Low-carb e autoimunidade

Já se vão 245 postagens neste blog, que aborda o assunto dieta low-carb e páleo, e nunca tratei diretamente do tema autoimunidade (que refere-se àquelas doenças nas quais o sistema imunológico ataca os tecidos do próprio organismo, coisas como artrite reumatoide, psoríase, e uma vasta gama de patologias). E isso é estranho. Por quê? Porque há extensa evidência anedótica (ou seja, de relatos de casos individuais) de melhora significativa ou até mesmo de remissão completa de patologias autoimunes com dieta low-carb/páleo. Os principais autores da área (Loren Cordain, Mark Sisson, Robb Wolf e tantos outros) dedicam capítulos inteiros à relação entre dieta e autoimunidade em seus livros. Mas é na “blogosfera” páleo que a coisa corre solta. Apenas digite “paleo” seguida de sua doença autoimune preferida no google, e centenas de relatos de sucesso individual surgirão.

Então, vem a pergunta. Por que nunca escrevi diretamente sobre o assunto? Porque o grau de evidência é baixo. Muito baixo. O mais baixo de todos: relatos de casos. E o problema com os relatos de caso é que você encontra relatos de casos de sucesso com QUALQUER coisa. Doenças entram em remissão por conta própria – até mesmo câncer avançado – de vez em quando. E as pessoas atribuem este fenômeno natural à seja-lá-o-que-for que estivesse sendo feito no momento – babosa com mel, cirurgias espirituais, orações, etc. Ou seja, dizer que melhorou da artrite com dieta páleo pode ser tão científico quanto dizer que brigou no trânsito porque marte estava em capricórnio. E esse não é o nível de evidência que embasa o restante das postagens desse blog.

Assim, vou introduzir o assunto dieta paleolítica e autoimunidade com um alerta: ao contrário do que acontece com a maior parte das demais postagens do blog, esta postagem sugere possíveis benefícios não comprovados cientificamente, baseados em relatos de caso. Dito isso, há grande PLAUSIBILIDADE na hipótese que dá sustentação a essa ideia, como veremos a seguir.


Plausibilidade diz respeito ao fato de que há mecanismos biológicos e físicos que tornam uma teoria viável e até provável. Os mecanismos biológicos através dos quais a modulação da permeabilidade intestinal pela dieta pode influenciar a produção de autoanticorpos e a inflamação crônica sistêmica são bem estabelecidos, especialmente em modelos animais. Assim, o emprego de uma dieta de estilo paleolítico na tentativa de aliviar patologias autoimunes pode até não ser uma intervenção completamente comprovada (faltam ainda os ensaios clínicos randomizados), mas é uma intervenção cientificamente PLAUSÍVEL, para a qual há ampla sustentação de evidências anedóticas. E o risco? Zero – é apenas comida de verdade!

Numa equação de benefício/risco, o risco é o denominador. Uma intervenção com alto risco (quimioterapia citotóxica, por exemplo) jamais poderia ser conduzida com base em evidências fracas de seu benefício – não seria ético. Mas quando a intervenção consiste em deixar de comer alimentos processados, açúcar e farináceos – algo cujo único risco é ficar mais saudável – temos uma situação completamente diferente. Na ausência de risco, um benefício potencial – mesmo que não comprovado – é MAIS UM motivo para que se proponha uma mudança de estilo de vida: páleo comprovadamente melhora vários aspectos de sua saúde, e PODE inclusive melhorar certas doenças autoimunes ou idiopáticas para as quais a medicina, em 2014, não tem nada a oferecer, exceto tratamentos sintomáticos e com efeitos colaterais de grande monta.

Em resumo:

  • Mecanismo? Plausível. 
  • Benefício? Provável (com base na quantidade de relatos e na plausibilidade do mecanismo). 
  • Risco? Não há. 

Este é, sem dúvida, o maior disclaimer da história. Agora que já está claro que não estou afirmando que trata-se de algo comprovado, podemos finalmente começar a postagem!

***


Já perdi a conta do número de pacientes que vi melhorar de patologias inflamatórias de origem “idiopática” (“idiopático” é o jargão médico para “não sei a causa”) com a adoção de uma dieta de estilo paleolítico. Dentre as várias mudanças introduzidas (redução drástica de alimentos processados, retirada dos carboidratos e das gorduras refinadas, eliminação total dos grãos, em especial o trigo), não há dúvidas de que a mais relevante no que diz respeito à autoimunidade é a retirada total do glúten (quem já leu o livro barriga de trigo sabe sobre o que estou falando – se não leu, clique aqui e aqui, e leia o livro) .

Quando falamos isso, as pessoas (leigos e médicos) não conseguem imaginar um mecanismo fisiopatológico que possa explicar esse fenômeno. Mas o mecanismo existe, e está bem descrito.

80% das células do sistema imunológico estão concentradas no intestino, o que não deveria ser surpresa, visto que é uma superfície mucosa gigante, no interior da qual encontram-se DEZ vezes mais bactérias do que há células humanas em todo o corpo.

A integridade dessa barreira é crítica, e o balanço é delicado. A barreira não pode ser impermeável, pois negaria a função do órgão (absorção). Mas a barreira não pode ser permeável demais, para não permitir a passagem de polissacarídeos de gram-negativos (endotoxemia) nem polipeptídeos inteiros (queremos absorver aminoácidos das proteínas que ingerimos, e não AS proteínas).

Numa analogia imperfeita, podemos imaginar a barreira intestinal como um filtro de café – precisa ser permeável para deixar passar a saborosa infusão, mas não deve deixar passar a borra do café. Qualquer coisa que produzir aumento dos poros (ou mesmo um rasgo) nesse filtro, permitirá que a borra de café passe para o outro lado. O filtro fica “vazando” (“leaky”, em inglês). O intestino com aumento da permeabilidade é conhecido em inglês como “Leaky Gut” – que traduzirei de agora em diante por intestino permeável.

Assim, qualquer estímulo que altere a permeabilidade da barreira intestinal pode provocar, de um lado, um estado crônico de inflamação sistêmica, com a liberação de citocinas, fator de necrose tumoral, e outros mediadores por leucócitos estacionados junto a essa mucosa (que, repito, constituem cerca de 80% dos leucócitos do corpo) e, de outro lado, a passagem para a corrente sanguínea de proteínas parcialmente digeridas leva à produção de anticorpos em grande quantidade contra estes epítopos (áreas contra as quais os anticorpos são dirigidos). E, com frequência, tais anticorpos identificam epítopos em fragmentos do que comemos que fazem reação cruzada com epítopos em nosso próprio corpo (causando autoimunidade).

Esta é a ligação fundamental entre permeabilidade intestinal aumentada e autoimunidade. O glúten é o maior exemplo de produto alimentar que provoca alterações inflamatórias e de permeabilidade intestinal. Observem que isso não tem NADA a ver com doença celíaca! Doença celíaca afeta menos de 2% da população. Estamos aqui falando da totalidade das pessoas, nas quais a GLIADINA, uma das proteínas que compõem o glúten, interage diretamente com a ZONULINA, uma proteína essencial para o controle de permeabilidade da mucosa intestinal (proteína da “zonula occluens”, ou “tight junctions”):



Uma vez abertas as portas da permeabilidade intestinal, a coisa vira uma loteria. Na melhor das hipóteses, desenvolve-se um quadro de inflamação crônica de baixo nível (low level chronic inflamation); na pior das hipóteses, autoimunidade franca.

A especificidade dos autoanticorpos determinará então a sintomatologia: dermatites, artrites, rinites, polineuropatias, cistites não infecciosas, todas “idiopáticas”, e todas com alta taxa de remissão após a retirada completa do agente agressor.

REPITO, não são anticorpos contra o glúten (por isso, os exames de doença celíaca serão NEGATIVOS). São anticorpos contra uma miríade de outros antígenos que ganham acesso ao sistema imunológico devido a um aumento da permeabilidade intestinal (“leaky gut”), sendo o glúten apenas o agente desencadeador do processo, através do efeito da gliadina sobre a zonulina.

Isso quem diz não sou eu. Já está na literatura peer reviewed. Por exemplo (para o pessoal da área da saúde):

Clin Rev Allergy Immunol. 2012 Feb;42(1):71-8. doi: 10.1007/s12016-011-8291-x.

Leaky gut and autoimmune diseases.

Fasano A.

Abstract

Autoimmune diseases are characterized by tissue damage and loss of function due to an immune response that is directed against specific organs. This review is focused on the role of impaired intestinal barrier function on autoimmune pathogenesis. Together with the gut-associated lymphoid tissue and the neuroendocrine network, the intestinal epithelial barrier, with its intercellular tight junctions, controls the equilibrium between tolerance and immunity to non-self antigens. Zonulin is the only physiologic modulator of intercellular tight junctions described so far that is involved in trafficking of macromolecules and, therefore, in tolerance/immune response balance. When the zonulin pathway is deregulated in genetically susceptible individuals, autoimmune disorders can occur. This new paradigm subverts traditional theories underlying the development of these diseases and suggests that these processes can be arrested if the interplay between genes and environmental triggers is prevented by re-establishing the zonulin-dependent intestinal barrier function. Both animal models and recent clinical evidence support this new paradigm and provide the rationale for innovative approaches to prevent and treat autoimmune diseases.

PMID: 22109896

(não vou traduzir, é mais para que o pessoal da área da saúde não pense que eu estou inventando :-P).


Para quem se interessar, o artigo abaixo (cuja íntegra encontra-se aqui) explica em detalhes o mecanismo fisiopatológico das alterações de permeabilidade intestinal (o exemplo que o autor usa é o diabetes tipo 1 – sim, mais uma coisa causada pelo glúten) e sua relação com toda uma gama de patologias autoimunes.

Este outro estudo aborda a relação entre intolerância não-celíaca ao glúten e várias patologias (entre elas a artrite reumatoide, patologias neurológicas, cólon irritável, diabetes – clique aqui para ler na íntegra):

Para uma aula magistral de uma hora de duração sobre esse assunto com o maior pesquisador do tema na atualidade, assista esse vídeo (sorry, sem legendas):

Existe certo “parentesco” molecular entre glúten e as lecitinas das leguminosas (coisas que crescem em vagens, como feijão, soja, lentilha e amendoim – para um belo artigo do Dr. Cordain sobre o assunto, clique aqui). Da mesma forma, a caseína do leite pode produzir reação cruzada em quem tem sensibilidade ao glúten. Assim, para as pessoas que apresentam problemas relacionados a autoimunidade, pode ser interessante fazer uma dieta páleo estrita, isto é, rígida – sem leguminosas nem laticínios de nenhum tipo. Mas, para muitas pessoas, basta apenas e tão somente remover o glúten – há que testar!

Em resumo, em virtude dos incontáveis relatos (anedóticos) de melhora e remissão das mais variadas doenças de cunho autoimune com o emprego de dieta páleo (e em particular com a retirada completa do glúten), do mecanismo fisiopatológico já bastante esclarecido, e do crescente número de artigos científicos publicados sobre a relação glúten->leaky gut->autoimunidade, bem como do fato de haver ZERO risco em, por exemplo, trocar o macarrão por salmão, TODO o paciente portador dessas patologias deveria, na minha opinião, realizar um teste de no mínimo 30 dias de low-carb/páleo. O pior que pode acontecer é não haver melhora. O melhor que pode acontecer… fica para a próxima postagem.

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