No início, achava apenas uma curiosidade – pessoas me perguntando o que fazer se, em determinado dia, tivessem um deslize e consumissem carboidratos. Mas a pergunta é cada vez mais recorrente, e é mais ou menos assim:
“Eu estava fazendo a indução (de Atkins) com menos de 20g de carbs todos os dias, mas após 20 dias eu fui a um aniversário e comi 2 fatias de bolo. Isto significa que eu acabei com minha cetose, voltei a estaca zero e preciso começar a indução do início? Por favor me ajude!!”
Eu não consigo deixar de pensar que há, nesta frase, um fervor quase religioso. É como se a pessoa estivesse convertida a uma religião low carb, da seita Atkins, e está me dizendo: “padre, eu pequei!”, aliviando-se pela confissão e esperando que eu lhe passe a penitência: “meu filho, volte para o início da indução, coma ovos com bacon e bifes por 14 dias”. Percebem?
Adão e Eva são expulsos do paraíso após morderem o carboidrato proibido – o pecado original. |
No entanto, esta relação ambivalente com a dieta, de querer segui-la cegamente, de pecar e depois redimir-se, apenas para começar a flertar novamente com o pecado – ah, o pecado, tão tentador! – acaba tornando a adoção de low carb como um estilo de vida algo impossível. Assim como uma vida de total virtude, o low carb imaculado é insustentável, pois na primeira mordida do carboidrato proibido, pode vir aquela explosão de lascívia alimentar, todo o desejo reprimido levando a comer carbs até que a dor abdominal seja o limite. E aí, a culpa é tão grande que é melhor renunciar à religião e viver para sempre em pecado.
Vamos, então, tentar estabelecer uma relação mais saudável com a restrição de carboidratos. Nada dogmático, nada religioso, e sim uma abordagem racional, tranquila e serena. Voltando ao pedido de ajuda:
“Eu estava fazendo a indução (de Atkins) com menos de 20g de carbs todos os dias, mas após 20 dias eu fui a um aniversário e comi 2 fatias de bolo. Isto significa que eu acabei com minha cetose, voltei a estaca zero e preciso começar a indução do início? Por favor me ajude!!”
1) Atkins não é a única forma de fazer low carb. Se é possível fazer low carb sem indução, é também possível voltar ao low carb após uma escapadela sem fazer indução (sem penitência!)
2) É possível perder peso com low carb sem cetose. Consequentemente, a interrupção temporária da cetose não é um problema
3) Quantos dias de consumo de carbs são necessários para sair do estado de queima de gordura de uma dieta low carb e passar para o estado de acúmulo de gordura de uma dieta de alto carboidrato?
Esta última pergunta tem uma resposta complexa. Vamos inverter a pergunta. Quantos dias são necessários para que uma pessoa fique cetoadaptada, isto é, passe a utilizar preferencialmente gordura como fonte de energia ao invés de carboidratos? De uma a duas semanas. Este é o tempo que leva para que haja a síntese de todo um conjunto de enzimas necessárias para as rotas metabólicas envolvidas na oxidação das gorduras. Durante este mesmo período, as enzimas necessárias para a conversão de carboidratos em gordura diminuem drasticamente (afinal, o corpo não mantém ativas rotas metabólicas em desuso).
Em outras palavras: depois que você está completamente cetoadaptado, se você comer MUITOS carboidratos em um único dia, eles não serão convertidos em gordura. Pois estar cetoadaptado é, ao mesmo tempo, estar desadaptado aos carbs. Seu corpo pode queimá-los, transformá-los em glicogênio, mas terá extrema dificuldade para transformá-los em gordura.
A primeira vez que entrei em contato com este conceito foi em um livro de 1995 (já esgotado, e nunca traduzido), chamado “Anabolic Diet” (pode ser encontrado em formato eletrônico em cópias, digamos, não oficiais, na internet). O Autor, Dr. Mauro DiPasaquale, é um médico do esporte e fisiculturista. O livro é escrito para fisiculturistas, e tenta resolver o seguinte quebra-cabeças:
1) A dieta low carb é a melhor alternativa para perda de peso;
2) A insulina é anabólica;
3) Para um fisiculturista, a insulina é essencial para um aumento dramático dos músculos;
4) Um fisiculturista precisa ser MUITO magro (percentuais de gordura corporal abaixo de 10%).
O Dr. DiPasquale afirma que a solução é uma dieta cetogênica com menos de 30g de carbs nos dias de semana, MUITOS carbs (pizza, pães, doces, sorvetes) por 36 horas nos finais de semana, voltando a 30g de carbs na segunda-feira, e assim por diante. Segundo ele, os picos de insulina que ocorrem durante as 36h são anabólicos, mas o tempo não é suficiente para reverter a cetoadaptação e provocar ganho e peso. A perda de peso cessa durante aquele período, mas volta a ocorrer no resto da semana. Interessante…
Fiquei intrigado com a ideia, e resolvi experimentar, em 2011. Já vinha fazendo Atkins há uns 8 meses, já estava muito magro. Com certo medo, admito, fui a um rodízio de pizzas, e comi até me fartar, inclusive pizzas doces. O que se sucedeu foi exatamente o que dizia do Dr. DiPasquali: de sábado para domingo, aumentei quase 3 Kg (glicogênio e água); mas na quinta-feira, já estava com o MESMO peso de antes das pizzas. Experimentei por um mês – carbs de todos os tipos, ilimitados, todos os sábados. Neste mês de teste, não aumentei de peso. Verdade que não me sentia bem na segunda-feira depois de comer porcarias, mas NÃO engordei.
Isso significa que você deve seguir a dieta anabólica do Dr. DiPasquale?
Eu penso o seguinte:
1) Low carb é um estilo de vida, baseado na ciência. E esta ciência (e o livro do Dr. DiPasquale) demonstram que você não põe tudo a perder por que detonou em UM dia no aniversário/natal/formatura;
2) Low carb não é religião, comer carbs não é pecado, indução não é penitência e o livro do Dr Atkins não é a bíblia;
3) A dieta deve ser adaptada às necessidades e características de cada um:
a) Se você quer otimizar a sua saúde, comer porcarias e glúten todos os finais de semana pode não ser ideal;
b) Se você é diabético, comer carboidratos provavelmente nunca é uma boa ideia;
c) Se você comer carbs de vez em quando (com espaço de no mínimo 5 dias), o mundo não acabará;
d) Se você não consegue ficar sem os carbs, comê-los apenas uma vez por semana é MUITO melhor do que comê-los sempre já que não consegue ficar sem comê-los nunca;
e) Se você é relativamente magro e seu objetivo é hipertrofia muscular, comer uns carbs após o treino e no final de semana pode ser vantajoso.
Observação 1: comer carbs com intervalo menor do que 5 dias começa a induzir a produção das enzimas que metabolizam estes carbs em gordura. Assim, quem pretende comer carbs 1x por semana deve ser OBSESSIVO em não comer mais de 30g de carbs nos intervalos.
Observação 2: a dieta anabólica do Dr. DiPasquale foi desenvolvida para fisiculturistas, e não para seres completamente sedentários. Não sei se os resultados se aplicam para todo mundo – acho que não. Meu objetivo foi apenas ilustrar que uma noite de carbs não acaba com tudo.
Em resumo: mantenha a mente aberta, esteja aberto à auto-experimentação. Em se tratando de um estilo de vida, de longo prazo, se algo não der certo e você ganhar um pouco de peso, você tem o resto da vida para voltar a uma dieta cetogênica e perder o peso novamente. Como diz Jimmy Moore, um dos low carbers mais conhecidos da blogosfer, “experimente, descubra o que funciona para você, trace um plano e siga-o”.