Às vezes temos a impressão de que a ciência já desvendou quase tudo, que os livros de bioquímica e fisiologia contém toda a verdade destilada. Tal impressão é, asseguro-lhes, resultado da ignorância e não do conhecimento. Eu já trabalhei com pesquisa básica em um laboratório de biologia molecular nos EUA, e posso afirmar que as rotas metabólicas, que nos livros nos parecem tão claras e bem definidas, são o produto de experimentos bem mais ambíguos e nem sempre reprodutíveis.
Da mesma forma, a medicina tem enveredado por um perigoso caminho no qual as pessoas preocupam-se tanto com desfechos mensuráveis (colesterol, por exemplo) que acabam perdendo a noção de que o objetivo deveria ser prevenir e tratar doenças, e não números. Angina é uma doença, aterosclerose é uma doença, placas nas carótidas são uma doença. Por mais que a indústria queira, colesterol não é uma doença.
Em Colesterol I, eu expliquei como surgiu a ideia de que colestrol pudesse ser algo ruim: uma combinação de má ciência básica e de um estudo epidemiológico mal feito da década de 1950.
Em colestrol II, eu mostrei que até 1957 nem mesmo a Associação Americana de Cardiologia estava convencida de que se deveria mudar a dieta das pessoas por causa de colesterol. No entanto, apenas 4 anos após, a maré começava a mudar, por motivos políticos, e não científicos.
Em colesterol III, eu detalhei os grandes estudos prospectivos e randomizados que demonstraram que reduzir a gordura na dieta não tem NENHUM impacto na mortalidade em homens e mulheres. Além disso, que estudos epidemiológico mais bem feitos sugerem que quanto maior o consumo de gordura per capita, menor a incidência de doenças cardiovasculares.
Em colesterol IV, vimos como o colesterol é um marcador de risco sofrível, como a redução de colesterol não traz benefício para a maior parte das pessoas, como a indústria manipula as estatísticas para nos convencer de que intervenções que têm o potencial de ajudar apenas 1 em cada 250 pessoas seriam “essenciais”, e como modificações de estilo de vida podem ter impacto superior ao das drogas, sem o custo e efeitos colaterais.
Nesta postagem, vamos dar um passo além. Vamos questionar, usando como exemplo a falha total de uma nova droga promissora, até que ponto somos completamente ingênuos em acreditar que possamos manipular fatores de risco de forma isolada, e que isso possa de alguma forma ser mais seguro ou eficiente do que simplesmente seguir o estilo de vida com o qual o nosso corpo evoluiu.
A reportagem abaixo, que traduzi por considerar uma das melhores coisas que já li na vida, aprofunda-se na questão filosófica de que há limites na forma reducionista de abordar a natureza. Espero que, ao final desta leitura, você possa lançar um novo olhar cético não apenas sobre o colesterol, mas sobre TODOS os marcadores numéricos de saúde.
A reportagem original pode ser conferida em http://www.wired.com/magazine/2011/12/ff_causation/
Tentativa e erro: por que a ciência está nos deixando na mão
- December 16, 2011,
- Wired, January 2012
Em 30 de novembro de 2006, executivos da Pfizer – a maior companhia farmacêutica do mundo – reuniram-se com investidores no centro de pesquisas da empresa em Groton, Connecticut. Jeff Kindler, o CEO da Pfizer, começou a apresentação com uma avaliação otimista dos esforços da empresa em trazer novas drogas para o mercado. Ele citou “novas abordagens excitantes” para o tratamento da doença de Alzheimer, fibromialgia e artrite. Mas estas notícias eram apenas para esquentar. Kindler estava mais excitado sobre uma nova droga chamada torcetrapib, que havia recentemente entrado em estudos clínicos de fase III, a última etapa antes de entrar com o pedido de aprovação pelo FDA (o equivalente da ANVISA nos EUA) para comercialização. Confiante, ele declarou que o torcetrapib seria “um dos mais importantes compostos farmacêuticos de nossa geração”.
O entusiasmo de Kindler era compreensível: o mercado potencial para a droga era enorme. Assim como o campeão de vendas da Pfizer, Lipitor – o medicamento de marca mais prescrito na América – torcetrapib fora desenvolvido para interferir no metabolismo do colesterol. Embora o colesterol seja um componente essencial da membrana das células, altos níveis têm sido associados à doença cardiovascular. O acúmulo da substância amarelo-clara na parede das artérias produz inflamação. Grupos de glóbulos brancos juntam-se ao redor destas “placas”, o que produz ainda mais inflamação. O resultado final é um vaso sanguíneo obstruído por um acúmulo gorduroso.
Lipitor funciona inibindo uma enzima que desempenha um papel fundamental na síntese de colesterol pelo fígado. Em particular, a droga reduz os níveis de colesterol associados às Lipoproteínas de Baixa Densidade (Low Density Lipoproteins – LDL), ou o chamado colesterol “ruim”. Nos últimos anos, contudo, os cientistas têm-se focado numa rota metabólica diferente, a que produz Lipoproteínas de Alta Densidade (High Density Lipoproteins – HDL). Uma das funções do HDL é transportar o excesso de colesterol-LDL de volta para o fígado, onde é metabolizado. Em essência, o HDL é o servente da gordura, limpando a confusão de nossa dieta moderna, e por isso é frequentemente chamado de “colesterol bom”.
E isso nos trás de volta ao torcetrapib. Ele foi criado para bloquear uma enzima que converte o colesterol HDL em sem irmão mais sinistro, LDL. Em teoria, isto resolveria todos os nosso problemas com colesterol, criando uma sobra da coisa boa e uma falta da coisa ruim. Em sua apresentação, Kindler salientou que o torcetrapib tinha o potencial de “redefinir o que seja tratamento cardiovascular”.
Havia uma vasta quantidade de pesquisa por trás das ousadas afirmações de Kindler. A rota do colesterol é um dos sistemas de feedback biológico melhor entendidos no corpo humano. Desde 1913, quando o patologista russo Nikolai Anichkov foi o primeiro a ligar experimentalmente o colesterol às placas nas artérias, os cientistas mapearam o metabolismo e o transporte destes compostos em de forma extraordinariamente detalhada. Eles documentaram as interações de praticamente cada molécula: a forma como a hidroximetilglutaril-conezima A-redutase cataliza a produção de mevalonato, que é fosforilado e condensado antes de sofrer uma sequência de trocas de elétrons até transformar-se em lanosterol, e então, após 19 outras reações químicas, finalmente virar colesterol. Além disso, o torcetrapib já tinha passado por um pequeno ensaio clínico, que mostrara que a droga de fato elevava o HDL e diminuía o LDL. Kindler disse a seus investidores que, em torno do segundo semestre de 2007, a Pfizer estaria requerendo aprovação do FDA. O sucesso da droga parecia algo completamente garantido.
E então, apenas dois dias depois, em 2 de dezembro de 2006, a Pfizer anunciou a notícia chocante: o ensaio clínico de fase III do torcetrapib estava sendo interrompido prematuramente. Embora o composto devesse prevenir doença cardíaca, ele estava na verdade desencadeando taxas maiores de dor no peito e de insuficiência cardíaca e um aumento de 60% na mortalidade geral. A droga, ao que parece, estava matando pessoas.
Naquela semana, o valor das ações da Pfizer despencou 21 bilhões de dólares.
A história do torcetrapib é um caso de atribuição errônea de causa. A Pfizer operava segundo o pressuposto de que aumentar o HDL e baixar o LDL levaria a um desfecho previsível: melhora da saúde cardiovascular. Menos placas nas artérias. Encanamento mais limpo. Mas isso não aconteceu.
Tais falhas ocorrem o tempo todo na indústria farmacêutica (de acordo com análise recente, mais de 40% das drogas falha no estudos fase III). E, no entanto, há algo particularmente perturbador na falha do torcetrapib. Afinal, uma aposta neste composto não deveria ser arriscada. Para a Pfizer, o torcetrapib era o retorno esperado após décadas de pesquisa. Não surpreende que a empresa estivesse tão confiante sobre seus ensaios clínicos, que envolveram um total de 25.000 voluntários. A Pfizer investiu mais de 1 bilhão de dólares no desenvolvimento da droga, e 90 milhões de dólares para expandir a fábrica que iria produzir o remédio. Devido ao fato de que os cientistas compreendiam os passos individuais do metabolismo do colesterol com tal nível de precisão, eles presumiram que também compreendiam o todo.
Esta presunção – de que compreender as partes constituintes de um sistema significa que nós também compreendemos as causas dentro do sistema – não está limitada à indústria farmacêutica ou mesmo à biologia. Ela define a ciência moderna. Em geral, nós acreditamos que o chamado “problema da causalidade” (ou problema da causa e efeito) pode ser curado por mais informação, por nosso incessante acúmulo de fatos. Os cientistas referem-se a este processo como “reducionismo“. Ao desmontar um processo, nós podemos ver como tudo se encaixa; o mistério complexo é destilado em uma lista de ingredientes. E assim a questão do colesterol – qual é afinal a sua relação com a doença cardíaca – torna-se uma sequência previsível de proteínas influenciando outras proteínas, um acrônimo alterando outro. A medicina moderna é particularmente dependente desta abordagem. Cada ano, quase 100 bilhões de dólares são investidos em pesquisa biomédica nos EUA, e tudo isso é dirigido em destrinchar os pedaços invisíveis de corpo. Nós presumimos que estes novos detalhes irão finalmente revelar a causa das doenças, atribuindo nossos males a pequenas moléculas ou fragmentos errantes de DNA. Uma vez que achemos a causa, é claro, nós podemos começar a trabalhar na cura.
O problema com esta presunção, entretanto, é que “causas” são um tipo estranho de conhecimento. Isto foi primeiramente demonstrado por David Hume, o filósofo escocês do século 18. Hume deu-se conta de que, embora as pessoas falem de causas como se fossem coisas reais – coisa tangíveis que podem ser descobertas – elas não são, em verdade, factuais. Ao invés disso, Hume disse, cada causa é apenas uma pequena história, uma conjectura cativante, uma “viva ideia produzida pelo hábito”. Quando uma maçã cai de uma árvore, a causa é óbvia: gravidade. O insight cético de Hume é que nós não vemos a gravidade – nós apenas vemos um objeto atraído pela Terra. Nós vemos X, e então Y, e inventamos uma história sobre o que aconteceu entre os dois. Nós podemos medir fatos, mas uma causa não é um fato – é uma ficção que nos ajuda a fazer sentido a respeito dos fatos.
A verdade é que nossas histórias de causa e efeito são obscurecidas por incontáveis atalhos de nossa mente. Na maior parte das vezes, estes atalhos funcionam suficientemente bem. Eles permitem que possamos rebater uma bola, descobrir as leis da gravidade, e projetar tecnologias incríveis. Não obstante, quando trata-se de raciocinar sobre sistemas complexos – digamos, o corpo humano – estes atalhos deixam de ser truques eficientes da mente e tornam-se completamente enganadores.
Considere o clássico conjunto de experimentos desenhado pelo psicólogo belga Albert Michotte, conduzidos pela primeira vez na década de 1940. A pesquisa mostrava uma série de filmes curtos sobre uma bola azul e uma bola vermelha. No primeiro filme, a bola vermelha corre pela tela, toca na bola azul, e pára. A bola azul, enquanto isso, começa a mover-se na mesma direção em que vinha a bola vermelha. Quando Michotte pediu às pessoas para descrever o filme, elas automaticamente adotaram a linguagem da causalidade. A bola vermelha bateu na bola azul, e isto causou o movimento da mesma.
Isto é conhecido como “efeito do lançamento”, e é uma propriedade universal da percepção visual. Embora não houvesse NADA sobre causa e efeito no curto filme de 2 segundos – era apenas uma montagem de imagens animadas – as pessoas não conseguiam deixar de contar uma história sobre o que havia acontecido. Elas traduziram suas percepções em uma crença de causa e efeito.
Michotte então começou a manipular sutilmente os filmes, perguntando às pessoas como o novo filme mudava a sua descrição dos eventos. Por exemplo, quando ele introduzia uma pausa de 1 segundo entre o movimento das duas bolas, a impressão de causalidade (de causa e efeito) desaparecia. A bola vermelha não mais parecia causar o movimento da bola azul. Ao contrário, ambas bolas estavam se movendo por razões inexplicáveis.
Michotte acabou conduzindo mais de 100 estudos deste tipo. Às vezes ele fazia uma pequena bola azul mover-se na frente de uma grande bola vermelha. Quando questionadas, as pessoas insistiam que a bola vermelha estava “perseguindo” a bola azul. Entretanto, se uma grande bola vermelha estava se movendo na frente de uma pequena bola azul, o oposto ocorria: a bola azul estava “seguindo” a bola vermelha.
Há duas lições a serem aprendidas a partir desses experimentos. A primeira é que nossas teorias sobre um conjunto particular de causa e efeito são inerentemente perceptivas, infectadas por todos os truques e atalhos de nosso sistema visual (Michotte comparou as crenças de causalidade com a percepção visual de cores: nós captamos ou percebemos algo como sendo uma causa tão automaticamente quanto identificamos que uma bola é vermelha). E enquanto Hume estava certo – que causas nunca são vistas, apenas inferidas – a verdade nua e crua é que nós não temos como saber a diferença. Então nós olhamos para meras bolas se mexendo e automaticamente vemos causas, um verdadeiro melodrama de batidas e colisões, perseguição e fuga.
A segunda lição é que explicações causais são uma super-simplificação. Isto é que as tornam úteis. Nos permitem fazer sentido do mundo em um rápido olhar. Por exemplo, após assistir os filmes curtos, as pessoas imediatamente acomodavam-se com a explicação mais direta sobre as bolas ricocheteantes. Embora esta versão fosse percebida como verdadeira, o cérebro não estava atrás da verdade literal – estava apenas buscando uma história plausível que não contradissesse as observações visuais.
Esta abordagem mental para a causalidade é frequentemente eficiente, e por isso mesmo está tão profundamente entranhada em nosso cérebro. Entretanto, estes mesmos atalhos nos metem em sérios problemas quando confiamos em nossos truques e hábitos de percepção para explicar eventos que não podemos perceber com os sentidos ou compreender com facilidade. Ao invés de aceitar a complexidade da situação – digamos, o emaranhado de relações de causa e efeito da rota metabólica do colesterol – nós insistimos em fingir que estamos vendo uma bola azul e uma bola vermelha chocando-se uma com a outra. Há um descompasso fundamental entre a forma com que o mundo funciona e a forma que pensamos que ele funciona.
A boa notícia é que, nos séculos que se passaram desde Hume, os cientistas têm, na maior parte das vezes, conseguido contornar este descompasso enquanto continuam a descobrir relações de causa e efeito com velocidade impressionante. Este sucesso é, em grande parte, um tributo ao poder das correlações estatísticas, que têm permitido aos pesquisadores desviar dos problemas da causalidade. Embora os cientistas frequentemente lembrem a si mesmos que correlação não é a mesma coisa que causa e efeito, quando uma correlação é clara e consistente, então eles tipicamente presumem que uma causa foi encontrada – que realmente existe alguma conexão invisível entre dois resultados mensurados.
Os pesquisadores desenvolveram um sistema impressionante para testar estas correlações. Em geral, eles dependem de uma medida abstrata conhecida como “significância estatística”, inventada pelo matemático inglês Ronald Fischer nos anos 1920. Este teste define como “significante” qualquer dado que pudesse ser produzido pelo acaso menos de 5% das vezes. Embora um resultado significante não seja garantia de se ter achado a verdade, é largamente tido como um indicador importante de bons dados, uma pista de que a correlação talvez não seja coincidência.
Mas aqui vem as más notícias. A dependência de correlações está entrando em um era de retornos decrescentes. Pelo menos dois fatores contribuem para esta tendência. Primeiro, todas as causas fáceis já foram encontradas, o que significa que os cientistas são agora forçados a pesquisar por correlações cada vez mais sutis, peneirando uma montanha de fatos em busca das menores associações. Seria esta uma nova causa? Ou apenas uma flutuação estatística? A linha está ficando cada vez mais tênue; a ciência está ficando difícil. Segundo – e este é o grande problema – procurar correlações é uma péssima forma de lidar com o grande tópico da maior parte da pesquisa moderna: as redes complexas que constituem o cerne da vida. Enquanto as correlações nos ajudam a traçar as relações entre medições independentes, como a ligação entre fumo e câncer, elas são muito menos eficientes em dar sentido à sistemas nos quais as variáveis não podem ser isoladas. Tais situações requerem que compreendamos todas as interações antes possamos entender qualquer uma delas de forma confiável. Dada a natureza bizantina da biologia, isso costuma ser uma fardo intimidante, requerendo do pesquisador que não apenas mapeie a rota metabólica completa do colesterol, mas também de que forma esta rota está inserida em outras rotas (negligenciar estas interações secundárias e mesmo terciárias começa a explicar a falha do torcetrapib, que teve efeitos não antecipados na pressão sanguínea. Também ajuda a explicar o sucesso do Lipitor, que parece ter efeitos secundários na redução da inflamação). Infelizmente, nós frequentemente desconsideramos esta estonteante e intrincada complexidade, buscando em vez disso a mais simples das correlações. É o equivalente cognitivo de trazer um canivete para uma disputa de armas de fogo.
Esta tendência preocupante manifesta-se mais vividamente na indústria farmacêutica. Embora os fármacos modernos sejam supostamente o resultado prático da pesquisa básica, a pesquisa e desenvolvimento necessárias para descobrir novos compostos promissores agora custa cerca de 100 vezes mais (em dólares já ajustados para a inflação) do que em 1950 (e também demora cerca de 3x mais). Esta tendência não mostra sinais de estar mudando: as projeções da indústria são de que, após levar em conta os custos das falhas, o custo médio por molécula aprovada deverá chegar a 3,8 bilhões de dólares em 2015. E, o que é pior, mesmo estes compostos de “sucesso” não parecem compensar o investimento. De acordo com outra estimativa interna, aproximadamente 85% das novas drogas de prescrição médica aprovadas pelos reguladores europeus adicionam pouco ou nenhum benefício ao que já existe. Estamos testemunhado a lei de Moore ao contrário.
Isto nos trás de volta ao colesterol, um composto cuja história cientifica reflete a nossa relação torturante com o problema da causalidade. Num primeiro momento, o colesterol era inteiramente mau; as correlações ligavam altos níveis da substância com a placa das artérias. Anos mais tarde, nos demos conta que havia múltiplos tipos e que apenas o LDL era ruim. Então tornou-se claro que o HDL é mais importante do que o LDL, ao menos de acordo com os estudos de correlação e em estudos animais. E agora nós simplesmente não sabemos o que importa, uma vez que aumentar os níveis de HDL com torcetrapib não parece ajudar em nada. Embora nós tenhamos mapeado todas as partes conhecidas das rotas bioquímicas, as causas que realmente importam simplesmente permanecem desconhecidas. Se isto é progresso, é um tipo muito peculiar.
Dor lombar é uma epidemia. Os números são assombrosos: há uma chance de 80% de que, em algum momento durante a sua vida, você irá sofrer disso. A qualquer momento, 10% dos americanos estão completamente incapacitados por suas regiões lombares, e por isso a dor lombar é o segundo maior motivo pelo qual as pessoas vão ao médico (o primeiro são os check-ups). E todo este tratamento custa caro: de acordo com um estudo recente publicado no Journal of the American Medical Association (JAMA), os americanos gastam cerca de 90 bilhões de dólares todos os anos tratando a dor lombar – quase equivalente ao que gastamos com câncer.
Quando os médicos começaram a ver um rápido aumento dos casos de dor lombar em meados do século 20, como eu descrevo em meu livro How We Decide (“como decidimos”), eles tinham poucas explicações. A região lombar é uma área extremamente complexa, cheia de pequenos ossos, ligamentos, discos e pequenos músculos. E temos ainda a medula espinhal propriamente dita, um espesso cabo composto de nervos que podem facilmente ser perturbados. Há tantas partes móveis nas costas que os médicos tinham dificuldade de descobrir o quê, exatamente, estava causando a dor da pessoa. Como resultado, o paciente acabava em geral sendo mandado para casa com uma receita de repouso no leito.
Este plano terapêutico, embora simples, era extremamente efetivo. Mesmo que não se fizesse nada com a coluna lombar, em torno de 90% dos pacientes melhorava em 6 semanas. O corpo curava a si mesmo, a inflamação melhorava, o nervo relaxava.
Nas décadas seguintes, esta abordagem prática para a dor lombar permaneceu como o padrão do tratamento médico. Tudo isso mudou, contudo, com a introdução da ressonância nuclear magnética (RNM) no final dos anos 1970. Estas máquinas de diagnóstico empregam imãs poderosíssimos para gerar imagens incrivelmente detalhadas do interior do corpo. Em poucos anos, as máquinas de RNM tornaram-se uma ferramenta de diagnóstico crucial.
A visão proporcionada pela RNM levou a uma nova história de causalidade: a dor lombar era o resultado de anormalidades nos discos da coluna vertebral, estas pequenas almofadas que separam as vértebras. Os exames de ressonância certamente forneciam evidências objetivas: a dor lombar correlacionava-se fortemente degenerações sérias dos discos, que por sua vez eram tidas como causadoras da inflamação dos nervos locais. Consequentemente, os médicos começaram a administrar infiltrações locais para acalmar a dor e, se a dor persistisse, eles procediam à retirada cirúrgica do disco danificado.
Mas as imagens perfeitas da RNM eram enganosas. Resulta que anormalidades dos discos normalmente não são causa de dor lombar crônica. A presença de tais anormalidades tem a mesma probabilidade de estar correlacionada com ausência de problemas nas costas, como demonstrou um estudo publicado no New England Journal of Medicine de 1994. Os pesquisadores selecionaram 98 pessoas sem dor lombar, e fizeram uma RNM em todos eles. Os resultados foram chocantes: Dois terços das pessoas normais tinham “sérios problemas” como protrusão discal. Em 38% deles, a RNM revelou múltiplos discos danificados. Não obstante, nenhum destes pacientes sentia nenhuma dor. O estudo concluiu que, na maioria dos casos, “a descoberta de uma protrusão discal em uma RNM de um paciente com dor lombar baixa pode, frequentemente, ser apenas uma coincidência”.
Um padrão similar apareceu em um estudo recente de James Andrews, um ortopedista especialista em medicina do esporte. Ele fez imagens dos ombros de 31 jogadores profissionais de beisebol. As RNM mostraram que 90% deles tinha cartilagens anormais, um sinal de dano que normalmente levaria à realização de cirurgia. Contudo, todos gozavam de perfeita saúde. Não é dessa forma que as coisas deveriam funcionar. Nós presumimos que mais informação tornará mais fácil a tarefa de encontrar uma causa, que visualizar os tecidos moles das costas revelará a origem da dor, ou ao menos algumas correlações úteis. Infelizmente, isso frequentemente não acontece. Nosso hábito visual de nos precipitarmos às conclusões assume a direção. E todos estes detalhes extras acabam por nos confundir: quanto mais sabemos, parece que menos compreendemos.
A única solução para esta falha em nosso funcionamento mental é ignorar deliberadamente o excesso de fatos, mesmo que os fatos pareçam relevantes. E é exatamente isso que está acontecendo com o tratamento da dor lombar: os médicos estão sendo encorajados a não pedir RNM no processo diagnóstico. As mais recentes diretrizes da American College of Physicians (Associação Médica Americana) e da American Pain Society (Socidade Americana de Tratamento da Dor) recomendam fortemente que os médicos “não solicitem exames de imagem ou outros testes diagnósticos em um primeiro momento para pacientes com dor lombar baixa não específica”.
E não são apenas as RNM’s que parecem ser contraproducentes. Mais cedo este ano, John Ioannadis, um professor de medicina de Stanford, conduziu uma profunda análise dos biomarcadores na literatura científica. Biomarcadores são moléculas cuja presença, quando detetctada, é usada para inferir a presença de doença e aferir os efeitos do tratamento. Eles têm-se tornado uma característica definidora da medicina moderna (se você já fez exame de sangue alguma vez, você verificou biomarcadores. O colesterol é um clássico exemplo de biomarcador). Nem precisaria dizer que a utilidade destes testes depende inteiramente de nossa habilidade de perceber causa a partir de correlação, para ligar flutuações dos níveis de uma substância à saúde do paciente. No artigo científico resultante, publicado no JAMA, Ioannidis examinou apenas os biomarcadores mais fortemente pesquisados, restringindo sua busca bibliográfica àqueles com mais de 400 citações em revistas científicas de alto impacto. Ele identificou biomarcadores associados com problemas cardiovasculares, doenças infecciosas e risco genético de câncer. Embora estas histórias de causalidade tenham inicialmente detonado uma onda de interesse – vários destes biomarcadores já haviam se transformado em exames médicos populares – Ioannidis descobriu que as alegações frequentemente eram desmentidas com o tempo. Em verdade, 83% das correlações originalmente encontradas tornaram-se significativamente mais tênues nos estudos subsequentes.
Veja o caso da homocisteína, um aminoácido que por várias décadas parecia estar ligado à doença cardíaca. O artigo original que detectou esta associação foi citado mais de 1.800 vezes e levou os médicos a prescrever várias vitaminas B para reduzir os níveis de homocisteína. Entretanto, um estudo publicado em 2010 – envolvendo 12.064 voluntários por mais de 7 anos – mostrou que o tratamento não tinha nenhum efeito sobre o risco de ataque cardíaco ou derrame, a despeito do fato de que os níveis de homocisteína de fato houvessem sido reduzidos em cerca de 30%.
O ponto mais importante é que nós construímos nosso sistema de saúde de 2,5 trilhões de dólares em torno da crença de que podemos descobrir a causa subjacente das doenças, os gatilhos invisíveis da dor e da doença. E é por isso que exaltamos a chegada de novos biomarcadores e ficamos tão excitados com as últimas tecnologias de imagem médica. Se apenas soubéssemos mais, e pudéssemos enxergar com mais detalhes, as causas de nossos problemas revelar-se-iam a si mesmas. Mas, e se não for assim?
A falha do torcetrapib não encerrou o desenvolvimento de novas drogas para o colesterol – o mercado potencial é simplesmente grande demais. Embora o composto permaneça como uma prudente lembrança de que nossas crenças causais são definidas por sua super-simplificação e de que até os sistemas mais bem compreendidos são ainda cheios de surpresas, os cientistas continuam sua busca pela pílula mágica que fará a doença cardíaca desaparecer. Ironicamente, o mais novo tratamento da moda, uma droga desenvolvida pela Merk chamada anacetrapib, inibe exatamente a mesma proteína que era inibida pelo torcetrapib. Os resultados iniciais do ensaio clínico tornados públicos em novembro de 2010, pareciam promissores. Diferentemente de seu primo químico, este composto não parece elevar a pressão arterial sistólica ou causar ataques cardíacos (um estudo bem maior está em andamento para descobrir se a droga ao menos salva vidas). Ninguém sabe explicar conclusivamente por que estes dois compostos tão similares desencadeiam efeitos tão diferentes ou por quê, de acordo com uma análise de 2010, altos níveis de HDL podem em verdade ser perigosos para algumas pessoas. Nós sabemos tanto sobre o metabolismo do colesterol, mas parece que nunca sabemos o que realmente importa.
Dor lombar crônica também permanece um mistério. Embora os médicos há muito tempo tenham presumido que haja uma correlação válida entre dor e imperfeições físicas – um disco herniado, um músculo distendido, um nervo pinçado – há um crescente corpo de evidências sugerindo um papel para fatores aparentemente não-relacionados. Por exemplo, um estudo recente publicado na revista Spine concluiu que traumas físicos menores não tinham praticamente nenhuma correlação com dor incapacitante. Ao contrário, os pesquisadores identificaram que um pequeno subgrupo de “fatores não-espinhais”, tais como depressão e fumo eram muito mais relacionados com episódios de dor importante. Nós tentamos consertar as costas, mas talvez as costas não sejam o que precisa ser consertado. Talvez estejamos buscando causas no lugar errado.
O mesmo tipo de confusão afeta muitas de nossas histórias causais (de causa e efeito). A terapia de reposição hormonal deveria reduzir o risco cardíaco em mulheres pós-menopáusicas – o estrógeno previne a inflamação dos vasos sanguíneos – mas uma série de ensaios clínicos recentes mostrou que a reposição produz o efeito oposto, ao menos em mulheres mais velhas (supunha-se que ajudaria a evitar o Alzheimer também, mas isso também não ocorreu). Nos disseram que suplementos de vitamina D previnem a perda óssea em pessoas com esclerose múltipla e que a vitamina E reduziria o risco cardiovascular – e nenhuma dessas coisas resultou ser verdadeira.
Seria fácil desconsiderar estes estudos como as inevitáveis idas e vindas do progresso científico. Alguns artigos estão destinados a ser contestados. O que é notável, entretanto, é a frequência com que isso acontece. Um estudo, por exemplo, analisou 432 diferentes marcadores genéticos de risco para diferentes doenças que variavam ente homens e mulheres. Apenas UM destes marcadores mostrou-se consistentemente reprodutível. Uma outra metanálise, neste meio-tempo, avaliou os 49 estudos clínicos mais citados da literatura, publicados entre 1990 e 2003. Muitos destes eram a culminação de anos de trabalho meticuloso. Contudo, demonstrou-se que mais de 40% deles foram mais tarde considerados completamente errados ou significativamente incorretos. Os detalhes sempre mudam, mas a história permanece a mesma: nós achamos que entendemos como algo funciona, como todos aqueles fragmentos de fatos se encaixam. Mas não entendemos.
Dada a crescente dificuldade em identificar e tratar as causas das doenças, não surpreende que algumas empresas tenham respondido abandonando áreas inteiras de pesquisa. Mais recentemente, duas empresas líderes, Astra-Zeneca e Glaxo-Smith-Kline, anunciaram que estão cortando suas áreas de pesquisa sobre o cérebro. O órgão é simplesmente complexo demais, com muitos circuitos que não compreendemos.
David Hume refere-se à causalidade como o “cimento do universo”. Ele estava sendo irônico, pois sabia que este assim denominado cimento era uma alucinação, uma história que contamos a nós mesmos para conseguirmos fazer sentido dos eventos e observações. Não importa com quanta precisão conhecêssemos um dado sistema, Hume deu-se conta, suas causas subjacentes permaneceriam sempre misteriosas, obscurecidas por margens de erro e incerteza. Embora o processo científico tente fazer com que os problemas façam sentido isolando cada uma de suas variáveis, imaginando, digamos, o que aconteceria com um vaso sanguíneo se o HDL – e nada mais – fosse modificado, a realidade não funciona desse jeito. Ao contrário, vivemos em um mundo no qual tudo está amarrado, um emaranhado impenetrável de causas e efeitos. Mesmo que um sistema seja finalmente dissecado em seus componentes mais básicos, estas partes sofrem ainda a influência de um turbilhão de forças que, ou não conseguimos entender, ou esquecemos de considerar, ou achamos que não tinham importância. Hamlet tinha razão: de fato há mais coisas entre o céu e a terra do que pode sonhar nossa vã filosofia.
Isto não significa que nada pode ser conhecido e que cada história causal é igualmente problemática. Algumas explicações claramente funcionam melhor do que outras, o que explica – graças principalmente a avanços na saúde pública – o aumento contínuo na expectativa de vida (de acordo com o Centro para Controle e Prevenção de Doenças, coisas como água potável e esgoto – e não necessariamente avanços na tecnologia médica – explicam 25 dos mais de 30 anos adicionados à expectativa de vida dos americanos durante o século XX). Embora nossa dependência de correlações estatísticas tenha limitações intransponíveis – que limitam as pesquisas modernas – tais correlações ainda assim permitiram identificar muitos fatores de risco essenciais, tais como o cigarro e dietas ruins.
E ainda assim, não devemos esquecer jamais que nossas crenças causais são definidas por suas limitações. Por muito tempo, fingimos que o velho problema da causa e efeito pudesse ser curado por nosso mais novo pedaço de conhecimento. Se apenas devotássemos mais recursos para pesquisas, ou dissecássemos o sistema em um nível ainda mais fundamental, ou procurássemos por correlações cada vez mais sutis, poderíamos descobrir como tudo funciona. Mas uma causa não é um fato, e nunca será; as coisas que nós vemos serão sempre limitadas pelas que não podemos ver. E é por isso que, mesmo quando nós soubermos tudo sobre tudo, ainda estaremos contando histórias sobre por que aquilo acontece. É mistério do início ao fim.