O reconhecimento da não-inferioridade

Quando estava escrevendo a mais recente postagem, dei-me conta de que era a postagem de número 300. São, de fato, muitas postagens desde 2011. E muitas delas são dedicadas a estudos científicos que indicam a superioridade de uma dieta de baixo carboidratoquando comparada a uma dieta de baixa gordura e baixa caloria. Outros tantos indicam que não há correlação entre gorduras totais ou gordura saturada em doença cardiovascular. Estes são fatos científicos já bem estabelecidos, com alto nível de evidência (ensaios clínicos randomizados e metanálises).

Mas qual o objetivo de tudo isso? Afinal, a verdade é que a grande maioria das pessoas não irá aderir a nenhum estilo de vida ou dieta, independentemente de argumentos científicos. A grande maioria das pessoas vive de forma hedonística, tendo o prazer imediato como único norte. Um exemplo ilustrativo é o tabagismo. No século 21, ninguém fuma por desconhecimento dos riscos. A totalidade dos fumantes o faz porque gosta, SABENDO que faz mal. De forma análoga, as diretrizes nutricionais vigentes tampouco são seguidas pela maioria das pessoas.

Segundo as diretrizes vigentes, quanto menos gordura na dieta, melhor. E a maioria dessa gordura deveria vir, de preferência, de fontes vegetais. De fato, não há estímulo ao consumo de gordura animal nas diretrizes. O que há é TOLERÂNCIA de uma certa quantidade, no máximo 10% (5 a 6% nos EUA!). Da mesma forma, a carne vermelha é demonizada por todas as diretrizes alimentares vigentes. Isso significa que as churrascarias estão vazias? É claro que não – estão sempre lotadas! O que quero dizer é que a informação, correta ou incorreta, afeta muito pouco o comportamento alimentar da esmagadora maioria das pessoas.

De fato, a churrascaria é a antítese do que pregam as diretrizes vigentes, a padaria é a antítese do que eu prego, e o McDonalds é a antítese do que todo mundo prega. E, não obstante, estão todos lotados.

Então, volto ao questionamento original: qual o objetivo de tudo isso? Por que escrever 300 postagens se, no final das contas, a maioria das pessoas seguirá suas inclinações hedonísticas de qualquer maneira, guiadas por suas papilas gustativas? No mundo real, o imediato sobrepuja o mediato, o instinto sempre vence a razão, o ID se sobrepõe ao EGO, o sistema límbico vence o lobo frontal. Por que, então, todo esse esforço quixotesco? Porque ALGUMAS pessoas são diferentes.

Algumas pessoas decidem mudar de vida. Seja porque querem sentir-se melhor nas 20 horas em que não estão comendo, seja porque precisam tratar doenças relacionadas à alimentação (como diabetes ou síndrome metabólica), seja porque querem ver seus netos fazendo vestibular, seja porque querem ficar bem na praia sem camisa ou de biquíni. Saúde ou vaidade, tanto faz, algumas pessoas simplesmente decidem mudar de vida. E, para essas, as diretrizes FAZEM SIM, diferença.

Então, como eu já disse outras vezes, o que me exaspera não é a maioria hedonista, pois eles são imunes às diretrizes – sejam elas quais forem. O que me angustia é a minoria. Aqueles dentre nós que resolveram mudar o estilo de vida para manejar ou reverter alguma doença crônica – como síndrome metabólica ou diabetes – ou mesmo para perder peso. Pois sair da zona de conforto já é suficientemente difícil, e fazê-lo seguindo diretrizes ultrapassadas do ponto de vista científico – o que leva a resultados medíocres e à frustração – me causa profunda consternação. Ver um diabético com uma dieta impressa recomendando o consumo de pão, suco de frutas e batata é, para mim, como um tapa na cara.

Em medicina, há um conceito denominado não-inferioridade. Provar que uma intervenção é superior a outra requer sempre um nível de evidência maior do que aquele que se requer para provar que tal intervenção é apenas equivalente, ou não-inferior. Assim, um tratamento ou intervenção que demonstre resultados equivalentes do que diz respeito aos desfechos de saúde não precisa ser considerado superior ao tratamento padrão. Basta provar a sua não-inferioridade para que possa ser oferecido como uma alternativa viável.

Este blog está repleto de justificativas científicas e de estudos prospectivos e randomizados que dão suporte ao fato de que uma dieta restrita em carboidratos é SUPERIOR a uma dieta restrita em gordura no que diz respeito ao manejo de síndrome metabólica, diabetes e perda de peso. No entanto, vamos admitir, para fins de argumentação, que um pesquisador afeito ao paradigma de restrição de gorduras fizesse um levantamento bibliográfico que mostrasse que, na verdade, as intervenções são todas iguais. Um exemplo disso ocorreu recentemente em uma metanálise publicada no JAMA, na qual foram incluídos apenas dietas com nomes próprios (como Atkins, Dukan ou Ornish). A conclusão? São todas iguais. As pessoas perdem peso igualmente em qualquer dieta, e a perda de peso é maior no início, tendendo a perder eficácia com o passar do tempo. Esta metanálise incluiu estudos nos quais a única intervenção foi dar o livro da dieta para as pessoas lerem, e depois acompanhar o efeito. E o tipo de análise foi a chamada “intenção de tratar“. Isso faz com que uma dieta mais rigorosa e mais eficaz possa ser vista como equivalente a uma mais fácil mas menos eficaz, como já expliquei em outra postagem. Ok, mas para fins de argumentação,vamos considerar que o resto da literatura não existe, e que tudo que existe é esse estudo do JAMA. Este estudo indica a não-inferioridade. Isto é: o manejo dietético padrão, de acordo com as diretrizes vigentes, é uma dieta de 60% de carboidratos e pobre em gorduras. No entanto, quando este padrão é comparado a dietas de baixo carboidrato (e portanto com mais gordura), está ABSOLUTAMENTE CLARA a sua não-inferioridade.

Veja, talvez o maior mérito de haver 300 postagens prévias defendendo com dados convincentes a SUPERIORIDADE de uma dieta low carb sobre as alternativas low fat é o fato de que a NÃO-INFERIORIDADE é absolutamente indiscutível. É uma questão de lógica.

O estudo PrediMed (sobre o qual já escrevi aqui), comparando uma dieta de baixa gordura (defendida pelas diretrizes vigentes) com uma dieta mediterrânea com mais gordura mostrou a INFERIORIDADE da abordagem low fat. Neste semana, uma nova reanálise do mesmo estudo mostrou mais uma vez a inferioridade da abordagem Low Fat (veja aqui – a inscrição do site é gratuita).

A pergunta é: qual o estudo prospectivo e randomizado que já mostrou a utilidade da dieta de baixa gordura? Eu mesmo respondo – não existe. A dieta de baixa gordura é uma mera hipótese, gerada na metade do século passado, e que foi implementada em escala mundial ANTES que qualquer estudo pudesse ter sido conduzido para testá-la. Os estudos foram conduzidos, e falharam. O que resta para a dieta low fat é o mesmo nível de evidência no qual ela mesma foi baseada – a epidemiologia, os estudos observacionais. E, neste quesito, a introdução da dieta low fat coincide com a epidemia de obesidade e diabetes que assola o mundo.

Então, vivemos tempos interessantes. As mesmas pessoas que exigem níveis inatingíveis de evidência que provem que uma dieta de baixo carboidrato é segura e eficaz, defendem uma abordagem (low fat) que foi institucionalizada e tansformada em dogma sem NENHUMA evidência, 40 anos atrás. Um belo telhado de vidro, para quem joga tantas pedras, não é mesmo?

Recapitulando:

  1. Há evidências sólidas de que a gordura na dieta não tem relação com doenças cardiovasculares;
  2. Há evidências sólidas de que diabetes, síndrome metabólica e obesidade respondem MELHOR a dietas restritas em carboidratos do que às demais alternativas;
  3. Há evidências epidemiológicas de que as diretrizes vigentes (low fat, high carb) estão associadas às epidemias de obesidade e síndrome metabólica
  4. Os medos mitológicos relacionados a dietas de baixo carboidratos (rins, fígado, ossos e massa magra) estão todos desmentidos pela ciência.

Neste contexto, aceitar a não-inferioridade (para não dizer a superioridade) da abordagem low carb é OBRIGAÇÃO de todo o profissional de saúde.

Afinal, como eu disse no início, se as diretrizes oficiais mudarem ou não, isso terá pouco impacto sobre a maioria hedonista.

O que não deve ser aceito é que médicos, nutricionistas e educadores físicos critiquem seus clientes por adotarem uma abordagem que é INEQUIVOCAMENTE não-inferior ao paradigma vigente. Estes profissionais podem não gostar, podem não praticar, podem achar que não é sustentável no longo prazo, enfim, têm direito às suas preferências pessoais. Mas, em 2014, é antiprofissional e antiético criticar a opção do paciente/cliente ou – pior ainda – recusar-se a atendê-lo com base em sua opção por este estilo de vida.

No momento em que o mundo todo discute a eventual SUPERIORIDADE de uma abordagem low carb, o corolário lógico é o de que a não-inferioridade já é ponto pacífico. E, se uma abordagem terapêutica é comprovadamente não-inferior, ela passa a ser considerada uma ALTERNATIVA VÁLIDA.

Assim, não estou pregando que todo mundo adote este estilo de vida – já sabemos que a maioria das pessoas não adotará estilo nenhum. Nem mesmo estou dizendo que é impossível ser saudável de outra forma – isso seria sabidamente incorreto. Apenas exorto aos demais profissionais de saúde para que deixem as pessoas em paz! Assustá-las com alegações inverídicas e demovê-las de um estilo de vida saudável é não apenas criminoso, mas também imoral.

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