E se os paleolíticos comessem pão?

Recentemente um estudo sugeriu que os carboidratos, além da caça, teriam sido importantes para a evolução do cérebro humano. Isso gerou manchetes bombásticas. O estudo não foi baseado em novas descobertas arqueológicas ou algo do gênero. É uma hipótese apenas. E não é exatamente nova. Para quem quiser ler um livro excelente sobre o assunto, segue a dica:

Para quem quiser ler uma crítica mais “forte” às manchetes referentes a esse estudo, clique aqui.

Continuando. Já escrevi sobre dieta paleolítica que:

“…ninguém disse, em nenhum momento, que queremos uma dieta IGUAL à dos ancestrais. Nenhum dos autores jamais escreveu isso. Repito, isso é criar um espantalho de dieta páleo para logo em seguida atacar o espantalho. Na realidade, trata-se de partir de uma matriz baseada em critérios evolutivos, para tentar reconstruir com alimentos modernos algo que não esteja TÃO distante daquilo com o que evoluímos (como é o caso da dieta ocidental padrão).O postulado evolutivo, por exemplo, parte do princípio de que a carne de uma ovelha, embora domesticada e inexistente há 15 mil anos, seja mais parecida com a dieta com a qual evoluímos, do que Sucrilhos – não obstante este último não conter colesterol e ser enriquecido com vitaminas e minerais (e ser uma bomba de açúcar e amido refinados).”

Certo, vejamos agora o seguinte ensaio clínico randomizado:

Original Research |

Effects of Low-Carbohydrate and Low-Fat DietsA Randomized Trial

Lydia A. Bazzano, MD, PhD, MPH*; Tian Hu, MD, MS*; Kristi Reynolds, PhD; Lu Yao, MD, MS; Calynn Bunol, MS, RD, LDN; Yanxi Liu, MS; Chung-Shiuan Chen, MS; Michael J. Klag, MD, MPH; Paul K. Whelton, MD, MSc, MB; and Jiang He, MD, PhD

Ann Intern Med. 2014;161(5):309-318. doi:10.7326/M14-0180

Observe que o grupo low carb perdeu o dobro do peso e melhorou seu escore de risco cardiovascular. Ok.

Vejamos agora esta metanálise:

A conclusão: a dieta páleo foi superior às dietas apregoadas pelas diretrizes nutricionais vigentes no que diz respeito ao controle dos componentes da síndrome metabólica.

Até aqui, Ok?

Certo, agora vamos fazer um experimento mental:

Suponhamos que, amanhã, um arqueólogo descubra um pão inteiro, feito de trigo refinado, dentro de uma máquina de pão, em um sítio arqueológico com 100 mil anos de idade.

Ok, eu sei que isso é ridículo, mas vamos levar essa ficção adiante, para fins de argumentação.

Isso poderá revolucionar as teorias sobre as pressões evolutivas, sobre nossa capacidade de tolerar dietas com pão, sobre o número de cópias do gene da amilase, sobre a importância crucial que o pão branco teve no crescimento do cérebro humano, etc.

Mas, eu pergunto, se nós descobrirmos um pão fossilizado de 100 mil anos, os desfechos dos dois estudos citados acima iriam mudar?

Se nós descobríssemos um pão fossilizado de 100 mil anos, o ensaio clínico randomizado que mostrou o dobro da perda de peso com low carb, subitamente passaria a mostrar o contrário – as pessoas que não comeram pão naquele estudo engordariam, subitamente, imediatamente após esta descoberta arqueológica?

Se nós descobríssemos um pão fossilizado de 100 mil anos, a metanálise que mostrou que a dieta paleolítica (que vai ter que mudar de nome, agora que sabemos que havia pão branco há 100 mil anos) é uma estratégia superior para manejo da síndrome metabólica, subitamente passaria a mostrar o contrário?

É claro que não! Como já escrevi em outra postagem:

“…diferentemente do que ocorre com tabus alimentares religiosos (imutáveis), o fato de um alimento estar ausente durante nossa evolução não o proscreve completamente do que considero saudável, da mesma forma que o fato de algo estar presente durante nossa evolução (pense em mandioca) não o torna adequado para o manejo de diabetes e obesidade. O fato de um alimento não ter feito parte da dieta humana por 99,5% de nossa evolução não o torna automaticamente ruim, mas nos autoriza a olhar para tal alimento com desconfiança. No linguajar científico, a hipótese nula, aquela da qual partimos, deve ser a de que este alimento novo seja nocivo; e cabe a ciência tentar refutar essa hipótese – mostrar que ele NÃO é. Mas, como corolário, se a ciência mostra que determinado alimento novo não é nocivo, o fato de ele não ser paleolítico não me impedirá de incluí-lo dentre os alimentos que considero adequados em uma dieta low carb de viés páleo.”

Então, se carboidratos foram mais, ou menos, importantes como fonte de calorias durante os últimos 100 a 200 mil anos é um assunto fascinante, e pode render muita conversa acadêmica e muita conversa de bar. Discussões longas e bizantinas, com certeza.

Mas isto não muda os ensaios clínicos randomizados e as metanálises.

Também já escrevi em outra postagemo seguinte:

Outro problema elementar – e infelizmente muito comum entre estudiosos acadêmicos – é que a realidade tem precedência sobre nossas teorias e desejos. Deixe-me explicar. Por muitos séculos, pessoas muito inteligentes (Aristóteles, Ptolomeu) acreditavam que o sol girava ao redor da terra. Nos séculos 16 e 17, houve uma mudança de paradigma, na qual pessoas igualmente brilhantes como Copérnico, Kepler e Galileu argumentaram que a terra é que girava ao redor do sol. Possivelmente quem vivesse na época teria dificuldade de afirmar com certeza quem estava certo, mas uma coisa era inegável: qualquer das teorias não podeira negar o mundo empírico: que o sol nascia, descrevia um arco no céu, e se punha TODOS os dias. 

Somente a ciência experimental foi capaz de estabelecer com certeza qual teoria descrevia o mundo como ele realmente era.  Mas nenhuma das teorias (geocentrismo ou heliocentrismo) negava o fato de que o sol nascia no leste e se punha no oeste. Vejamos. O FATO da vida, demonstrado por todos os estudos prospectivos e randomizados, é que uma dieta pobre em açúcar e farináceos, menos processada, e rica em fibras, rica em proteínas, rica em gorduras naturais produz melhores resultados na saúde humana (ver aqui, ou aqui, ou aqui para alguns exemplos). Várias teorias podem ser utilizadas para explicar este fenômeno, de acordo com o paradigma que se adota. O Dr. Atkins ee Gary Taubes diriam: “é claro, funciona pois reduziram-se os carboidratos e a insulina”; O Dr.Lustigdiria “é claro, funciona pois removeu-se o açúcar, e com ele a frutose, que é uma toxina”; O Dr. William Davis diria “É claro que funciona, afinal é uma dieta sem glúten”; O Dr. Stephan Guyenet diria: “É claro que funciona, pois com a remoção dos alimentos processados e do açúcar, diminui a palatabilidade da comida, e come-se menos”; e Loren CordainRobb Wolf e Mark Sisson diriam “é claro que funciona, pois estes são os alimentos que nossos ancestrais consumiam, e aos quais estamos geneticamente adaptados”. Eu não sei se já está ficando claro para o leitor, mas alguns podem estar certos e outros errados, ou mesmo todos podem estar certos ao mesmo tempo. MAS ISSO NÃO MUDA os fatos. O sol continua a nascer e a se por, alheio aos devaneios geocêntricos ou heliocêntricos. A saúde das pessoas continua a melhorar de forma prodigiosa com estas modificações de estilo de vida, independentemente se isso se deve à adoção de uma dieta ancestral ou se é apenas pela redução da insulina. TANTO FAZ.

Em suma, podemos argumentar até o fim dos tempos sobre a composição exata da dieta de nossos ancestrais. Mas isso não mudará os fatos experimentalmente estabelecidos sobre os efeitos de dietas restritas em carboidratos sobre peso, diabetes e síndrome metabólica.

Nem mesmo se alguém descobrisse um pão fossilizado amanhã.

https://www.lowcarb-paleo.com.br/2012/03/thomas-l-cleave-md-e-sacarina.html

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