esqueletos de pessoas que houvessem morrido em idade relativamente avançada após terem vivido desde a infância com uma dieta de carne exclusiva. Tais esqueletos são aqueles dos esquimós que morreram antes da chegada dos europeus. O Instituto das Indústrias Processadoras de Carne da América foi induzido a fazer uma dotação orçamentária para o Museu Peabody, da Universidade de Harvard, onde o Dr. Earnest A. Hooton, professor de antropologia física, conduziu um estudo relativo ao problema do cálcio na coleção de esqueletos de comedores de carne em posse daquele museu. O Dr. Hooton reportou não haver nenhum sinal de deficiência de cálcio. Pelo contrário, ao que tudo indicava os comedores de carne pareciam ter sido liberalmente, ou ao menos adequadamente supridos. Eles não sofreram mais de deficiência de cálcio durante uma vida inteira do que nós sofreramos em nosso curto ano (curto de fato, pois nós o desfrutamos com prazer).
Revista Harper’s Monthly, Janeiro de 1936.
O escorbuto sempre foi o inimigo dos exploradores. Quando Fernão de Magalhães navegou ao redor do mundo 400 anos atrás muitos membros de sua tripulação morreram de escorbuto, enquanto outros por vezes ficavam tão fracos que mal podiam manejar os navios. Quando a expedição de Robert F. Scott foi ao polo sul 23 anos atrás, suas forças foram gradualmente destruídas pelo escorbuto; eles não conseguiram manter seu plano de viagem e acabaram todos mortos. Mas o escorbuto não foi apenas inimigo dos exploradores. Vinte anos atrás o exército britânico no oriente próximo foi seriamente dilapidado, e em outubro passado um médico americano reportou que 100 soldados etíopes morriam por dia de escorbuto. A doença grassou livre durante as corridas do ouro do Alaska e do Yukon em 1896. Grande quantidade de mineiros morreu e centenas sofreram.
A profissão médica e os leigos acreditaram por mais de cem anos saber exatamente como prevenir e curar a doença; ainda assim, o método usado sempre falhava em testes realmente severos.
A premissa da qual os médicos partiam era a de que os vegetais, particularmente as frutas, preveniam e curavam o escorbuto. Uma vez que a dieta consiste de animais e plantas, conclui-se que o escorbuto era causado pela carne e curado pelas plantas. Por fim, os médicos padronizaram o suco de lima como a melhor prevenção e tratamento. Denominaram-no uma cura garantida e específica. Os políticos seguiram os médicos. Está escrito nas leis de vários países que, em viagens longas, a tripulação deverá receber suco de lima e ser induzida ou compelida a tomá-lo.
Graças a material obtido da Real Polícia Montada do Canadá e da Guarda Florestal, tenho em meus diários e anotações muitos casos de morte e sofrimento por escorbuto durante a corrida do ouro do Alaska e Yukon. Os mineiros geralmente começavam a adoecer no fim do inverno. Eles subsistiam à base de feijões, bacon, biscoitos, arroz, aveia, açúcar, frutas secas e vegetais secos. Quando davam-se conta de que seu problema era escorbuto, tomavam todas as providências que podiam para obter as coisas que acreditavam que lhes curariam. Aparentemente, os mineiros tinham muita fé em batatas cruas. Estas tinham de ser trazidas de muito longe, e há histórias de heroísmo de homens que enfrentaram as terras selvagens e geladas para socorrer seus camaradas com algumas batatas. Havia crenças similares nas virtudes das cebolas e de alguns outros vegetais. Curiosamente, havia descrença nos vegetais que eram disponíveis no local, ou então acreditava-se que estas plantas deveriam ser tratadas de tal forma que, hoje sabemos, destruíam seu valor. Por exemplo, um homem poderia ser curado ou ao menos ajudado com uma salada de folhas ou mesmo de cascas de árvores. Mas os mineiros faziam chá, fervendo as agulhas de pinheiro e a casca de salgueiro, destruindo suas propriedades. Se tinham acesso a carne fresca, ferviam-na até desmanchá-la, e bebiam o caldo. A morte em geral ocorria em 2 a 4 meses a contar do início reconhecido da doença.
Ignorando a dizimação de exércitos e o fardo representando por esta doença em muitos aspectos da vida civil através dos tempos, nos voltamos para os exploradores, a classe cuja morte por escorbuto recebeu mais publicidade.
Não é raro mencionar James Cook, de 150 anos atrás, entre os grandes exploradores de todos os tempos. Boa parte desta fama pode ser atribuída à sua descoberta de como prevenir e curar o escorbuto. Livros de medicina nomeiam-no como o pioneiro nesta área, dizendo que devemos a ele a conquista desta terrível doença. Pois ele demonstrou que, com vegetais (novamente, particularmente frutas) o escorbuto poderia ser prevenido mesmo nas viagens mais longas. Baseado nisso os livros afirmam que se nós extrairmos o suco de lima e o engarrafarmos, estocando os navios com ele, poderemos prevenir a curar o escorbuto.
Como já dissemos acima, contudo, estes bons médicos, com sua fé no suco de lima como uma cura específica, negligenciaram sua constante falha em testes severos.
A incrível persistência de tal fé pode ser vista no caso da expedição polar britânica de Sir George Nares. Quando ele retornou à Inglaterra em 1876 depois de um ano e meio, relatou muitos casos de escorbuto, algumas mortes e uma falha parcial de sua expedição como resultado. Em sua opinião, carne fresca poderia ter salvo seus homens. Mas os médicos, como veremos quando considerarmos como viriam mais tarde a aconselhar Robert F. Scott, logo esqueceram esta impressão de Nares. Eles persistiram insistindo nas velhas doutrinas com uma série de desculpas: que o suco de lima da expedição de Nares poderia ter sido deficientes em seu conteúdo de ácido; que algumas vítimas não beberam o suficiente; e que talvez fosse esperar demais até mesmo do maravilhoso suco que pudesse superar todas as coisas que, acreditavam, pudessem produzir escorbuto – ausência de luz do sol, má ventilação, falta de diversão e de exercício e pouca limpeza.
Particularmente devido ao fato de que a comissão de inquérito médica sobre Nares terminou seu relatório mencionando a necessidade de limpeza e “métodos sanitários modernos”, imagino que a classe médica deva ter tido um baque com a publicação do relato de como os exploradores Nansen e Jahansen passaram o inverno nas ilhas Franz Josef (hoje Ilhas Nansen) em 1895-96. Eles viveram em uma cabana de pedras e pele de morsa. A ventilação era péssima para preservar combustível; o fogo fazia fumaça, de modo que o ar ficava ainda pior; não havia um raio de sol por meses; durante este tempo, eles praticamente hibernaram, raramente saindo para a rua e fazendo tão pouca atividade física quanto fosse humanamente possível. Ainda assim, sua saúde permaneceu perfeita durante todo o inverno, e eles saíram de sua hibernação em tão boas condições físicas quanto qualquer homem que jamais passou por um inverno ártico. Sua única comida fora a carne e a gordura de morsas.
Dezenas, senão milhares de cientistas da medicina e áreas correlatas têm de ter lido este relato, pois os livros de Nansen foram best sellers publicados em todas as línguas e os jornais estavam repletos de suas histórias. Ainda assim, o efeito foi insignificante. Os médicos e nutricionistas continuaram a acusar a carne como causadora do escorbuto, com os efeitos contributivos do que chamavam de insuficiência de ventilação, limpeza, luz solar e exercício. Eles prescreviam suco de lima e colocavam sua total dependência nisso e em outros produtos vegetais.
Desculpas para o suco de lima persistem até os dias de hoje. Foi, por exemplo, demonstrado com triunfo recentemente que o significado de “lima” mudou nos últimos 100 anos, explicando a alegação de que ele funcionava melhor no século 18 do que no século 19 – na época, o suco era feito de limões chamados limas; agora, era feito de limas chamadas limas…
O efeito antiescorbutico dos limões pode até ser muito superior ao das limas por quilo de peso, mas isso não vai ao cerne da questão. Como prova disso, considere como a experiência de Nansen foi reforçada e interpretada por 4 expedições durante 2 décadas, duas delas comandadas por Robert Falcon Scott, uma por Ernest Henry Shackleton e uma por mim.
II
Scott, em 1900, buscou o aconselhamento científico mais ortodoxo ao planejar sua expedição. Ele seguiu o conselho à risca ao levar consigo suco de lima e embarcar grande quantidade de frutas e produtos vegetais ao passar pela Nova Zelândia em seu caminho para a Antártida. Ele se assegurou que a dieta fosse “saudável”, que os homens praticassem exercícios, tomassem banho e tivessem bastante ar puro. Ainda assim, o escorbuto atacou, e um de seus homens, que viria posteriormente a ser famoso ele próprio como explorador e seu rival, Ernest Shackleton, ficou inutilizado. Os homens puxavam seus próprios trenós, de modo que não faltou exercício. Havia bastante luz solar durante o tempo todo, e muito ar fresco. Para aqueles que acreditavam nos ditados da época, para quem acreditava no suco de lima, o início de escorbuto era um tremendo mistério.
O fato de ter sido o escorbuto de Shackleton o problema que mais interferiu com o sucesso da primeira expedição de Scott foi particularmente infeliz, se pensarmos nos ciúmes que provocou e nas inimizades que causou. O escorbuto, enquanto doença, é realmente uma das mais limpas e menos odiosas; mas em inglês o nome “escorbuto” é empregado como um adjetivo significando “vergonhoso”. Shackleton pode ter-se magoado tanto por esta associação de palavras como pela acusação de ter sido sua fraqueza o principal problema da expedição de Scott. A obsessão por limpar seu nome, em todos os sentidos, levou-o a organizar uma expedição – o que muitos na Inglaterra consideraram anti-ético: um subordinado, com pressa e insistência indecentes, fazendo de tudo para eclipsar seu comandante.
O elemento crucial da primeira expedição de Shackleton, para quem estuda o escorbuto, é o fato de que Shackleton era um elisabetano convicto vivendo na época de Edward VII. Era um aventureiro, um verdadeiro pirata em espírito e método. Falava mais e mais alto do que deveria na Inglaterra moderna. Chegava perto das pessoas para gabar-se. Causava atritos, provocava e incitava ciúmes, e angariava a admiração de jovens que teriam seguido navegadores como Dampier e Frobisher em suas piratarias e explorações.
A organização e o restante da primeira expedição de Shackleton foram uma espécie de oba-oba. Foi tão descuidada quanto Scott havia sido cuidadoso; não tinha o tipo de suporte de Scott, nem científico, nem financeiro. Chegaram rapidamente às praias do continente antártico, armaram acampamento, para então dar-se conta de que não tinham comida o suficiente para o inverno, nem tampouco tinham tido o escrupuloso cuidado de Scott de trazer consigo frutas e outros antiescorbúticos ao passar pela Nova Zelândia. Comparada à de Scott, sua rotina era frouxa no que diz respeito à limpeza, exercício e prescrições higiênicas.
Resulta que os homens de Scott, com quantidades virtualmente ilimitadas de geléias e marmeladas, cereais e frutas, grãos, curri e carnes em conserva não tinham inclinações de acrescentar focas e pinguins ao seu cardápio. No caso de Shackleton, não foi nem sabedoria nem a aceitação de bons conselhos mas sim a dura necessidade que os impeliu a fazer um tal uso de focas e pinguins que o Dr. Alister Forbes Mackay, médico de Edimburgo, que foi membro daquela expedição de Shackleton e mais tarde de meu navio para Karluk, disse-me que ele estimava que mais da metade de toda a comida durante sua estadia na Antártica fora de carne fresca.
A despeito da falta de cuidado (em verdade, como agora vemos, justamente por cauda da falta de cuidado), Shackleton teve índices médios de saúde muito melhores do que Scott. Jamais houve nenhum sinal de escorbuto. Cada homem reteve toda a sua força; e eles realizaram naquela primavera aquilo que a maioria das autoridades ainda considera a maior façanha física jamais realizada na Antártica. Com homens puxando o trenó por uma considerável parte do caminho, eles chegaram à latitude 88º23s, praticamente em contato visual com o polo.
Scott começou sua segunda tentativa como havia começado a primeira, pedindo aos médicos britânicos a proteção contra o escorbuto e recebendo deles mais uma vez o velho e bom conselho sobre suco de lima, frutas e etc. No inverno polar ele novamente depositou confiança nestes conselhos e em constante supervisão médica, em uma dieta planejada e cuidadosamente variada, em numerosos testes científicos para determinar as condições de seus homens, em exercício, ar fresco, cuidados sanitários de todas as formas possíveis. Os homens viviam com alimentos do Reino Unido, suplementados por frutas e hortaliças da Nova Zelândia. Por terem tanto do que estavam acostumados a comer, comiam pouco daquilo que nunca haviam aprendido a gostar: pinguins e focas.
Uma vez mais, eles começaram sua viagem de trenó depois de um inverno seguindo as recomendações médicas. Os resultados haviam sido previamente desapontadores; desta vez, seriam trágicos. Conquanto o escorbuto não os impediu de chegar ao polo sul, ele começou a enfraquecê-los no caminho de volta e progrediu tão rapidamente que a fraqueza extrema os impediu – faltando apenas 10 milhas – de chegar ao seu depósito final de provisões.
Aqueles que ignoraram o escorbuto às vezes alegaram que se Scott tivesse chegado ao depósito, teria conseguido posteriormente voltar ao acampamento-base. Isto torna-se mais do que duvidoso se você se dá conta de que o progressivo decréscimo do vigor físico em mental não seria resolvido nem pela maior das refeições se tais refeições fossem compostas de comidas sem valor antiescorbútico.
A história de Scott e seus companheiros, especialmente em suas últimas semanas, está entre as mais corajosas em qualquer idioma; através dela eles tornaram-se herois nacionais e mundiais. Mas em inglês (embora não em muitas outras línguas europeias), escorbuto soa sujo. Tornou-se uma necessidade para os companheiros sobreviventes de Scott, e para aqueles na Inglaterra que sabiam da verdade, tomar providências para que esta palavra recheada de tabu não viesse a sujar um feito glorioso.
Ter suprimido a história do escorbuto para evitar a associação desta doença à beleza e heroísmo da morte de Scott pode ter parecido que valia a pena na época; mas dificilmente poderia ser deplorado por qualquer pessoa – e precisa ser elogiado pelos cientistas – que o comandante Edward G. R. Evans, agora almirante, o segundo em comando de Scott, depois de um tempo tenha admitido publicamente as informações sobre o escorbuto, incluindo uma declaração de que ele mesmo foi acometido.
É irracional, ao menos agora que as emoções já se acalmaram, culpar Scott. Ninguém teve culpa, pois todos agiram com o que se sabia à época. Se houvesse alguém a quem culpar, seria primariamente aqueles que forneceram os conselhos médicos à expedição antes que zarpasse; e, secundariamente, o oficial médico chefe, ao invés do comandante da expedição.
Olhando agora, parece estranho que uma comparação entre as experiências de Scott e Shackleton não tenha sido suficiente para esclarecer completamente os médicos sobre a real natureza do escorbuto; mas, é claro, parte da explicação deve-se ao fato de que as informações médicas sobre Scott haviam sido suprimidas. Assim, restava à minha própria expedição demonstrar, ao menos em termos de expedições polares, e restava aos experimentos do Instituto Russel Sage chamar a atenção da classe médica sobre a forma mais prática e a única forma simples de curar o escorbuto. Pois não importa o quão bom seja o suco de limas (ou limões), ele é difícil de transportar, ele deteriora, e você sempre pode perdê-lo por um acidente em uma viagem. A coisa correta a fazer é achar os antiescorbúticos onde você estiver, e pegá-los à medida que você avança.
Em minha terceira expedição ocorreu, como relatado no livro “O Ártico amigável”, que três homens foram acometidos de escorbuto ao desobedecer minhas instruções e, sem meu conhecimento, viverem 2 ou 3 meses comendo apenas comidas europeias quando deveriam estar comendo fundamentalmente carne.
Aparentemente, é preciso de um a três meses para que uma dieta ruim possa produzir escorbuto reconhecível, mas daí em diante a coisa anda rápido pelas próximas poucas semanas. No caso de meus homens, foi cerca de 3 semanas depois que notaram o problema, e cerca de 10 dias depois que se queixaram para mim, que um deles ficou tão doente que nós tínhamos de carregá-lo em um trenó, enquanto o outro mal conseguia andar, apoiado atrás do trenó. Nessa etapa, cada junta doía, as gengivas eram tão moles como queijo americano, e os dentes estavam tão soltos que caíam se fossem puxados com a mais fraca das forças.
Nós já estávamos a 60 ou 80 milhas da terra, sobre gelo flutuante quando o problema começou, e tivemos de nos deslocar rapidamente para a praia para montar um acampamento estável para os inválidos. Não seria nada bom se, com homens doentes em nossas mãos, nosso acampamento começasse a se desintegrar caso o gelo rachasse.
Nós chegamos a uma ilha (cerca de 900 milhas ao norte do círculo polar ártico) cuja costa era conhecida, mas cujo interior jamais havia sido explorado. Viajamos algumas milhas para dentro da ilha e estabelecemos acampamento, caçamos um caribu (éramos 4 homens, e dois estavam bem) e demos início à terapia de carne exclusiva. Combustível era bem escasso, de modo que cozinhávamos apenas uma refeição por dia; além disso, eu pensava que comida crua pudesse funcionar melhor. Pela manhã, cozinhávamos a carne em bastante água. Os pacientes comiam a carne fervida enquanto ainda estava quente e guardavam o caldo para beber durante o resto do dia. Nas demais refeições, comiam carne crua levemente congelada – e tinham boa digestão e apetite. Nós carneamos o caribu no estilo dos esquimós, de forma que os cães ficavam com os órgãos e entranhas, membros e contra-filé, enquanto os doentes e nós caçadores ficávamos com a cabeça, peito, costela, pelve e tutano dos ossos.
Com tal dieta, toda a dor desapareceu de todas as articulações dentro de 4 dias, e a melancolia foi substituída por otimismo. Em uma semana, ambos homens disseram que nem sequer davam-se conta de que estavam doentes, desde que estivessem deitados. Em duas semanas, já estavam em condições de seguir viagem, primeiramente alternando caminhadas com andar sobre o trenó, e, ao fim de 1 mês, era como se jamais tivessem estado doentes. Nenhum sinal do escorbuto permaneceu, exceto pelas gengivas que, após terem recuado, ganhar apenas parcialmente sua posição normal.
Mais tarde, ao comparar minhas anotações com as do Dr. Alfred Hess, a maior autoridade em escorbuto de Nova Iorque, descobri que, ao passo que eu estava obtendo estes resultados com uma dieta em que todos os elementos vegetais estavam ausentes, ele obtinha os mesmos resultados no mesmo período de tempo com uma dieta baseada principalmente em vegetais crus ralados e frutas e em sucos de frutas.
Não resta dúvida, como demonstraram os estudos quantitativos, que o percentual de vitamina C – o fator que previne o escorbuto – é maior em certos vegetais do que em qualquer carne. Mas é igualmente verdadeiro que o corpo humano precisa de uma quantidade tão pequena de vitamina C que, se você tiver um pouco de carne fresca em sua dieta todos os dias, e não cozinhá-la em excesso, esta única fonte será fornecerá vitamina C suficiente para prevenir o escorbuto. Se você consumir exclusivamente carne, você obterá vitaminas não apenas para prevenir o escorbuto mas, como já dissemos previamente, para prevenir todas as demais doenças de deficiência nutricional. (nota do tradutor: hoje se sabe que a vitamina C compete pelo mesmo receptor celular que a glicose; assim, uma dieta low carb reduz muito a necessidade de vitamina C; já uma dieta de farináceos aumenta esta necessidade).
Fechando o assunto das vitaminas em relação a longas expedições, devemos enfatizar que, recentemente, tem havido tal progresso na extração, concentração e armazenamento da vitamina C que atualmente é possível carregar consigo uma quantidade suficiente para durar vários anos, e com tal qualidade que não irá deteriorar a ponto de tornar-se inútil. Mas por que carregar carvão para Newcastle (uma região carvoeira)? Se você estiver nos trópicos, pegue uma fruta no pé ou coma uma salada verde; se estiver no mar, lance uma linha e pesque um peixe; se estiver na Antártica, use focas e pinguins; e se estiver no Ártico, cace ursos polares, focas, caribus e numerosos outros tipos de caça. (nota do tradutor: ou seja, tudo o que você precisa é de comida de verdade). Verdade seja dita, se você fizer uma jornada pela Groenlândia em direção ao centro da mesma, onde não há caça disponível pois a terra é permanentemente coberta de gelo, você terá de levar a comida consigo. E, neste caso, você pode muito bem levar um suco de limão. É uma das fontes mais portáteis de vitamina C e eles sabem agora como fazê-lo e acondicioná-lo de forma a preservar suas qualidades por um longo tempo.
III
O metrô de Nova Iorque, tempos atrás, cooperou com a secretaria da saúde deixando bem visível um cartaz com os seguintes dizeres:
PARA DENTES SAUDÁVEIS
DIETA BALANCEADA com
SALADAS : FRUTAS : LEITE
ESCOVE OS DENTES
VISITE SEU DENTISTA REGULARMENTE
Shirley W. Wynne, M.D.
Secretária da Saúde
Durante o mesmo período as páginas das revistas e as ondas do rádios estavam repletas de propagandas alegando que uma pasta, um pó ou um antisséptico bucal poderiam alterar a química da boca de forma a prevenir as cáries, que um dente limpo nunca cria cáries, que um tipo especial de escova de dentes atinge todos os recantos, que uma marca particular de frutas, leite ou pão é rica em elementos para a saúde dentária. Havia dias de treinamento de escovação de dentes na escolas. Mães do país todo estavam xingando, persuadindo e subornando as crianças para que usassem estes preparados, comessem as comidas, e seguissem as regras que assegurariam a higiene bucal perfeita.
Ao mesmo tempo tempo surgiu uma declaração do Dr. Adelbert Fernald, curador do museu de história odontológica da Universidade de Harvard, de que ele vinha coletando moldes de dentição de americanos vivos, desde os esquimós mais próximos ao polo até a fronteira com o México. Os melhores dentes e as bocas mais saudáveis eram encontradas em pessoas que jamais beberam uma gota de leite desde que deixaram de ser amamentados e que jamais comeram nenhuma das coisas recomendadas no cartaz da secretaria de saúde de Nova Iorque. Estas pessoas, os esquimós, jamais usaram creme dental, pós para os dentes, antissépticos bucais, etc. Eles nunca fazem nenhum esforço para limpar os dentes ou a boca. Eles não visitam seu dentista duas vezes por ano, aliás não visitam nunca. E sua comida é exclusivamente carne. Carne, note-se, não é sequer mencionada no cartaz emitido pela Dra. Wayne.
Dentes muito superiores aos dos presidentes de nossas maiores companhias de creme dental são encontrados no mundo, atualmente, e têm existido há séculos, entre pessoas que violam cada preceito das propagandas atuais de dentifrícios. Nem todos vivem exclusivamente de carne; mas, baseado em extensa correspondência que tenho trocado com autoridades no assunto, a ausência completa de cáries em comunidades inteiras jamais existiu no passado e não existe atualmente, exceto entre pessoas cuja dieta é ou exclusivamente de carne ou na qual a carne é fortemente predominante.
Nossos experimentos em Bellevue lançaram uma luz sobre o assunto das cáries, mas a chave para a situação situa-se mais na ciência da antropologia. Eu agora lhes conto, na forma de amostra e de resumo, fatos de que tenho conhecimento pessoal em virtude de meu trabalho antropológico de campo.
Minha primeira missão antropológica veio do Museu Peabody da Universidade de Harvard; eu e John W. Hasting fomos mandados à Islândia em 1905. Nós achamos em um local um cemitério medieval que estava sendo destruído pelo mar. Crânios rolavam pela água na maré alta; na maré baixa, nós os recolhíamos e coletávamos dentes espalhados aqui e ali. À medida que o vento e as águas moviam a areia, achávamos mais e mais dentes até juntarmos um bom punhado. Mais tarde, obtivemos permissão para escavar o cemitério, e ao final trouxemos de volta para Harvard uma miscelânea de vários ossos que incluía 80 crânios e, como dito, muitos dentes soltos.
A coleção tem sido estudada por dentistas e antropólogos físicos sem que uma única cárie tenha sido descoberta em nenhum dos dentes.
Os crânios da coleção Hastings-Stefansson representam pessoas ascendência islandesa comum. Não havia aborígenes naquela ilha quando os irlandeses as descobriram algum tempo antes do ano 700. Quando os noruegueses chegaram lá em 860, encontaram apenas os irlandeses. Estima-se hoje que a origem étnica dos islandeses seja 10 a 30% irlandesa, 40 a 50% norueguesa e o restante, talvez 10%, de origem escocesa, inglesa, sueca e dinamarquesa.
Nenhum dos povos cuja sangue veio a compor a etnia islandesa é racialmente imune às cáries, nem tampouco o são os islandeses modernos. Então por que os islandeses da idade média eram completamente imunes?
Uma análise de vários fatores tornou bem claro o fato de que sua comida os protegia das cáries na idade média. Os principais elementos eram peixe, ovelha, leite e derivados. Havia uma certa quantidade de carne de gado e pode ter havia um pouco de carne de cavalo, particularmente nos períodos iniciais do cemitério. Cereais eram pouco importantes e podem ter sido usados para fazer cerveja ou invés de mingaus. Pão era quase inexistente, assim como outros elementos do reino vegetal, nativos ou importados.
Minha mãe, que nasceu na costa norte da Islândia, lembrava de um período em meados do século 19 quando o pão era ainda tão raro quanto, digamos, o caviar é na Nova Iorque dos dias de hoje – ela experimentava pão apenas 3 ou 4 vezes por ano e em pequenos pedaços quando viajava com sua mãe. Quanto a ter pão em sua própria casa, era usado como um regalo para crianças que vinham visitá-los. A dieta era ainda substancialmente aquela da idade média, embora o uso de mingaus estivesse aumentando. Ela não lembra de jamais ter ouvido falar em dor de dente na sua infância, mas já lembra de ouvir relatos sobre esta dolorosa raridade em torno da época em que veio para a América em 1876. Mas logo após sua chegada aos EUA (estados de Wisconsin, Minnesota e Dakota) e Canadá (Nova Escócia e Manitoba), os colonos islandeses tornaram-se completamente familiarizados com a devastação das cáries. Eles desenvolveram dentes tão ruins como os dos americanos médios antes de 1900.
Assim, há pelo menos um caso de um povo do norte da Europa cuja imunidade às cáries (a julgar pela coleção de Hastings-Stefansson e relatos) chegava próxima a 100% por cerca de 1000 anos, até aproximadamente a época da Guerra Civil Americana. A dieta era fundamentalmente do reino animal. Agora que sua dieta tornou-se, tanto na América quanto na Islândia aproximadamente a mesma da média dos EUA e da Europa, os dentes dos islandeses presentam alta percentagem de cáries.
Eu entrei em contato com outro povo previamente sem dor de dentes quando me uni aos esquimós do rio Mackenzie em 1906. Alguns deles vinham consumindo comidas europeias em quantidades consideráveis desde 1889, e dores de dente e cáries estavam começando a aparecer, mas exclusivamente nas bocas daqueles que passaram a gostar das novas comidas trazidas pelos baleeiros ianques. Os esquimós de Mackenzie afirmavam que dor de dente e cáries eram desconhecidas na infância daqueles que se aproximavam da meia-idade, e havia muitos de todas as idades que permaneciam intocados por este problema: aqueles que seguiam integralmente a dieta esquimó tradicional. Aqui e em muitos outros lugares, isto significa 98 a 100% de origem animal. Há distritos, como partes de Labrador e o sudoeste e oeste do Alaska, onde mesmo antes da chegada dos europeus havia considerável uso de vegetais nativos; contudo, estes compreendiam não mais do que 5% das calorias anuais dos esquimós primitivos.
O Dr. Hirdlicka, curador de antropologia do Museu de História Natural em Washington, me escreve relatando que não conhece nenhum caso de cáries entre esquimós do presente ou do passado que permaneceram sem influência europeia. O Dr. S. G. Ritchie, da Universidade de Dalhousie, escreveu após estudar uma coleção de esqueletos coletados por Diamond Jenness em minha terceira expedição: “em todos os dentes examinados não há o menor traço de cáries”
Eu trouxe cerca de 100 crânios de esquimós, que morreram antes da chegada dos europeus, para o Museu de História Natural em Nova Iorque. Eles já foram examinados por muitos estudantes, mas nenhum sinal de cárie foi identificado até hoje.
O Dr. M. A. Pleasure examinou 283 crânios presumivelmente de esquimós pré-europeus no Museu Americano de História Natural. Ele achou uma pequena cárie em um dente; mas quando os registros foram checados, resulta que o colecionador, reverendo J. W. Chapman, do Concelho das Missões Episcopais, atualmente em Nova Iorque, havia enviado aquele crânio ao museu como sendo de um índio Athabasca, e não de um esquimó.
O escore, portanto, está zerado até o momento. Nenhum sinal de cárie jamais foi descoberto entre as pessoas daquele povo que mais completamente evita as comidas, os preceitos e as práticas recomendadas pela secretaria da saúde de Nova Iorque, pelos dentistas em geral, pelos técnicos que ensinam a escovar os dentes nas escolas e pelos publicitários dos fabricantes de dentifrícios.
IV
Quando falo em convenções de sociedades médicas, eu normalmente menciono este caso da higiene oral mais ou menos como descrito acima, mas em maior detalhe. Quando há contestação da plateia, esta normalmente vem na forma da alegação de que a saúde dentária dos povos primitivos decorre do fato de eles passarem mastigando comidas ásperas. A vantagem deste argumento para os dentistas, cujos melhores esforços falharam em salvar os seus dentes, é óbvia. Lhes dá uma desculpa. A partir desta doutrina ele pode construir o caso de que nem mesmo todo o seu cuidado, mesmo com o suporte de sua habilidade e ciência, pode salvar os dentes de uma geração que só consome comidas macias, que não exercitam os dentes e não friccionam as gengivas.
Mas é deploravelmente difícil enquadrar a antropologia nesta confortável desculpa dos dentistas. Dentre os melhores dentes encontrados no mundo das dietas mistas estão aqueles dos habitantes das ilhas do Mar do Sul, que ainda mantém suas dietas nativas. Condições similares ou melhores são descritas, por exemplo, nos habitantes do Hawaii pelos primeiros visitantes. Mas você pode imaginar um exemplo pior para os defensores da hipótese da mastigação de comidas ásperas? A comida animal que estas pessoas consomem é essencialmente peixe, e os peixes são macios para os dentes, cozidos ou crus. Entre os principais elementos vegetais estava o poi, uma espécie de sopa ou mingau. Há ainda as batatas doces.
Seria difícil achar um novaiorquino ou um parisiense que não mastigasse mais ou usasse comida mais áspera do que um nativo dos Mares do Sul que, em sua dieta tradicional, atingia 97% de ausência de cáries, um recorde que nenhuma quadra da sofisticada Park Avenue pode sequer aproximar-se.
Nem tampouco os esquimós mastigam muito, quando comparados conosco. Quando sua comida é crua, pode ser consumida como uma ostra crua – escorrega pela garganta da mesma forma. Quando uma carne perfeitamente fresca é cozida, duas coisas determinam sua dureza: a idade do animal e a forma de preparo. O principal animal de caça dos esquimós do interior é o caribu. Um caribu jovem é rápido, e um caribu velho é lento como uma vaca. Assim, os lobos é que pegam os caribus velhos e desajeitados que ficam para trás quando a manada foge, e os esquimós raramente consomem um animal com mais do que 3 ou 4 anos de idade. Um caribu jovem desses tem carne macia, não importa como seja preparado.
Quanto às focas, não posso falar sobre suas idades, mas posso testemunhar após ajudar a comer milhares delas que sua carne nunca é dura – pelo menos não quando se compara com os bifes que às vezes se come nas casas do ramo em Nova Iorque.
E há ainda os esquimós que vivem praticamente exclusivamente de peixe. Como já disse, você nem os mastiga quando são crus, e não há muito o que mastigar quando são preparados por fervura. A única circunstância em que os peixes ficam realmente duros é quando são secos. Alguns esquimós usam peixe seco; outros não.
Em diferentes distritos há diferenças na quantidade de mastigação de diferentes esquimós, mas jamais foi relatado que os dentes dos que mastigavam mais fossem melhores. Aliás, como poderia haver diferença, se nenhum deles jamais desenvolve nenhuma cárie, não importa seu grau de mastigação?
Uma segunda linha de defesa dos defensores da teoria da mastigação é que, mesmo que os esquimós não mastiguem tanto a sua comida, ele mastigam peles de animais. O hábito de mascar peles é muito menos intenso do que você possa supor baseado no que foi dito por alguns tipos de escritores e mostrado em certos tipos de de filme. E, de qualquer forma, o hábito de mascar peles é essencialmente das mulheres, e não é fácil reconciliar com o pensamento científico moderno a ideia de que a mastigação da esposa possa preservar os dentes do marido.
Certa feita, em uma palestra para um grupo de médicos, eu me defrontei com mais um argumento. “Não era verdade que os esquimós empregam bastante os seus dentes em suas tarefas? Não era verdade que eles mordem madeira, marfim e metal para segurar, puxar, torcer, etc?” O melhor que pude pensar foi concordar que os esquimós de fato removem pregos com seus dentes, mas fazem isso porque têm bons dentes, e não que tenham bons dentes por que removem pregos.
Por vários motivos, os dentes de muitos esquimós gastam-se rapidamente. Eles em geral eles formam uma mordida perfeita, o que aumenta seu desgaste, enquanto nosso dentes tendem a se cruzar. Alguns esquimós secam peixes ou carne ao vento, a areia acaba se depositando, e isto deixa a carne um pouco como uma lixa. Ambos sexos, especialmente homens, usam seus dentes para morder materiais duros. Ambos sexos, mas especialmente as mulheres, usam seus dentes para amaciar as peles. Um desgaste severo dos dentes que chega até o canal tende a ocorrer cedo na idade adulta. O que ocorre, então, é narrado pelo Dr. Richie (a quem já citamos antes) com relação aos esquimós do Golfo da Coroação:
“Coincidindo com este desgaste extremo dos dentes, a polpas dentais assumiram suas funções com evidente sucesso. Dentina nova de boa qualidade formou-se para obliterar as câmaras pulpais e, em alguns casos, até mesmo os canais radiculares. Este novo crescimento de tecido saudável foi encontrado em todos os casos em que houve ameaça de acesso às câmaras pulpais devido ao desgaste. Portanto, não houve nenhum caso de destruição das polpas por infecção e consequentes abscessos alveolares, que são desconhecidos por aqui”
A total ausência de cáries para aqueles que vivem exclusivamente de carne é, portanto, um fato. A cessação do processo de decaimento dentário quando se passa de uma dieta mista para uma dieta de carne geralmente ocorre, talvez sempre ocorra. O restante do quadro não é tão claro.
Cáries foram encontradas nas múmias do Egito, do Peru e em nosso próprio sudoeste; Estes povos antigos comiam dietas mistas, e dependiam pesadamente de cereais. Seus dentes eram melhores que os nossos, embora bem piores que os dos esquimós. Se você deseja uma lei geral da odontologia, você poderia afirmar que os povos mais primitivos têm os melhores dentes. Você poderia ainda acrescentar que, em alguns casos, povos altamente vegetarianos, embora não atinjam a perfeição de 100% dos comedores de carne, conseguem, contudo, dentes muito bons quando comparados com os nossos.
O Projeto de Pesquisa em Saúde da Associação Havaiana de Plantadores de Açúcar debate se a mudança de dentes bons para dentes execráveis entre os polinésios de dieta mista foi causado por anos de consumo de cereais. Eu ainda não vi comentários deles sobre o (imagino) grande aumento do consumo de açúcar que coincidiu que a deterioração dos dentes dos havaianos.
Quanto à visão de que a dieta é o principal fator em salvar os dentes, os antropólogos têm ganho apoio de experimentos conduzidos em instituições e por pesquisadores individuais. Alguns dentistas estão contribuindo nobremente com as pesquisas e com uma campanha de educação, que parece destinada a diminuir sua renda. Mas não consegui identificar tal desapego por parte dos fabricantes de dentifrícios.
Uma doença bucal séria, depois das cáries, é a piorreia. Quem olha rapidamente não consegue ver as marcas no esqueleto humano; mas parece no mínimo provável que os islandeses medievais, os esquimós e outros que deixaram dentes livres de cáries, fossem livres também de piorreia. Da mesma forma, investigadores modernos constataram que esquimós vivendo com seus alimentos nativos têm excelentes condições de saúde oral, e portanto ausência de piorreia.
Uma das coisas que notamos no contexto geral de nosso bem estar durante nosso ano de carne exclusiva em Nova Iorque, bem como em períodos similares no Ártico, foi a ausência de dores de cabeça. Eu costumava tê-las frequentemente antes de ir para o norte, e as tenho ocasionalmente quando consumo uma dieta mista. Os motivos não são claros, e que nós podemos dizer a essas alturas é mais especulativo do que qualquer outra parte deste artigo.
Foi observado, nos exames de raio-X durante nosso ano de carne em Nova Iorque, que tínhamos muito menos gases no trato intestinal do que com a dieta mista – praticamente não havia gases. O trabalho do Dr. John C. Torrey mostrou que nem a digestão nem a eliminação produziam os odores ofensivos presentes nas dietas mistas e vegetarianas. Mas se a ausência de certos tipos de decomposição intestinal de comida estava ligada à ausência de dores de cabeça permanece apenas como uma hipótese de trabalho.
A prevenção das dores de cabeça pela abstinência de vegetais está documentada em livros. Um caso notável foi o de Francis Parkman, o historiador, que sofrera de dores de cabeça por toda sua vida exceto, afirmava, durante o período em que viveu com uma tribo indígena que comia praticamente só carne. Tal testemunho, embora oriundo de um homem eminente e muito lido, e embora se constitua em boa amostra do que acontece com outros comedores de carne, não chamou a atenção dos médicos. Em defesa destes últimos, contudo, deve ser dito que o próprio Parkman não proclamou sua experiência como uma descoberta triunfante. Ao contrário, ele relatou a coisa ao contrário – que embora se visse compelido a viver apenas de carne, ele estava sem a dor de cabeça que o acompanhou pelo resto de seus dias.
O professor Raymond Pearl, cerca de 20 anos atrás, enquanto trabalhava na estação de agricultura experimental do estado de Maine, provou que as galinhas sabem mais do que os professores universitários sobre o que galinhas devem comer. Agora, vários experimentos parecem estabelecer que as crianças, se lhes for dada completa liberdade de escolher entre vários alimentos não disfarçados por molhos e sabores artificiais (nota do tradutor: aquilo que hoje denominaríamos de comida de verdade), irão escolher melhor para a sua saúde e força do que as mães e pediatras. Uma das coisas frequentemente observadas nestes experimentos é que as crianças comem grandes quantidades daquele único item de que gostam mais. Viver por anos consumindo apenas um item do qual gostamos foi, deste ponto de vista, nada mais do que levar adiante uma tendência de nossa infância.
V
Mais de 25 anos se passaram desde que completei meus primeiros 12 meses de carne exclusiva, e mais de 6 anos desde o término em Nova Iorque de meu sexto ano somente com carne. durante toda minha vida tenho sido um grande consumidor de carne, e tenho agora 56 anos. Já deveria ser tempo suficiente para produzir eventuais problemas. O Dr. Clarence W. Lieb irá publicar um relato no American Journal of Gastroenterology de como eu permaneço melhor do que a média para minha idade naqueles aspectos nos quais a carne deveria supostamente provocar problemas. E o mesmo é o veredito de como me sinto. Reumatismo, por exemplo, ainda não deu o ar de sua graça. (nota do tradutor: o Dr. Vilhjalmur Stefansson morreu aos 84 anos).
A maior conclusão que se pode obter de nosso conforto, deleite e bem estar no longo prazo alimentando-nos exclusivamente de carne é que o corpo humano é muito mais sábio e competente do que nós lhe damos crédito. Aparentemente, você pode ter uma dieta completamente saudável sem vegetais, somente com vegetais e sem carne, ou com uma dieta mista.
Duas histórias resumem os aspectos mais interessantes do lado odontológico. Em 1903 eu ouvi o diretor da escola de odontologia da Universidade da Pennsylvania dizer em uma palestra que ele achava que os dentistas até aquele momento tinham mais prejudicado do que ajudado, mas que a partir de então passariam a mais ajudar do que prejudicar. Em 1928, quando eu relatei este episódio para o Dr. Percy Howe, diretor da Enfermaria Dentária Pediátrica Forsyth , ele disse disse que o bom diretor da Pennsylvania tinha se precipitado em pelo menos 20 anos. Pelo que entendi do Dr. Howe, embora boas coisas tenham sido feitas por dentistas em casos particulares desde há muito tempo, apenas nos últimos 10 anos os prós superaram os contras na prática odontológica.
Porquanto os comedores de carne pareçam gozar de boa saúde de uma forma geral, nós devemos, em nossas conclusões, extrair algum ensinamento a partir de seu mais completo exemplo moderno, os esquimós do Golfo da Coroação. Em minha terceira expedição, as duas principais causas de morte eram acidentes e velhice. Isto coloca, de forma diferente, minha afirmação de que estes sobreviventes da idade a pedra são as pessoas mais saudáveis entre as quais já vivi. Eu diria que a comunidade inteira, da infância à velhice, deveria ter em média a saúde de um número igual de homens de 20 anos, estudantes universitários por exemplo.
O perigo é você concluir que em virtude desta boa saúde advenha a longevidade. Mas os comedores de carne não parecem viver muito. Até onde podemos dizer, os esquimós, antes que o homem branco desequilibrasse seu equilíbrio fisiológico e econômico, vivia em média 10 anos menos do que nós. Hoje suas vidas são ainda mais curtas, mas isto deve-se em parte às doenças transmissíveis.
Num artigo prévio eu disse ter achado a dieta de carne exclusiva em Nova Iorque estimulante – sentia-me energético e otimista tanto no inverno quanto no verão. Talvez possa ser considerado que a dieta de carne é uma dieta estimulante, no sentido de que os processos metabólicos são acelerados. Você estaria então vivendo de forma mais acelerada, o que significaria crescer rapidamente e envelhecer logo. Isto talvez seja confirmado pela maturação precoce das mulheres esquimós – o que até agora eu supunha ser devido à sua quase total proteção do frio – elas vivem em moradias aquecidas e vestem-se com agasalhos quentes de forma que o corpo raramente é submetido ao stress de manter a temperatura por processos fisiológicos. Pode ser que a carne, como acelerador do metabolismo, explique em parte o fato de que as mulheres esquimós às vezes tornem-se avós antes dos 23 anos e que pareçam tão velhas aos 60 como nossas mulheres parecem aos 80.
NOTA DO TRADUTOR
Estes dois últimos parágrafos são, evidentemente, apenas especulação. Se serve de exemplo anedótico, o próprio Dr. Vilhjalmur Stefansson, grande comedor de carne, viveu até os 84 anos de idade, o que representava cerca de 20 anos além da expectativa de vida média à época. Me parece evidente que havia inúmeros outros motivos para que os esquimós vivessem menos – sendo o mais óbvio o fato de viverem no lugar mais inóspito do planeta. Aliás, que conseguissem viver lá com saúde já é um tributo ao seu estilo de vida.
José Carlos Souto