“Science is the belief in the ignorance of experts” (Richard Feynman)
“People use statistics as a drunken man uses lamp posts—for support, not illumination” (adaptado de Adrew Lang)
07/10/2019 – atualização – assista um resumo do assunto no vídeo abaixo:
Um leitor cardiologista, que muito me honra ao prestigiar esse blog, fez recentemente uma série de questionamentos e comentários no que diz respeito ao estudo de Framingham (um estudo de coorte iniciado em 1948, que dura até hoje, e que ajudou a definir os fatores de risco cardiovascular), a real utilidade das estatinas (drogas para baixar o colesterol) e o conceito de NNT (número de pessoas que precisam ser tratadas para obter-se determinado desfecho). Comentou ainda sobre o benefício dessas drogas quando se considera o universo de milhões de pessoas que as usam, o que poderia significar milhares ataques cardíacos evitados. Já escrevi sobre isso, em postagens esparsas. Mas vou empreender um esforço para sintetizar meu pensamento atual sobre o tema.
- Framingham
Já falei um pouco sobre o estudo de Framingham em outra postagem:
Famingham é uma pequena cidade nos EUA. Qual sua importância? Como diz o “portal do coração, do site UOL”:
“Cerca de 60 anos atrás, uma cidade dos Estados Unidos, Framingham (estado de Massachusetts), foi selecionada pelo governo americano para ser o local de um estudo cardiovascular. Foram inicialmente recrutados 5.209 residentes saudáveis entre 30-60 anos de idade para uma avaliação clínica e laboratorial intensa. Desde então a cada 2-4 anos, esta população e, atualmente as gerações descendentes, é reavaliada cuidadosamente e acompanhada em relação ao desenvolvimento de doença cardíaca.
O consagrado estudo de Framingham foi o primeiro a demonstrar a importância de alguns fatores de risco para o desenvolvimento de doença cardíaca e cérebro-vascular (derrame cerebral).”
Este estudo continua até os dias de hoje – já são várias gerações de moradores de Framingham minuciosamente acompanhados.
Por que falar de um estudo de 1948? Porque este foi o estudo que colocou o colesterol na vitrine, digamos assim. Contudo, são artigos científicos já antigos, e a maioria dos médicos atuais apenas leu a respeito deles, mas nunca leu os originais. Eu, ao menos, nunca havia lido. E qual não foi a minha surpresa ao descobrir que há muito mais nuances na relação entre colesterol e risco cardiovascular, mesmo no reverenciado estudo de Framingham, que deu origem a tudo isso.
Eis aqui um artigo publicado pelo próprio grupo do estudo de Framingham, avaliando a relação entre doença cardiovascular e colesterol após 30 anos de seguimento (1987):
Uma das coisas que chama atenção, já na introdução do artigo, é a controvérsia existente sobre o colesterol enquanto marcador de risco cardiovascular (sim, havia controvérsia):
“Nos EUA, estamos prestes a embarcar em um grande programa de rastreamento de colesterol. Indivíduos com mais de 20 anos e colesterol elevado serão encaminhados a seus médicos que serão encorajados a baixar o colesterol para menos de 200 mg/dL. Este programa pode ser considerado controverso, uma vez que alguns estudos epidemiológicos mostraram um aumento da morbidade e mortalidade com níveis mais baixos de colesterol. Além disso, dois grandes ensaios clínicos randomizados que examinaram os efeitos de reduzir o colesterol não mostraram redução na mortalidade geral”
O estudo de Framingham mostrou um aumento do risco cardiovascular em pessoas com menos de 50 anos à medida que o colesterol se elevava. Contudo, isso é apenas parte dos resultados.
1) Não havia correlação entre colesterol e mortalidade geral acima dos 50 anos, e dos 60 em diante, não havia associação nem mesmo entre colesterol e mortalidade cardiovascular:
Isto pode ser visto, por exemplo, neste gráfico retirado do estudo, no qual as curvas de mortalidade das pessoas com diferentes níveis de colesterol se sobrepõem, na faixa entre 56 e 65 anos de idade:
Outro achado surpreendente:
After age 50 years there is no increased overall mortality with either high or low serum cholesterol levels. There is a direct association between falling cholesterol levels over the first 14 years and mortality over the following 18 years (11% overall and 14% CVD death rate increase per 1 mg/dL per year drop in cholesterol levels).
“Após a idade de 50 anos, não há aumento de mortalidade geral com colesterol alto ou baixo. Há uma associação direta entre níveis decrescentes de colesterol nos primeiros 14 anos e mortalidade nos próximos 18 anos (um aumento de 11% de mortalidade geral e 14% de mortalidade cardiovascular para cada queda anual de 1 mg/dL de colesterol total)“
Vamos enfatizar, caso você não tenha entendido o parágrafo acima: acima de 50 anos, o colesterol não aumenta o risco de morte, e a cada 1mg/dL de QUEDA do colesterol há um AUMENTO de 14% de mortalidade cardiovascular. Por que será que eu NUNCA ouvi isso na minha faculdade? Talvez porque complicaria a narrativa simplista e linear sobre colesterol?
Em 1992, o então diretor do estudo de Framingham, um dos autores do estudo de 1987 citado acima, escreveu um editorial na revista médica Archives of Internal Medicine (Arch Intern Med. 1992 Jul;152(7):1371-2.), no qual se lê o seguinte desabafo:
“Most of what we know about the effects of diet factors, particularly the saturation of fat and cholesterol , on serum lipid parameters derives from metabolic ward-type studies. Alas, such findings, within a cohort studied over time have been disappointing, indeed the findings have been contradictory. For example, in Framingham, Mass, the more saturated fat one ate, the more cholesterol one ate, the more calories one ate, the lower the person’s serum cholesterol.”
“(…) Em Framingham, quanto mais gordura saturada uma pessoa comia, quanto mais colesterol uma pessoa comia, quanto mais calorias uma pessoas comia, menor era o seu colesterol”
Só para deixar bem claro, essa citação é do Dr. William Castelli, diretor do estudo de Framingham em 1992, estou apenas reproduzindo. Se quiser saber detalhes sobre os dados a que o Dr. Castelli se refere, clique aqui.
Então, de fato o estudo de Framingham detectou a existência de uma associação entre colesterol e mortalidade cardiovascular. No entanto, a magnitude dessa associação é pequena, menor ainda em mulheres, e desaparece após os 50 anos. Levando-se em conta que a maioria das pessoas desenvolve problemas cardiovasculares após os 50 anos, a importância deste fator de risco parece ter sido, digamos, bastante exagerada. Framingham mostrou ainda que níveis decrescentes de colesterol estão associados com desfechos adversos, e que o consumo de gordura saturada e colesterol na dieta estão inversamente relacionados aos níveis de colesterol no sangue. Bem diferente do que eu aprendi na faculdade. Mas as citações originais estão aí, basta conferir.
E em idosos? Afinal, é nos idosos que ocorre a maior parte dos eventos cardiovasculares e, naturalmente, de mortes. Qual a relação entre colesterol e doença cardiovascular em idosos?
Um estudo, realizado em Honolulu, investigou esta população, e foi publicado em 2001 na prestigiosa revista científica The Lancet:
O resultado surpreendeu os próprios autores:
“Nossos dados reforçam achados prévios de aumento de mortalidade em idosos com colesterol baixo, e mostram que a persistência de colesterol baixo por longo prazo na verdade aumenta o risco de morte. Assim, quanto mais cedo os pacientes começam a ter valores baixos de colesterol, maior o risco de morte”
“Nós não conseguimos explicar nossos resultados. Estes dados lançam dúvidas sobre a justificativa científica para baixar o colesterol para níveis muito baixos.”
Alguém poderia dizer que eu escolhi o único estudo que mostra um resultado anômalo. Não, não é o caso. Como vimos, já na introdução do estudo de Framingham, muitas décadas atrás, citava-se a preocupação com “estudos epidemiológicos que mostraram um aumento da morbidade e mortalidade com níveis mais baixos de colesterol.” À guisa de exemplo, segue outro estudo em idosos, desta vez focando-se nos níveis de LDL:
Observe que os níveis de mortalidade são maiores nos níveis muito BAIXOS de LDL quando comparados com os muito altos, e a menor mortalidade é em torno de 160 de LDL (lembrando que as diretrizes brasileiras recomendam menos de 130 ou mesmo de 100 mg/dL).
Por fim, outro estudo, realizado no Japão, com uma população de idosos na faixa de 85 anos de idade, também mostrou resultados, digamos, inesperados:
A linha mais grossa corresponde às pessoas com colesterol mais BAIXO, e que nitidamente morrem MAIS do que as pessoas com colesterol mais alto (linha fina), que são as que morrem MENOS.
Concluem os autores:
“Our results indicate an association between lower serum TC concentrations and increased all-cause mortality in a community-dwelling, very elderly population. Mortality decreased with the increases in both TC and LDL-C concentrations, after adjustment for various confounding factors. These findings suggest that low TC and low LDL-C may be independent predictors of high mortality in the very elderly.”
“Nossos resultados indicam uma associação entre colesterol total mais baixo e aumento em mortalidade por todas as causas em uma população muito idosa. A mortalidade caiu com o aumento em ambos, colesterol total e colesterol LDL, mesmo após o ajuste para variáveis de confusão. Estes achados sugerem que um colesterol total e LDL baixos possam ser preditores independentes de alta mortalidade nas pessoas muito idosas”
Poderíamos citar outros exemplos (a literatura está RECHEADA deles, pois isso é um fato universal, e não uma exceção), mas já deu para ter uma ideia.
E em mulheres? A maioria dos estudos sobre medicamentos para colesterol foram feitos apenas com homens. Já parou para pensar por quê? Um dos motivos é que homens têm maior incidência de doenças cardiovasculares. Mas não é apenas isso. Desde o início, desde as primeiras coortes, ficou claro para os pesquisadores que a relação entre colesterol e doença cardiovascular é ainda mais nebulosa nas mulheres.
O mais recente e influente dos estudos de coorte a demostrar esse fato foi o HUNT-2, um estudo prospectivo norueguês com 52.087 pessoas (DEZ vezes mais do que o estudo de Framingham):
Como já aludi em outra postagem, a conclusão dos autores foi:
Conclusão: nosso estudo fornece uma indicação epidemiológica atualizada de possíveis erros nos algoritmos de risco cardiovascular um muitas diretrizes clínicas. Se nossos achados forem generalizáveis, recomendações clínicas e de saúde pública no que diz respeito aos “perigos” (aspas no original) do colesterol deveriam ser revistas. Isto é especialmente verdadeiro para mulheres, para as quais níveis moderadamente elevados de colesterol (de acordo com os padrões atuais) podem ser não apenas inofensivos, mas até mesmo benéficos.
Veja você mesmo os resultados:
Nitidamente, quanto maior o colesterol, MENOR a mortalidade em mulheres (linha vermelha). Em homens, há uma curva em U, mas nos maiores valores de colesterol (acima de 270) ainda se morre menos do que nos menores (menos de 193).
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- Estatinas
Este blog se ocupa em explicar os motivos fisiológicos pelos quais uma dieta restrita em carboidratos e focada em alimentos não-refinados parece ser a melhor alternativa para prevenir e reverter patologias crônicas ligadas à dieta ocidental padrão. Então, qual o motivo de eu gastar tantas postagens falando sobre colesterol, que não é meu foco principal? O problema é que as pessoas (paciente E médicos) acabam perdendo a noção dos riscos relativos. O indivíduo deixa de fazer uma abordagem dietética que lhe deixou 30 Kg mais magro, sem diabetes, sem pressão alta, e em condições de praticar atividade física, por medo do colesterol que, na pior das hipóteses, aumentaria seu risco cardiovascular de forma irrisória, como vimos acima (o que seria compensado de longe pela melhoria do restante). Ou seja, a falta de perspectiva e a desinformação levam à magnificação de riscos minúsculos, ao mesmo tempo que se ignora riscos óbvios, muito maiores. Em outras palavras, estamos enterrando muitos obesos, diabéticos, sedentários e hipertensos com exames PERFEITOS, que viveram suas abreviadas vidas sob a ilusão de segurança fornecida por seus números baixos no laboratório, porém cegos no que diz respeito à sua circunferência abdominal. Como me disse um amigo médico: “meus números estão prefeitos, mas são todos comprados”.
Aliás, é bom salientar que 75% dos ataques cardíacos ocorrem em pessoas com colesterol BAIXO (LDL < 130) e que 50% ocorrem com LDL ideal (abaixo de 100). Não acredita em mim? Veja você mesmo: Am Heart J. 2009 Jan;157(1):111-117:
No pé da página 113, continuando na página 114, se lê o seguinte:
“Half the patients hospitalized with CAD [coronary artery disease] had admission LDL <100 mg/dL (…). Less than one quarter of patients had an admission LDL>130 mg/dL.”
Já vimos, acima, que colesterol é um fator/marcador de risco muito ruim para doença cardiovascular. Assim, não deveria ser surpresa que estratégias para baixá-lo com dieta são ineficazes na prevenção de doenças ou morte. Isso já foi discutido em outra postagem.
No entanto, com o advento das drogas para baixar o colesterol, tudo mudou (bem, nem tudo). As drogas baixavam o colesterol com muito maior eficácia, sem a necessidade de mudança de hábitos, e reduziam a mortalidade cardiovascular.
O primeiro estudo a mostrar benefício reduziu em 24% a mortalidade cardiovascular, e estudos subsequentes mostraram redução de 50% da mortalidade. Uau! 50%! Parece que a importância do colesterol finalmente ficou demostrada de forma peremptória, certo? Bem, depende. Vejamos:
1) Baixar o colesterol com dieta não reduz a mortalidade;
2) Baixar o colesterol com drogas que não pertencem à classe das estatinas também não reduz a mortalidade;
3) O único estudo que demostrou benefício de mortalidade geral, inclusive em mulheres, foi com estatinas em pessoas com colesterol BAIXO e com marcador de INFLAMAÇÃO alto (falaremos mais adiante disso, ao falarmos sobre o estudo JUPITER);
4) A magnitude da redução de mortalidade é ínfima.
Ínfima? Como assim?? Você não acabou de falar em redução de mortalidade de 50%?
Sim, falei. 50% de redução na mortalidade. E isso é ínfimo. E eu vou provar.
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- Sobre risco relativo e risco absoluto
Já expliquei em outra postagem o problema do chamado risco relativo. Embora seja um conceito matematicamente correto, acaba inflando artificialmente os números, dando a falsa impressão de que um risco diminuto é, na verdade, enorme.
Para que você entenda a questão do risco relativo versus risco absoluto, segue um exemplo bem mundano:
Quer saber como DOBRAR, aumentar em 100%, as suas chances de ganhar na Mega-Sena? Basta comprar DOIS bilhetes.
Se uma pessoa comprou 3 bilhetes de Mega-Sena numa semana, e comprou 2 bilhetes na próxima semana, ela reduziu em 33% suas chances de ganhar.
Obviamente, esses números, embora verdadeiros, são ridículos. Por quê? Porque o risco ABSOLUTO de ganhar na Mega-Sena é ridiculamente pequeno. O dobro de algo minúsculo segue sendo minúsculo.
Vamos então usar os riscos absolutos no exemplo acima: a chance de ser sorteado na Mega-Sena comprando um bilhete com 6 dezenas é de 0,000002%. Se a pessoa comprar dois bilhetes, sua chance de ganhar dobra, aumenta em 100%. Vai de 0,000002% para 0,000004%. Em termos relativos, um aumento de 100%. Em termos absolutos, um aumento de 0,000002%!
Uma pessoa que compre 3 bilhetes tem 0,000006% de chance de ser sorteada. Se ela comprar 2 bilhetes, terá 0,000004% de chance. É uma redução de 33% no risco de se tornar milionário. Uma grande redução? 33% a menos de chance!! Em termos RELATIVOS. Em termos ABSOLUTOS, trata-se de uma redução de 0,000002% na sua chance de ganhar. Essa redução de 33% é importante? CLARO QUE NÃO, pois ela se traduz em uma redução de apenas 0,000002% na chance real (ridiculamente pequena) de ganhar.
Imaginemos agora duas armas com lugar para 6 balas. Suponhamos que eu coloque em uma delas 3 balas, e na outra 2. Você precisa escolher uma delas para fazer roleta russa. A chance de levar um tiro na cabeça é 33% menor com uma das armas. Essa redução de 33% é importante? CLARO QUE SIM. Por quê? Porque a o risco ABSOLUTO, nesse caso, é gigante: Você tem 50% de chance de levar um tiro com a arma que tem 3 balas, e 33% de chance com a arma que tem 2 balas. A redução de risco absoluto neste caso é 50% – 33% = 17%.
Entenda: em ambos casos (2 bilhetes ao invés de 3 e 2 balas ao invés de 3) a redução de risco relativo foi a MESMA, 33%. Mas, no primeiro caso, a redução ABSOLUTA foi de 0,000002 pontos percentuais, e no segundo foi de 17 pontos percentuais. E por quê? Porque o risco ABSOLUTO de ser contemplado no concurso da Mega-Sena é ridiculamente pequeno, e o risco ABSOLUTO de ser contemplado com uma bala na cabeça em uma roleta russa é ridiculamente alto.
Qual a mensagem que devemos levar dos exemplos acima?
- É necessário saber o RISCO ABSOLUTO de um determinado desfecho (ganhar na Mega-Sena, morrer na roleta russa);
- O que importa é EXCLUSIVAMENTE a redução do risco ABSOLUTO do desfecho.
Ano passado, traduzi e postei uma longa palestra do Dr. David Diamond (veja aqui), no qual ele chama atenção para um fato muito interessante. Em 1984, foi publicado o famoso estudo LRC-CPPT, no qual uma droga antiga para redução do colesterol (colestiramina) demonstrou pela primeira vez uma redução no risco de eventos cardiovasculares em relação ao placebo (redução absoluta de 1,6% nos eventos cardiovasculares, mesmo número de mortes nos dois grupos). Trata-se de um caso interessante, por vários motivos:
1) Os autores não escolheram uma população representativa da sociedade em geral. Como de hábito, o objetivo era escolher um grupo com alto risco absoluto de doença cardiovascular, para ter uma chance maior de demonstrar o efeito benéfico da medicação. Assim, foram incluídos apenas pacientes do sexo masculino e com colesterol acima de 300.
2) Se analisarmos apenas o braço placebo do estudo, temos uma chance única de avaliar a história natural de 1900 pessoas com alto risco cardiovascular, observadas por 7,5 anos sem NENHUM tratamento. Quantas pessoas, com colesterol acima de 300, ainda estavam vivas em 7,5 anos, repito, sem nenhum tratamento? 98%. Noventa e oito por cento das pessoas escolhidas a dedo pelos pesquisadores por seu risco cardiovascular muito elevado estavam vivas em 7,5 anos. Ou seja, o risco existe, mas não é nem de longe tão grande quanto se imagina. É preciso ter isso em perspectiva antes de achar que você tem risco de morte iminente porque seu colesterol passou de 200.
Em outra postagem, fiz alusão ao tema do risco absoluto versus risco relativo, e reproduzo aqui:
Em 2003, foi publicado o famoso estudo em que o Lipitor (uma conhecida estatina) provou reduzir em 36% o número de infartos fatais e não-fatais após 3,3 anos de uso. Este estudo foi financiado pela Pfizer. Baseado em estudos como este, todas as pessoas com colesterol “elevado” têm sido orientadas a receber estatinas.
Todos os pacientes tinham pelo menos 3 dos seguintes fatores de risco: sexo masculino (81.1%), idade > 55 anos (84.5%), tabagismo (33.2%), diabetes (24.3%), história de doença coronariana em parentes de primeiro grau (26%), Triglicerídeos:HDL > 6 (14.3%), doença vascular periférica (5.1%), hipertrofia ventricular esquerda (14.4%), AVC prévio (9.8%), anormalidades específicas do ECG, (14.3%), proteinúria/albuminúria (62.4%).
Ou seja, mais uma vez, não estamos falando da população em geral, mas de uma parcela bastante doente, de alto risco.
Quando olhamos os números absolutos, contudo, o que encontramos?
- De cada 100 pessoas usando placebo, 3 morreram em 3,3 anos
- De cada 100 pessoas usando Lípitor, 1,9 morreram em 3,3 anos
O número de pessoas vivas no final do estudo foi igual nos dois grupos, já que quem não morreu do coração morreu de outras causas.
Como EU leio esses números?
“Em um grupo de pessoas de alto risco, 100 pessoas precisariam tomar o remédio por 3,3 anos para que uma pessoa não morra de infarto OU não tenha um infarto não-fatal. Mas, mesmo assim, essa pessoa irá morrer, só que de outra coisa, como diabetes ou câncer.”
Então é mentira a afirmação de que essa medicação reduz em 36% o risco cardiovascular? O mais incrível é que não, não é mentira. É uma uma forma tendenciosa e enganadora de apresentar os dados, através do uso do risco relativo, escondendo o risco absoluto. Como fazer essa mágica estatística?
É simples: a mortalidade no grupo placebo foi 3%, e no grupo Lípitor foi 1,9%. Embora a forma honesta de relatar este resultado seja dizer que houve uma redução de 3 – 1,9 = 1,1% no RISCO ABSOLUTO, a foma ESPERTA de relatar o resultado é dizer que houve uma redução de 1,9 / 3 = 0,36 = 36%!
Vamos repetir, caso não tenha ficado claro: 1,9% é 36% a menos do que 3%. Assim, a redução de 1,1% entre os tratados e não tratados é uma redução de 36%.
Se você for o anunciante (Pfizer), você dirá isso:
Mas se você ler os dados do estudo original, você dirá, sendo HONESTO, o seguinte:
Se você tiver sérios riscos cardiovasculares, vários dos quais podem ser eliminados com mudanças de estilo de vida (como cigarro, triglicerídeos altos e diabetes tipo 2), e tomar este remédio por 3,3 anos, você terá 1% de chance a menos de ter um infarto OU de morrer do coração, embora você tenha 1% de chance a mais de morrer de diabetes, câncer ou outras causas neste período.
Ou seja, é VERDADE que o uso de estatinas reduz o risco de eventos cardiovasculares fatais e não fatais em pessoas de alto risco. Mas a redução é muito pequena em termos ABSOLUTOS (na maioria dos estudos é algo entre 0,5 a 1%), e não se aplica a todas as pessoas com um colesterol um pouco elevado, e sim a uma população selecionada de pessoas de alto risco, semelhante àquela que foi selecionada no estudo em questão.
E então, surgiu o estudo JUPITER. JUPITER é um acrônimo para “Justification for the Use of Statin in Prevention: An Intervention Trial Evaluating Rosuvastatin”. Esse estudo, publicado em 2008 no New England Journal of Medicine, provocou manchetes mundo a fora, como essas:
“Estudo: estatinas ajudam pessoas com colesterol NORMAL também”.
Pela primeira vez, um estudo científico demonstrava que uma medicação para baixar o colesterol (rosuvastatina) reduzia não apenas a mortalidade cardiovascular, mas também a mortalidade geral. Mais do que isso: beneficiava tanto homens quanto mulheres. O estudo, patrocinando pelo fabricante (AstraZeneca), contou com 18 mil pacientes, e demonstrou uma redução de 54% em ataques cardíacos, 48% menos derrames, 46% menos angioplastias e 20% menos mortes.
Essas são reduções grandes ou pequenas? Se você leu esta postagem com atenção, sua resposta virá na forma de uma pergunta: “qual o risco ABSOLUTO dos eventos, e qual a redução de risco ABSOLUTO”? Veremos, mais abaixo…
Parece que DESSA vez, a importância do colesterol na doença cardiovascular estava definitivamente demonstrada? Só havia um pequeno detalhe: a TOTALIDADE dos pacientes incluídos neste estudo tinha colesterol BAIXO. Como é que é? Isso mesmo. Um dos critérios de inclusão no estudo JUPITER era colesterol-LDL menor do que 130 (o outro era uma proteína-C reativa maior do que 2, um marcador de inflamação).
Eu espero que não tenha escapado ao leitor a ironia: o primeiro e grande estudo que finalmente mostrou que as estatinas salvam vidas (poucas, como veremos abaixo), foi conduzido exclusivamente em pessoas com colesterol BAIXO!!
Como assim? Acontece que as estatinas têm OUTROS efeitos além da redução do colesterol (efeitos “pleitrópicos”, no jargão médico). E um desses efeitos é anti-inflamatório. Isso é AMPLAMENTE aceito, e o melhor lugar para ler sobre isso é na própria introdução do estudo JUPITER, que deixa claro que o motivo da realização do estudo é que 3/4 (75%) das pessoas que infartam têm colesterol ABAIXO do recomendado (alguém, novamente, vê a ironia?).
Ok, e qual é a magnitude real, absoluta, dos benefícios da rosuvastatina em pessoas com colesterol normal e inflamação alta (PCR elevada)? Preparados???
- Número de pessoas que sofreram desfecho desfavorável no grupo placebo: 1.36 a cada 100 pessoas/ano
- Número de pessoas que sofreram desfecho desfavorável no grupo rosuvastatina: 0,77 a cada 100 pessoas/ano
Ou seja, a redução foi de 1,36% – 0,77% = 0,59%
Pessoal, é menos de 1%. Não estamos falando aqui de riscos da magnitude de uma roleta russa; estamos falando aqui de frações de um ponto percentual. Não se trata de “risco eminente de morrer em breve caso você não comece a tratar imediatamente”; trata-se de ZERO vírgula alguma coisa por cento de risco a menos de morrer, após alguns anos de tratamento, no único estudo que jamais mostrou esse efeito, patrocinado pela indústria (veja aqui porque isso é importante), e exclusivamente em pessoas com colesterol baixo.
Mas este estudo demonstrou uma outra coisa, pouco conhecida pelo público, e que já aparecera em outros estudos de estatinas: houve um aumento na incidência de DIABETES no grupo tratado em relação ao grupo placebo. Esse aumento foi pequeno, é bem verdade, mas o benefício observado também foi!!! Ou seja, não adianta usar o bom senso apenas quando convém (minimizar os efeitos colaterais): a mesma lógica que permitiria dizer “pode usar o remédio, pois menos de 1% das pessoas vão desenvolver diabetes“, serve para dizer “para que usar o remédio, se menos de 1% das pessoas irão se beneficiar?“. Falaremos um pouco mais sobre isso na próxima seção.
Para tentar fazer mais sentido desses números pequenos (menos de 1%), existe uma ferramenta muito útil, sobre a qual discutiremos a seguir:
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- NNT
NNT é uma sigla em inglês que significa Number Necessary to Treat – o “Número que Precisaria ser Tratado”. O NNT nada mais é o do que isso: quantas pessoas precisam ser tratadas para se obter um desfecho. O desfecho pode ser ser evitar uma morte, evitar uma doença (como um infarto não fatal, por exemplo); mas pode ser também um desfecho ruim, como desenvolver um efeito colateral, ou mesmo uma nova doença em virtude do tratamento.
O NNT tem a grande virtude de transmitir, imediatamente, tanto a médicos como a leigos, a magnitude do efeito levando-se em conta riscos absolutos. Ou seja, ele não se presta à manipulações estatísticas, motivo pelo qual é muito POUCO usado.
Há uma instituição, chamada TheNNT.com, que usa as melhores evidências disponíveis para gerar o NNT para diversas intervenções; um detalhe importante é que esse grupo de médicos não aceita dinheiro de outras fontes, muito menos da indústria, a fim de manter sua independência. Os resultados são apresentados de forma numérica e gráfica.
Vejamos, então, como fica o NNT do uso das estatinas em prevenção primária, ou seja, para tratar pessoas com colesterol alto, mas que não são portadoras de doença cardiovascular atual:
Statin Drugs Given for 5 Years for Heart Disease Prevention (Without Known Heart Disease)
Traduzindo: em uma população que ainda não tenha infartado, usar estatinas por 5 anos:
- Não salva NENHUMA VIDA
- Precisa tratar 50 pessoas para produzir um caso de DIABETES
- Precisa tratar apenas 10 para produzir danos musculares
- Precisa tratar 268 pessoas para evitar 1 derrame
- Precisa tratar 60 pessoas para evitar um ataque cardíaco NÃO FATAL
Ok, mas esses resultados são para as pessoas como um todo. Vamos agora adaptar o resultado para uma pessoa específica. Trata-se de uma paciente minha, 42 anos, leitora desse blog, que perdeu 16Kg em poucos meses, está em seu peso ideal, não usa nenhuma medicação, não fuma, pratica atividade física diariamente. Seus exames, no entanto, indicam um colesterol total de 341 e um HDL de 79 (LDL calculado de 241). Pergunto: ela está em grande risco de vida? Ela deveria abandonar imediatamente seu estilo de vida atual e passar a usar estatinas em altas doses? Vejamos:
No formulário abaixo, eu coloquei os dados da minha paciente para calcular o seu risco cardiovascular (morte + infarto) nos próximos 10 anos, de acordo com o estudo de Framingham, a fim de tentar responder a essas perguntas:
Ok, sabemos agora que essa paciente tem 0,9% de chance de ter um ataque cardíaco ou de morrer nos próximos 10 anos. MENOS DE 1%. Então, qual seria o benefício do uso de estatinas no caso específico da minha paciente??
Uma redução de 0,9% para 0,6% = 0,3%. Do ponto de vista gráfico, eis o que temos:
A barra em vermelha indica o risco de ter um infarto ou morrer nos próximos 10 anos com colesterol de 341 e HDL de 79 na paciente acima. A barra verde seria o risco após usar estatinas diariamente por 10 anos. E a linha amarela seria o benefício conferido pelas estatinas (talvez você precise de uma lupa).
E em termos de NNT, como ficaria a situação?
Vejamos, se nossa paciente com colesterol de 341 e HDL de 79, 42 anos, saudável, passar a usar estatinas todos os dias pelos próximos 10 anos:
- Sua chance de morrer (mínima) não será alterada;
- Precisaríamos tratar 465 pacientes iguais a ela para prevenir 1 infarto NÃO-FATAL;
- Precisaríamos tratar 67 pacientes iguais a ela para causar 1 caso de DIABETES;
- Precisaríamos tratar 10 pacientes iguais a ela para que uma tivesse dano muscular (lembrando que nossa paciente pratica atividade física diariamente).
E então, o colesterol dela é realmente ruim? O risco dela é realmente elevado? O benefício do tratamento é significativo? Os riscos do tratamento são realmente pequenos?
Veja, isso cabe a ELA decidir, de posse da informação. Acontece que nem ela, nem você, e provavelmente nem 95% dos médicos JAMAIS viu esses números – os riscos ABSOLUTOS. Eu não me preocuparia com um risco menor do que 1% em 10 anos, e definitivamente não acharia importante reduzi-lo em 0,3% com medicação. Mas talvez a minha paciente pense diferente – é uma prerrogativa DELA. Mas para haver liberdade de decisão é imprescindível que haja acesso à informação.
Ok, mas e se fosse uma situação de maior risco? Digamos, alguém que já teve um infarto (e que, portanto, tem um risco aumentado de ter um segundo evento)? Vejamos:
Statins Given for 5 Years for Heart Disease Prevention (With Known Heart Disease)
Neste caso, teríamos a seguinte situação:
- Precisaríamos tratar 83 pessoas por 5 anos para salvar uma vida
- Precisaríamos tratar 39 pessoas por 5 anos para prevenir um ataque cardíaco NÃO-FATAL
- Precisaríamos tratar 125 pessoas por 5 anos para prevenir um derrame
- Precisaríamos tratar 50 pessoas por 5 anos para causar 1 caso de DIABETES
- Precisaríamos tratar 10 pessoas por 5 anos para causar dano muscular em uma delas.
E então, vale a pena? Bem, obviamente vale muito mais a pena do que o primeiro caso. Afinal, o NNT é muito menor, e ao menos é possível salvar alguma vida. Agora, mais uma vez, caberá ao paciente, juntamente com seu médico, discutir a conveniência ou não do emprego dessas drogas, tendo em mente o risco real e absoluto dos desfechos (morte, ataques cardíacos), o benefício real e absoluto do tratamento, e os riscos reais e absolutos de efeitos colaterais. Usar o risco relativo nestes casos é uma tática imoral para induzir pessoas a agir sob a égide do medo.
Sugerir a uma pessoa que um risco inferior a 1% em 10 anos é elevado (deixando-a amedrontada e fazendo-a abandonar seu estilo de vida low carb) é, ao meu ver, desonesto. Da mesma forma, sugerir que a pessoa deverá usar uma estatina, caso contrário estará cometendo um verdadeiro suicídio, quando a redução de risco absoluto é da ordem de 0,3% é, no mínimo, má medicina.
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- O que são valores normais?
As perguntas simples muitas vezes engendram as repostas mais complicadas, não é mesmo? O que, ou quem, determina o que é um valor normal ou desejável para um exame? Depende.
Na maioria dos casos, os valores de referência para variáveis biológicas são obtidos através da mensuração de voluntários sadios, com o que se obtém uma média e um desvio-padrão, a partir dos quais se estabelece como anormal aqueles valores desviantes.
Em outros casos, o valor anormal é aquele a partir do qual o risco de doença aumenta significativamente (sendo o ponto de corte definido arbitrariamente, em geral por consenso).
No caso do colesterol, no entanto, temos uma situação esquisita. O valor considerado como normal, ou desejável (inferior a 200), é ABAIXO da média (dados do estudo de Framingham):
Observe que a MÉDIA do colesterol das pessoas normais é 220, e que os gráficos das pessoas com doença cardíaca e sem doença cardíaca são quase superponíveis, que o colesterol dos doentes é apenas um pouco mais alto, que há 7 vezes mais pessoas sadias do que doentes, e que de 220 a 300 há, portanto, sete vezes mais pessoas saudáveis do que doentes. Observe ainda que a linha pontilhada continua acima de 460, indicando pessoas com hipercolesterolemia familiar, o que desvia a média para cima.
Como isso é possível?? A única explicação seria a de que o valor médio do colesterol estaria acima do valor a partir do qual o risco cardiovascular aumenta. Mas já vimos que o colesterol é um fator de risco cardiovascular muito ruim. Então, de ondem surgiu a ideia de que o colesterol total normal deve ser abaixo de 200, e de que o LDL deve ser abaixo de 130? Saiu da cabeça de um comitê de experts, em 2004.
Da cabeça dos experts, ou dos estudos científicos? Na verdade, da CABEÇA dos experts. Afinal, nunca houve um estudo prospectivo e randomizado que tenha demostrado que os desfechos cardiovasculares diminuem quando o colesterol é reduzido abaixo desses níveis. Ah, sim, e há o fato de que dos 9 experts do painel de especialistas que definiu estes valores nos EUA, 8 receberam consideráveis somas de dinheiro dos laboratórios (veja aqui).
No gráfico abaixo (com dados da Organização Mundial da Saúde, clique aqui para ampliar), as diferentes linhas mostram mortalidade por diferentes causas, e a linha azul é morte por todas as causas. Observe que a mortalidade aumenta mais com colesterol muito baixo do que muito alto, e que a média de Framingham (220) corresponde ao valor de menor mortalidade, numa faixa que se estende até 240.
Mais uma vez, o leitor deve estar incrédulo. Afinal, todos os laboratórios trazem 200 como valor de referência, sugerindo que quanto mais baixo, melhor; além disso, incontáveis pessoas tomam medicamentos pois seu colesterol total está acima de 200 ou o LDL acima de 130.
Bem, eu não vou pedir que acredite em mim. Vou apenas informar que a Associação Americana de Cardiologia mudou suas diretrizes no final de 2013, e agora são eles mesmos que afirmam isso:
- Novas diretrizes de colesterol abandonam os alvos de LDL
Segue o texto:
“Não existem mais os valores-alvo de LDL e colesterol não-HDL, especificamente aqueles que determinam que o médico trate pacientes com doença cardiovascular para atingir um LDL de menos de 100 mg/dl ou objetivo opcional de menos de 70 mg/dl. De acordo com o painel de experts, simplesmente não há evidências de ensaios clínicos controlados e randomizados que dêem suporte à idéia de tratar para atingir um valor específico de LDL. Como resultado, as novas diretrizes não fazem recomendação específica de valores de LDL para prevenção primária ou secundária de doença cardiovascular aterosclerótica.”
Bom, e por que então as diretrizes brasileiras, também em 2013, recomendaram baixar ainda mais os valores de colesterol total de LDL? Bem, eu não posso responder pelos outros, então deixo este fato para a reflexão do leitor.
Mas a beleza estética dessa frase requer a sua repetição:
- “Simplesmente não há evidências de ensaios clínicos controlados e randomizados que dêem suporte à idéia de tratar para atingir um valor específico de LDL.”
Então, é preciso que fique claro que o que foi escrito até aqui não é uma interpretação extravagante dos dados científicos. Foi o próprio painel de experts norte-americanos que, confrontados com o fato de que ficaria mal, frente a toda a predominância da evidência, continuar a defender o indefensável, disse, com todas as letras, como está salientado acima, que:
- Não há indicação de tratar com estatinas apenas porque o colesterol total está acima de 200;
- Não há indicação de tratar com estatinas apenas porque o colesterol LDL está acima de 130.
Então, quer dizer que a partir de agora as recomendações são de não tratar mais tanta gente desnecessariamente? Não. Pelo contrário. Muito mais gente passará a ser tratada. Como assim?
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- As novas diretrizes: acertos, incoerências e overtreatment
As novas diretrizes norte-americanas acabaram com a defesa de coisas constrangedoras:
- A ideia de que apenas o colesterol acima dos limites seja indicação para tratamento;
- A ideia de que se deva medicar com o objetivo de atingir um determinado valor de colesterol;
Duas outras novidades chamam atenção:
- Medicações que baixam o colesterol como fibratos, niancina e ezetimibe (Zetia) não são recomendadas por não afetarem os desfecho que realmente importam (mortalidade);
- A indicação de tratamento passa a ser uma calculadora de risco cardiovascular: se o risco for acima de 7,5% em 10 anos, haverá indicação de estatinas INDEPENDENTEMENTE DOS VALORES DE COLESTEROL.
Observe, caro leitor, mais essa ironia:
- As novas diretrizes, nestes dois últimos tópicos, tacitamente admitem a pouca importância do colesterol como fator de risco cardiovascular. Afinal, medicações cuja única função é baixar o colesterol foram banidas das diretrizes, e foram mantidas apenas as estatinas, que têm ações anti-inflamatórias entre outras (pleiotrópicas) – por serem as únicas eficazes;
- A indicação do tratamento passa a independer dos valores de colesterol, visto que o único estudo que realmente mostrou desfechos favoráveis (com diferença perto de 0,5%, é bem verdade) foi feito em pacientes com colesterol BAIXO e marcadores de INFLAMAÇÃO altos. Mais uma vez, admite-se tacitamente que os efeitos pleiotrópicos das estatinas são os mais importantes.
A nova calculadora de risco, empregada pelas diretrizes, é o grande pomo da discórdia. Ocorre que vários autores respeitados criticaram vigorosamente essa calculadora, pois a mesma superestima o risco cardiovascular.
Vejamos então, como fica a situação:
- O colesterol é um fator de risco ruim para doença cardiovascular;
- Não há evidências de que alguém possa se beneficiar de medicação apenas porque o colesterol está alto;
- As evidências de benefício estão atreladas ao risco, isto é, o que importa é o risco cardiovascular e não o colesterol;
- Até as diretrizes anteriores, pacientes de risco eram aqueles em que se estimava um risco maior do que 20% em 10 anos
- Nas novas diretrizes, o tratamento passou a ser indicado para quem tem risco estimado em mais do que 7,5% em 10 anos
- Isso significa tratar MILHÕES de pessoas sem doença cardiovascular e, em muitos casos, com colesterol completamente normal!
Os integrantes do painel de experts responsáveis pelas novas diretrizes pegaram várias coortes diferentes de pacientes e, com o emprego de algoritmos matemáticos complexos, geraram uma calculadora de risco. Esta calculadora de risco, por sua vez, superestima o risco das pessoas. Pesquisadores de Harvard testaram a calculadora em dados de pacientes de 3 grandes estudos prospectivos, o Women’s Health Initiative, o Women’s Health Study e o Physicians’ Health Study. O que eles descobriram foi que a calculadora forneceu valores de risco que eram quase o dobro do risco real.
Assim, o resultado final de tudo isso é que a Associação Americana de Cardiologia deixa de passar vergonha ao não ir mais contra a ciência (isto é, deixa de recomendar valores específicos de colesterol), e no entanto encontrou uma fórmula no qual muitos milhões de pessoas a mais passam a ser candidatas ao tratamento medicamentoso devido a resultados matemáticos superestimados, produzidos por uma caixa preta chamada calculadora de risco. Golpe de mestre.
Um dos problemas da calculadora é que o risco cardiovascular vai aumentando com a idade. Assim, quase todas as pessoas com mais de 60 anos teriam indicação de usar estatinas, de acordo com essas novas diretrizes, independentemente do valor de seu colesterol. E isso é bizarro, visto que discutimos, acima, o fato de que, nesta população, níveis mais baixos de colesterol estão associados com AUMENTO do risco de morte. Por outro lado, não se pode perder de vista a MAGNITUDE do efeito das estatinas, com reduções de risco absoluto da ordem de menos de 1%.
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- Benefício individual versus benefício populacional
Os pesquisadores dessa área não são intelectualmente limitados e, ao contrário da maioria dos médicos e dos pacientes, conhecem e têm noção do fato desolador de que todas essas décadas de estudo e desenvolvimento farmacológico se resumem a um campo de batalha inferior a um ponto percentual na melhora da sobrevida.
Então, como justificar tanto esforço para persuadir as pessoas a baixar seu risco, digamos, de 2,9 para 2,6% em 10 anos?
A justificativa é a seguinte: em prevenção primária (isto é, quando não houve um evento cardiovascular prévio) é necessário tratar 60 pessoas por cinco anos para evitar um ataque cardíaco não-fatal (não se evitam mortes). Mas isso significa que se tratarmos 60 mil pessoas, poderíamos prevenir 1000 infartos. E se tratássemos 600 mil pessoas, poderíamos prevenir 10.000 infartos.
Há alguns problemas com esse raciocínio.
- ele desconsidera o fato de que as populações dos ensaios clínicos randomizados são altamente específicas, frequentemente com pessoas de alto risco, predominantemente homens, e normalmente poucos idosos. Ou seja, a extrapolação desses dados para, digamos, mulheres idosas é simplesmente errada e não pode ser feita;
- a maioria das pessoas que está tomando uma estatina imagina que com isso está reduzindo drasticamente o seu risco individual, que imagina ser grande. Estas pessoas não foram informadas de que seu risco individual é provavelmente muito pequeno, e de que a sua chance individual de vir a se beneficiar do uso da droga é ínfimo. Ninguém perguntou se estas pessoas CONCORDAM em se sacrificar, via custo financeiro, inconveniência, e efeitos colaterais, para melhorar uma estatística coletiva. Minha forte impressão é de que a pessoa engole um comprimido com a ilusão de estar protegendo a si mesma de um risco que julga ser grande, através de uma redução de risco que imagina ser de boa magnitude;
- É preciso lembrar que a multiplicação dos números para o coletivo aplica-se também aos RISCOS. Isto é, se tratarmos 600.000 pessoas em prevenção primária com estatinas, poderemos prevenir 10.000 infartos não fatais, possivelmente não evitemos nenhuma morte, mas estaremos provocando 12.000 novos casos de diabetes! Assim, nem mesmo o argumento financeiro se justifica, visto que os casos de diabetes (uma doença crônica e que, por si só, aumenta o risco de morte cardiovascular) geraria um custo potencialmente muito maior do que o custo dos tratamento dos infartos não-fatais. Lembrando que nenhum de nós sairá vivo ao final de nossas vidas, eu gostaria de ser informado pelo meu médico de que o comprimido que estou usando não me fará viver mais, mas tem uma pequena chance de permitir que eu deixe de morrer do coração para morrer de câncer, com a mesma idade.
Me parece claro que o individuo que mais se beneficia, nestas circunstâncias, é o acionista, e não o paciente.
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- Epílogo
A decisão de tratar ou não, de preocupar-se ou não, passa necessariamente por uma avaliação adequada da MAGNITUDE DO RISCO ABSOLUTO. Eu costumo dizer que o conceito de risco relativo ainda busca por uma situação realmente honesta em que possa ser aplicado.
Quando o foco recai sobre o risco absoluto, só então é possível entender toda a discussão acadêmica em torno do tema colesterol/estatinas; pelo mesmo motivo, não se vê uma discussão acadêmica acalorada sobre tabagismo – a magnitude absoluta do efeito é enorme.
Certa feita, Ben Goldacre, autor do excelente Bad Pharma: How Drug Companies Mislead Doctors and Harm Patients, escreveu uma alegoria da qual gosto muito. Era mais ou menos assim: “se você usar um capacete todos os dias, diminuirá em 80% a chance de morrer devido à queda de um meteorito em sua cabeça.” Mesmo que isso seja verdade, e mesmo que 80% seja uma redução fantástica, ninguém andaria por aí com um capacete o dia todo, pois todos sabem que o risco absoluto de ser atingido por um meteorito na cabeça é ridiculamente pequeno.
Acontece que as reduções de risco absoluto obtidas com certos medicamentos em determinadas circunstâncias são igualmente risíveis. Você, no fundo, pode estar usando o capacete alegórico, na forma de um comprimido, para se proteger de riscos igualmente irrisórios.
Visto sob esse ângulo, o argumento do bem maior aplicado à coletividade também desnuda a sua estranheza: se TODAS as pessoas andassem com capacetes o dia todo, certamente alguma vida, em algum lugar, seria salva ao impedir a morte vinda dos céus na forma de um meteorito. Tal lógica perversa só poderia interessar ao fabricante de capacetes…
Se você leu com cuidado a postagem até aqui, viu que o colesterol tem, de fato, alguma associação com doença cardiovascular, e que as estatinas reduzem, de fato, os eventos cardiovasculares (e, em alguns casos, até mesmo as mortes).
Mas, se você leu com cuidado a postagem até aqui, deve ter percebido que a magnitude dos riscos absolutos e a magnitude absoluta dos benefícios oferecidos pelos medicamentos está, literalmente, na faixa de MENOS DE 1%, para os casos de prevenção primária (na prevenção secundária, os benefícios são maiores).
Em outras palavras: na história da medicina, creio que nunca se escreveu tanto sobre tão pouco. Nitidamente, a quantidade de atenção devotada ao assunto não é proporcional aos riscos absolutos, e sim à soma de recursos que são movimentados por sua causa.