Sobre galgos e bassets

A pergunta chega todos os dias: “não importa o que eu faça, não importa o quanto eu restrinja os carboidratos ou mesmo as calorias, meu peso está estacionado em um platô há 3 meses”.

Pois é. Isso tem um nome. É o “set point“, sobre o qual já escrevi em outra postagem. É o ponto de equilíbrio escolhido pelo nosso corpo. É curioso como as pessoas aceitam naturalmente a existência dos inúmeros outros “set points” da nossa fisiologia, mas têm dificuldade de aceitar que possa haver um set point para quantidade de gordura corporal. Alguns exemplos?

  • Osmolaridade. Refere-se à concentração do sangue. O sangue nunca fica muito concentrado nem muito diluído. Há um controle rígido da osmolaridade do sangue. Quer fazer um teste? Beba uma 1 litro d’água. Seu sangue ficará aguado, diluído? Nada disso! Em pouco tempo você começará a urinar, até que a concentração do sangue fique igual a antes; fique um tempo sem beber nada, e virá uma sede irresistível – o sensor que detecta estas mínimas flutuações da concentração do plasma é um osmostato, localizado no hipotálamo. É ele que determina a excreção de água pelos rins e a sensação de sede, automaticamente e com alta precisão.
  • Temperatura. Nossa temperatura é extremamente regulada, o que é incrível dado o grau de variação das temperaturas externas a que somos submetidos, bem como à variação do calor gerado internamente pela atividade física e metabolismo. Não importa se é verão e está fazendo 40 graus, ou se é inverno e está fazendo 5 graus, sua temperatura oscila apenas DÉCIMOS de grau. Como é possível? Pois no hipotálamo (olha ele aí de novo) há um termostato. Se sua temperatura cai alguns décimos, você treme (para gerar calor) e sente frio, o que o leva a comportamentos que naturalmente aumentam sua temperatura (cobrir-se, ir para o sol, etc). Se a temperatura interna sobe um pouco, você produz suor para dissipar o calor e tem a sensação de calor, que o leva a comportamentos que diminuem a temperatura (vontade de ir para a sombra ou para dentro d’água). Quando ocorre uma febre, o ajuste do termostato sobe, digamos, 2 graus. E então o corpo passa a trabalhar em direção a esta nova temperatura: haverá tremores (geração de calor) e sensação de frio, que fará com que você vista casacos ou cubra-se, até que a temperatura chegue lá. Se a temperatura for reduzida artificialmente (entrando em uma banheira de água gelada, por exemplo), a temperatura baixará um pouco, e por pouco tempo, pois o corpo buscará novamente o set point. Se, contudo, resolvermos a causa da febre, o set point baixará, e o corpo voltará sem nenhum esforço à sua temperatura normal.

Pois bem, no mesmo hipotálamo há um fino controle do status energético do corpo. Este “obesostato” (na falta de nome melhor, eu inventei esse) recebe informações de todo o corpo, na forma de impulsos nervosos oriundos tanto da periferia como do cérebro, além de diversos hormônios, os mais conhecidos (mas não os únicos!) sendo a insulina e a leptina. Quando o obesostato detecta uma queda nos níveis de gordura corporal ABAIXO do que ele considera ideal, dispara, como nos outros casos descritos acima, uma sensação e determinados comportamentos e mudanças fisiológicas. A sensação é a fome, e os comportamentos incluem o cansaço, a inatividade e uma diminuição do gasto metabólico basal. Se baixarmos artificialmente o peso através de déficit calórico severo, haverá uma queda na quantidade de gordura corporal ABAIXO do que o obesostato considera ideal. Ato contínuo, a fome, o cansaço e mudanças mais sutis no gasto metabólico basal e na eficiência energética entram em ação, trazendo a pessoa novamente ao ponto que o obesostato considera adequado. Não importa se é acima do que VOCÊ considera ideal. E não importa que seja dezenas de quilos acima do que seria o correto para sua altura (de acordo com as tabelas). Assim como você não tem controle voluntário sobre sua temperatura, ou a concentração de glicose, potássio ou qualquer outra coisa, sua simples vontade não controla o set point do peso. Se o obesostato considerar que 100 Kg é seu peso ideal, é ali que o peso vai ficar.

Há uma faixa de oscilação possível do set point de peso. Reduzir os carboidratos é, em geral, capaz de baixar o set point. Quando isso acontece, o peso se reduz sem esforço, da mesma forma que a febre se dissipa numa poça de suor. Mas, da mesma forma que a temperatura não cai indefinidamente quando você toma um anti-térmico até você ficar gelado – o set point apenas muda de um valor mais alto para outro valor mais baixo, o peso não cai indefinidamente – o obesostato apenas encontra outro set-point – e vai defender este set point com unhas e dentes contra perdas adicionais de peso. E da mesma forma que tomar mais comprimidos de antitérmico não abaixará mais a temperatura, cortar ainda mais os carboidratos que já estão baixos não o fará emagrecer mais, até minguar e desaparecer. O corpo simplesmente não funciona assim.

Há várias estratégias para tentar reduzir o set point, além da restrição de carboidratos. Exercício físico de alta intensidade (veja aqui e aqui) pode ajudar. Reduzir o stress pode ajudar. Dormir bem pode ajudar. Eliminar fontes de inflamação pode ajudar. Como já vimos, a flora intestinal está intimamente ligada a esse processo – mas a forma de alterá-la positivamente não está completamente definida (embora açúcar e farináceos com certeza a alterem negativamente).

Mas há um aspecto que às vezes preferimos ignorar, devido à sensação de impotência que provoca: a genética. Mais uma vez, quando pensamos fora do exemplo humano, aceitamos a genética de forma muito natural.

Vejamos, à guisa de exemplo, duas raças de cães: galgos e bassets.

O galgo é uma raça que foi criada para correr. São naturalmente magros, com pernas longas – corredores natos, enfim. Eles não são magros porque correm muito. Eles correm muito porque são magros – são máquinas de correr, literalmente nasceram para isso.

O basset, ao contrário do galgo, foi geneticamente selecionado para ter pernas curtas, orelhas longas e cara simpática. Seu set point de gordura corporal é muito maior do que o de um galgo:

Um basset saudável e campeão

Obviamente, esta característica pode ser exagerada pelos hábitos alimentares:

Este basset provavelmente come a comida do dono!

O set point de um basset pode ser mais baixo, quando comparado ao de outros bassets:

Já o galgo não engorda por mais que coma – eu simplesmente não consegui achar uma imagem de um galgo gordo. O basset tem uma faixa de variação de set point geneticamente determinada. Com certeza este basset da foto acima está bem mais saudável do que o anterior. Mas um basset nunca será um galgo. Não importa quanto exercício um basset faça, quantos carboidratos ele consuma, um basset sempre parecerá mais gordinho e mais lento do que um galgo.

Em humanos, há uma concordância de aproximadamente 90% entre gêmeos idênticos no que diz respeito à gordura corporal. Ou seja, quase 90% da quantidade de gordura que você têm no corpo é determinada geneticamente (Anon, 2001. A twin study of weight loss and metabolic efficiency. , Published online: 22 March 2001; | doi:10.1038/sj.ijo.0801559, 25(4). Available at: http://www.nature.com/ijo/journal/v25/n4/full/0801559a.html)

Mais do que isso, a eficiência energética (o quanto a perda de peso prevista durante uma restrição calórica concorda com a perda observada – algumas pessoas perdem mais peso do que se previa, outras perdem menos) também é geneticamente (77%) determinada:

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Cada par de números identifica um par de gêmeos idênticos – os que estão abaixo da linha diagonal perdem peso com mais dificuldade, os que estão acima, perdem peso facilmente. Observe que os pares estão sempre relativamente próximos, indicando que a genética determina fortemente a facilidade ou dificuldade em emagrecer.

O contrário também foi demonstrado: a genética influencia a resistência ao ganho de peso em pessoas que recebem 1000 calorias a mais todos os dias (uns ganham peso, outros não)Levine, J.A., Eberhardt, N.L. & Jensen, M.D., 1999. Role of Nonexercise Activity Thermogenesis in Resistance to Fat Gain in Humans. Science, 283(5399), pp.212–214. Available at:http://www.sciencemag.org/content/283/5399/212

No mundo do fisiculturismo, há muito tempo se sabe que o mesmo fenômeno de diferentes tipos corporais, geneticamente determinados, ocorre conosco. Grosseiramente, as pessoas podem ser divididas em ectomorfos, mesomorfos e endomorfos.

  • Ectomorfos: magros, membros longos e esguios. São as pessoas que querem ganhar peso mas, não importa o que façam, não conseguem. Têm muita dificuldade de ganhar músculos também, mesmo com exercícios e suplementação. São os “galgos” humanos;
  • Mesomorfos: são tipos atléticos, “sarados”, que ganham massa muscular com muita facilidade e são naturalmente mais fortes. Ganham gordura com mais facilidade do que os ectomorfos, mas perdem com facilidade também;
  • Endomorfos: membros curtos, musculatura mais forte porém menos definida, ganham gordura com muita facilidade e têm dificuldade para emagrecer. Têm a musculatura menos definida. São às vezes chamados de “atarracados”. São os bassets.

As modelos que aparecem nas capas de revistas são ectomorfas e, frequentemente, submetidas a Photoshop. Esse é o modelo de beleza socialmente criado para mulheres. Os modelos masculinos são mesomorfos e, frequentemente, anabolizados. Esse é o modelo de beleza socialmente criado para homens.

Embora um basset nunca possa virar um galgo, não penso que os bassets se entristeçam com isso. Aliás, pelo contrário, eu imagino que o basset leve vantagem. Qual desses dois você acha que ganha mais afagos?

 

É, pois é, eu também acho que é o de baixo. Mas imagine se o Basset crescesse ouvindo que só os galgos têm valor? Talvez mesmo o fato de saber que ele é um basset saudável não fosse suficiente para consolá-lo.

Um endomorfo dificilmente será um modelo de capa de revista, dada a norma social vigente. Por mais low carb que coma, por mais exercício que faça. Para os editores da revista, um basset magro não substitui um galgo. Mas e daí? Um basset mais magro é um basset mais saudável e mais feliz. Ainda é um pouco fofinho, digamos assim, mas não é obeso, não têm dor nas costas, e consegue subir sozinho no sofá.

Eu não tenho a fórmula para transformar bassets em galgos. Ninguém tem. Mas uma abordagem páleo, low carb, seguramente produzirá bassets (e pessoas) mais saudáveis, mais felizes, e que não precisam passar fome para não engordar.

Uma vez entendidas as limitações intransponíveis (o fato de que a loteria genética não é feita apenas de ganhadores), resta-nos refletir sobre a importância de ao menos poder interromper um processo – que parecia inexorável – de ganho de peso, restaurando a saúde e a sensação de bem estar, de forma SUSTENTÁVEL, pois não envolve fome crônica e não nos deixa escravos da comida, permitindo comer para viver, ao invés de viver para comer. Se houvesse uma pílula que fornecesse metade desse benefício, seria a pílula mais vendida da história.

****** ATUALIZAÇÃO ******

Uma leitora me mandou a figura abaixo, dizendo que a postagem acima a ajudou a parar de agir como na caricatura. Sensacional:

Detalhe: será que a maioria de nós não persegue um ideal igualmente mitológico e imaginário?

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