Os ovos dos europeus e os critérios de Bradford Hill

Por anos as pessoas foram orientadas a não consumir ovos. Afinal, os ovos são alimentos muito ricos em colesterol, o que os tornaria perigosos.

O mais curioso é que a informação de que o colesterol da dieta tem muito pouco a ver com o colesterol do sangue é algo amplamente conhecido há muitas décadas.

Ironia das ironias: um dos primeiros autores a estabelecer de forma experimental o fato de que o colesterol na dieta não aumentava significativamente o colesterol no sangue foi Ancel Keys – nada mais nada menos do que o PAI da hipótese lipídica da doença cardiovascular. Em um estudo de 1965, Keys explica que uma redução de 50% na ingestão de colesterol reduziria o coleterol sérico em apenas 7 mg/dl, e que as variações da dieta típica dos americanos à época (desde um extremo, de 150 mg por 1000 calorias, até 350 mg por 1000 calorias) mudariam  em apenas 9 mg/dl o colesterol total:

Keys tinha medo da gordura na dieta, mas nem mesmo Keys achava o colesterol da dieta importante.

Não apenas isso, mas Frahmingham, o mais antigo e famoso estudo de coorte da história da medicina, de onde originou-se a observação de que o colesterol elevado estava associado ao risco cardiovascular (em homens com menos de 50 anos), também não achou relação entre o consumo de ovos e doença cardiovascular:

Eis a conclusão deste artigo de 1982:

Ou seja, os níveis de colesterol de quem comia menos ou mais ovos eram os mesmos, assim como seu risco cardiovascular.

Assim, com o embaraçoso e asinino atraso de CINQUENTA ANOS, finalmente as novas diretrizes nutricionais admitiram o erro, em 2016:

Qual o ensinamento até aqui? Que as diretrizes nutricionais mudam com velocidade glacial, e que mesmo verdades científicas estabelecidas há muitas décadas ainda não estão refletidas nas mesmas; em suma, não basta algo constar neste documento, se os estudos de alto nível de evidência o contradizem.

Ok, então ovos já são universalmente aceitos como sendo saudáveis, certo?

Não, pois um outro famoso estudo epidemiológico/observacional (aquele tipo que não pode estabelecer o que é causa e o que é efeito), conduzido pela Escola de Saúde Pública de Harvard, indicou que pacientes DIABÉTICOS que consumiam mais de 1 ovo por dia tinham o dobro do risco cardiovascular do que os diabéticos que consumiam menos de 1 ovo por semana. O mesmo estudo não mostrou nenhuma associação ente ovos e risco cardiovascular em pessoas sem diabetes. Mais do que isso, outros estudos epidemiológicos sugeriram que o consumo de ovos aumentava o risco de desenvolver diabetes, algo imensamente contra-intuitivo visto que ovos não são carboidratos.

Recentemente, uma nova metanálise foi publicada, indicando que, quando avaliamos a literatura COMO UM TODO, não há aumento de risco de diabetes com o consumo de ovos:

A conclusão: não há associação entre o consumo de ovos e o risco de diabetes.

CONTUDO… Quando analisamos apenas os estudos observacionais/epidemiológicos norte-americanos (excluindo os estudos europeus), os ovos estão sim associados ao desenvolvimento de diabetes. Não apenas isso, há uma curva de dose-reposta, isto é, quanto mais ovos, mais diabetes! O que nos traz ao título dessa postagem: o que os ovos dos europeus têm, que os americanos não têm, ou vice-versa, que explica o seguinte gráfico:

À esquerda, observamos CLARAMENTE que o risco de diabetes aumenta de acordo com o número de ovos. Chama-se isso de CURVA DOSE-RESPOSTA – um dos critérios utilizados pelo grande epidemiologista Bradford Hill para sugerir que possa haver uma relação de causa e efeito por trás de uma associação. Afinal, se ovos realmente causam diabetes, é de se esperar que MAIS ovos aumentem MAIS os risco, não é mesmo?

Por outro lado, se olharmos o gráfico da direita, vemos que não há NENHUMA relação entre consumir ovos e desenvolver diabetes. A rigor, parece até mesmo haver uma pequena redução do risco. Será que os europeus (ou seus ovos) são diferentes dos americanos? Por que os ovos só causam diabetes ao atravessar o Atlântico? Por que eu coloquei o verbo causar em itálico?

Neste momento, é importante (re)ler a seguinte postagem:


O que é uma referência bibliográfica aceitável? 2 – Alguns estudos são mais importantes 

O que é explicado na postagem acima é, em suma, que há variáveis de confusão. Que os estudos epidemiológicos (observacionais) apenas podem levantar hipóteses. Eles não podem estabelecer causa e efeito.

Por exemplo, é possível afirmar que carne causa doença cardiovascular ou câncer a partir de estudos observacionais? Novamente, retiro um trecho daquela postagem:

(…)pessoas
que comiam muita carne processada também tinham uma chance muito maior
de fumar, comer menos frutas e saladas, e ter níveis mais baixos de
educação. Eram muito mais gordos e se exercitavam muito menos do que o
restante da amostra. E os homens que comiam mais carne processada bebiam
muito. Ah, e os maiores comedores de carne eram também mais velhos –
muitos já haviam passado dos 70 anos quando sofreram as consequências
das salsichas.

E as pessoas que comiam a maior quantidade de carne processada – que o estudo qualificou como mais de 160g por dia (equivalente a cerca de 6 salsichas) – não morreram apenas de de doenças cardiovasculares ou câncer, as coisas que costumamos associar à uma dieta ruim; eles
também morreram mais de “outras causas”, uma categoria que inclui
acidentes de carro, ferimentos acidentais e outras causas não
relacionadas à comida.
Os
maiores consumidores de carne branca, por outro lado, eram os
“escoteiros” do grupo: não fumavam muito, comiam bastante salada, faziam
exercício, iam à faculdade, e com certeza escovavam os dentes, usavam
cinto de segurança e faziam seus check-ups regularmente.
Então, o mesmo poderia ser verdadeiro para ovos, não é mesmo? Retornando mais uma vez àquela postagem:

Em um mundo onde 100% das pessoas
consideram carne vermelha (ou OVOS!!) algo letal, quem ousa comer muita carne
vermelha? Gente tão desleixada com sua saúde, que não usa cinto de
segurança e deixa armas carregadas ao alcance das crianças – é isso que
está implícito no texto.

IMPORTANTE: isso irá se refletir no
estudo epidemiológico, independentemente de a carne ser boa ou má para a
saúde!! O que importa, neste caso, é a CRENÇA de que faz mal. Se todo
mundo achar que faz mal, só os irresponsáveis comerão em
maior quantidade. E como os irresponsáveis são irresponsáveis em outras
áreas da vida, eles inevitavelmente morrerão e adoecerão mais. É a
profecia autorealizada: basta uma crença ou preconceito existir, para
ser detectada nesse tipo de estudo.
E, em uma lógica circular, se todo
mundo acredita em algo, o estudo mostrando a associação apenas reforçará
a CRENÇA em uma relação CAUSAL.

Então, é aqui que eu quero chegar. Como vimos, a partir de agora, nem mesmo as diretrizes norte-americanas condenam mais o ovo. Mas o importante é que durante mais de QUARENTA ANOS o ovo foi condenado. Mas – e é um grande MAS – condenado apenas nos EUA!! Na Europa, a moda ridícula dos omeletes apenas de claras, do medo do ovo, nunca pegou, e faz tempo que a maioria dos países europeus já retirou de suas diretrizes a restrição diária ao consumo de colesterol que, como vimos, é considerada ineficaz e desnecessária desde os anos 1950.

Assim, esta metanálise epitomiza de forma espetacular o que foi dito na postagem sobre estudos epidemiológicos:

[…] isso irá se refletir no
estudo epidemiológico, independentemente de a carne ser boa ou má para a
saúde!! O que importa, neste caso, é a CRENÇA de que faz mal. Se todo
mundo achar que faz mal, só os irresponsáveis comerão em
maior quantidade. E como os irresponsáveis são irresponsáveis em outras
áreas da vida, eles inevitavelmente morrerão e adoecerão mais. É a
profecia autorealizada: basta uma crença ou preconceito existir, para
ser detectada nesse tipo de estudo.

Ou seja, o que faz com que nos EUA haja uma curva demostrando que quanto mais ovos se come, maior a chance de diabetes é o fato de que nos EUA há uma cultura de que ovos fazem mal a saúde. O fato de que na Europa tal curva dose-resposta não é observada é devido ao fato de que na Europa tal crença nunca foi tão arraigada. “E como os irresponsáveis são irresponsáveis em outras
áreas da vida, eles inevitavelmente morrerão e adoecerão mais. É a
profecia autorealizada.”

Enunciado de forma mais elegante,

Estudos observacionais e epidemiológicos capturam os vieses, o zeitgeist, os
preconceitos de uma época, e o reproduzem. Mais do que isso, embora não
possam estabelecer causa e efeito, acabam sendo interpretados de forma a
reforçar a causa presumida daquilo que estudam, sob a ótica dos preconceitos e diretrizes vigentes.

***

Bradford Hill foi talvez o mais importante epidemiologista da história. Trabalhou com os maiores nomes da bioestatística (nomes conhecidos de todo mundo que já teve que fazer prova dessa disciplina na faculdade, como Pearson e Fisher). E foi, nada mais, nada menos, do que o autor do primeiro ensaio clínico randomizado.

Baseado em filósofos do ceticismo e da ciência (Hume, Popper), Bradford Hill desenvolveu uma série de critérios que devem ser obedecidos antes que possamos dizer que A causa B.

O artigo antológico em que Hill descreve os critérios pode ser lido na íntegra aqui

Embora os estudos norte-americanos indicassem uma associação entre ovos e diabetes, e demonstrassem uma curva dose-resposta, o resto dos critérios de Hill não eram preenchidos (por exemplo, faltava plausibilidade à hipótese, faltava consistência com outros estudos, a força da associação era baixa), mas isso não impediu os autores do estudo de dizer que as pessoas não deveriam comer muitos ovos.

Então, esta metanálise é apenas um exemplo bem didático de que mesmo que um gráfico mostre uma curva de dose resposta e de que mesmo que os dados sejam baseados em estudos epidemiológicos de Harvard contendo dezenas de milhares de pessoas seguidas por dezenas de anos… ASSOCIAÇÃO CONTINUA NÃO SIGNIFICANDO CAUSA E EFEITO.

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