Programa Fantástico e o teste dos gêmeos

Literalmente: O plural de anedota não é dados. Ou seja, algumas histórias individuais (casos “anedóticos”) não substituem estudos científicos.

O fato de sua avó ter fumado e ter vivido até os 95 anos (caso anedótico) não significa que fumar faça bem à saúde. Se compararmos 100 fumantes e 100 não fumantes (um estudo científico), a verdade ficará clara. 

O programa Fantástico, da Rede Globo, vai apresentar amanhã (25/05/2014) um programa da BBC no qual a BBC faz exatamente essa confusão – um estudo mal conduzido, com dois gêmeos idênticos – caso anedótico – levando a conclusões que contrariam grandes estudos científicos. É a historinha da avó fumante, em horário nobre.

O assunto é requentado. Já foi analisado e criticados meses atrás, inclusive aqui no blog, em postagem datada de 3 de fevereiro. Por favor, releia aquela postagem.

Estamos em um momento no qual a visão alternativa está ganhando momento, com estudos de peso e editoriais de importantes periódicos médicos indicando que, de fato, a ênfase na restrição das gorduras e o passe livre dado aos carboidratos na dieta estavam equivocados. Eis que, mais de 3 meses depois, justamente agora, a Globo opta por trazer essa problemática reportagem à tona.

Minha primeira reação foi a de conspiração: “é a indústria, tentando manter a cabeça fora da água enquanto o chão se desfaz sob seus pés”. Mas depois, pensando melhor, acho que se aplica aqui o velho adágio:

“Nunca atribua à malícia o que pode ser adequadamente explicado pela estupidez”

Bem, no que consiste o teste da BBC? Dois irmãos gêmeos idênticos, médicos, com 35 anos, fizeram um teste: 1 mês em dietas diferentes, um, de alto carboidrato e baixa gordura (Low Fat); outro, de baixo carboidrato e alta gordura (Low Carb).

As dietas já começam mal. O irmão Low Carb não podia comer salada – isso não é proibido em uma dieta Low Carb – pelo contrário, é estimulado; por outro lado, podia beber leite, que não faz parte de dietas Low Carb. E sua dieta era altamente processada, o que é frontalmente contrário ao moderno movimento LCHF, que propõe o consumo de alimentos não processados. Vamos adiante:

  • O Peso: O irmão Low Carb perdeu mais peso do que o irmão low fat, o que é o esperado, visto quetodos os estudos que comparam as dietas indicam perdas de peso maiores em Low Carb. A perda de peso foi pequena, sugerindo que os carboidratos presentes no leite, hamburgers, maionese e outros produtos processados pudessem ter prejudicado.
  • A massa muscular: aqui, o programa comete um erro CRASSO. Acontece que o aparelho BodPod, utilizado, só mede massa gorda versus massa magra. E massa magra é tudo o que não for gordura – INCLUSIVE ÁGUA. Assim, trata-se de método não acurado, e que irá superestimar a perda de massa magra em low carb SEMPRE. Por quê? Porque em low carb perde-se glicogênio, junto com o qual perde-se alguns litros de água. Como já foi dito aqui no blog, parte da perda inicial de peso em low carb é água e glicogênio – dizer que isso foi perda de músculos é ridículo – esse aparelho simplesmente não mede isso!
  • O teste mental: esse é ridículo. O teste poderia ter sido o de qualquer atividade cognitiva, testes com matemática, lógica, atenção. No entanto, foi escolhido um teste de Mercado Acionário!! Ora, todo mundo sabe que isso é uma loteria, nem vou perder meu tempo comentando (mas, para quem quiser uma boa leitura, segue a sugestão: O Andar do bêbado: como o acaso determina nossas vidas) – ou talvez eu tenha que comer um pão para poder escrever o resto dessa postagem 🙂
  • O teste físico: foi escolhido a dedo para deixar a dieta low carb em maus lençóis:
    • Não houve tempo adequado para cetoadaptação (isto é, adaptação completa ao uso de  gorduras como fonte principal. Estudos indicam que, para performance em nível competitivo, são necessárias pelo menos SEIS semanas de cetoadaptação.
    • A capacidade de “sprint”, isso é, de realizar um grande esforço anaeróbico, no limite de suas forças, é – de fato – reduzido por uma dieta low carb. (Já abordamos aqui no blog o fato de que dieta cetogênica tem objetivo terapêutico e não está indicada para fins de performance em esportes anaeróbicos competitivos). Em compensação, a capacidade de “endurance”, isto é, de manter a atividade física aeróbica por muito tempo, é preservada e até aumentada.

Para um artigo científico sobre o assunto (e não casos anedóticos), veja:

  • Ou seja, você pega dois irmãos, depleta o glicogênio de um deles e, enquanto ele ainda não está cetoadaptado, dá açúcar ao outro, e manda-os fazer uma corrida de bicicleta morro acima – uma atividade essencialmente glicolítica e anaeróbica – e se surpreende que o irmão low carb foi pior? As cartas já estavam marcadas!! É como licitação no Brasil – já se sabe de antemão que vai ganhar. Se eu quisesse “fraudar” o processo em favor das dietas low carb, bastaria em colocar ambos irmãos para correr uma meia-maratona em jejum. Posso apostar que o low carb, metabolizando gorduras com maior eficiência, ganharia; já o outro, sem poder usar a própria gordura em virtude da insulina alta, consumiria todo glicogênio do corpo antes do fim da prova, e ficaria para trás se não pudesse beber algo com açúcar.
  • A glicose. Ok, ambos irmãos fizeram seus exames de sangue. O colesterol de ambos ficou igual, antes e depois das respectivas dietas. Isso é praticamente IGNORADO pelo programa de TV!!! Afinal, os autores desenharam um programa com o objetivo claro de mostrar que low carb faz mal. Se o colesterol do irmão low carb houvesse subido, metade do programa seria dedicado a isso. Mas não subiu, então… temos que procurar outra coisa!! A glicose! Mas a glicose deu NORMAL, em ambos irmãos, e foi medida uma única vez (e estava dentro da margem de erro de medição de glicose, que chega a 20%). Azar, é o que temos, então é o que vamos usar para dizer que low carb faz mal.
    • Como já escrevi tempos atrás aqui no blog, é NORMAL que a glicose em jejum suba em dieta cetogênica. Isso se deve a um fenômeno chamado de resistência à insulina fisiológica. (para ler um breve artigo científico escrito por um leitor aqui do blog, o Dr. Rennan Caminhotto, clique aqui). Isto não tem NADA a ver com o risco de desenvolver diabetes. Pelo contrário, está BEM estabelecido que o risco de diabetes está relacionado ao consumo de AÇÚCAR –  LEIA AQUI E AQUI.
    • Reproduzo aqui a explicação simplificada da postagem de 2013 sobre o assunto:
      • quando reduzimos significativamente os carboidratos da dieta, o corpo passa a usar a gordura como fonte de energia (por isso perde-se peso!). Mas alguns tecidos necessitam de certa quantidade de glicose (sistema nervoso central, rins, células do sangue), e o fígado produz esta quantidade. Ao mesmo tempo, os demais tecidos (músculos, gordura) deixam de utilizar esta glicose para que a mesma fique disponível para os órgãos que precisam. Isso faz com que, às vezes, a glicemia de jejum fique mais alta (pois os músculos estão usando gordura, e não glicose!) – mas o fato de a hemoglobina glicada continuar normal (ou mesmo baixar) prova que a sua glicemia, durante as 24 horas do dia, nos últimos meses, está mais BAIXA, na média, e não mais alta.
      • Aliás, como já expliquei em outra postagem, a relação epidemiológica do diabetes é justamente com a redução da gordura e com o aumento dos carboidratos na dieta:

O grande problema com as mancadas da mídia é que a ignorância tem infinitas permutações, mas o sábado só tem 24 horas. Espero que o Fantástico me dê uma folga nos próximos finais de semana…

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