A primeira coisa que aprendemos em estatística descritiva é o emprego de médias. Eu posso, por exemplo, comparar uma amostra aleatória de 50 homens adultos norte-americanos com 50 adultos brasileiros calculando a MÉDIA de seus pesos. Se a média do peso dos americanos for de 100 Kg, e a média dos brasileiros for 85 Kg, eu poderia dizer “os homens adultos norte-americanos são mais pesados do que os brasileiros”. Qual o problema com a média? Ela oculta as variações individuais. Com base nas médias acima, se eu encontrar um homem com 100Kg, posso afirmar que ele é americano? E se ele pesar 85 Kg, posso afirmar que seja brasileiro? É claro que não. Em ambos grupos de 50 adultos, há pessoas muito magras e muito obesas. Eu posso muito bem encontrar um brasileiro de 130 Kg e um americano de 60 Kg.
Médias, e as comparações feitas entre elas, são muito úteis para cotejar POPULAÇÕES. Mas são extremamente limitadas para comparar indivíduos – como mostra o exemplo acima.
A grande maioria dos estudos científicos disponibiliza apenas as médias (e suas medidas de dispersão, como o “desvio padrão”, que dão uma ideia de quanto os dados variam). Não temos acesso aos “dados crus”, às medidas feitas antes e depois de um tratamento ou intervenção em CADA pessoa. Isso não permite ver a evolução do INDIVÍDUOS nos estudos.
Se, por exemplo, 30 indivíduos obesos seguirem uma dieta X e, após 3 meses, 20 tiverem perdido 10 quilos, e 10 tiverem GANHADO 10 quilos, única coisa que nós saberemos é que “houve uma redução média de 2 quilos após 3 meses”.
Ou seja, se os autores do estudo não fornecerem de alguma forma os dados individuais (“raw data”), nós acabaremos por acreditar que qualquer um que seguir essa dieta perderá 2 quilos em 3 meses, quando na verdade dois terços das pessoas perderam 10 quilos, e um terço GANHOU 10 quilos. Neste exemplo extremo, a média descreve o comportamento do grupo inteiro, mas não descreve o comportamento de NENHUM indivíduo.
Médias são um bom ponto de partida para comparação de populações. Mas a reposta individual é o que importa para o cada pessoa.
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Estudos com milhares de pessoas têm vantagens e desvantagens. Pequenas diferenças tornam-se aparentes quando estudam-se números muito grandes. Mas é inviável avaliar e descrever cada indivíduo em um estudo destas proporções.
Estudos pequenos, por outro lado, podem não identificar pequenas diferenças (lhes falta “poder estatístico”). Mas, quando as diferenças são suficientemente grandes, seus resultados são, sim, confiáveis. Mais do que isso, são estudos em geral melhor conduzidos e melhor controlados (pense na logística de garantir que 50 pessoas estão seguindo uma dieta, versus 50 mil pessoas).
Vamos ver um exemplo:
Neste estudo, por exemplo, que descreve a evolução clínica de 31 pacientes submetidos a uma dieta very low carb, cetogênica, os autores relatam que:
1) Peso: reduziu-se em 8,1%
2) Insulina: reduziu-se 40,1%
3) Triglicerídeos: reduziram-se 28,3%
4) Pressão sistólica: reduziu-se 10,2%
5) Pressão diastólica: reduziu-se 11,4%
Nitidamente, uma dieta cetogênica é eficiente na melhora dos parâmetros que compõem a síndrome metabólica, correto? Na média, sim.
Quem lê esses números pode imaginar que todos se beneficiaram, e que uma dieta cetogênica é a saída para toda a humanidade. Mas este estudo é dos poucos nos quais os autores optaram por mostrar os resultados individuais. Vejamos a dispersão dos dados:
1) PESO:
A média é indicada pelo traço preto. Cada pequeno triângulo é um paciente. Embora a média de perda de peso tenha sido de 8,1%, houve pessoas que perderam 20% do peso corporal, e houve UMA pessoa que GANHOU peso.
2) Insulina:
A média da redução da insulina com a dieta LCHF foi de 40,1%. Mas observe que 2 indivíduos tiveram AUMENTO da insulina, um deles em mais de 20%. E houve um outro grupo no qual as reduções ficaram próximas de 80%.
3) Triglicerídeos:
Os triglicerídeos reduziram-se em 28,3%. Mas isso foi apenas a MÉDIA. Mais uma vez, houve 3 pessoas nas quais os triglicerídeos AUMENTARAM, e uma na qual reduziu-se mais de 80%. A maioria teve quedas na faixa de 50%. A média acabou distorcida pelos extremos.
4) Pressão arterial
Eis as variações de pressão sistólica e diastólica. Houve uma redução média de 10,2 e 11,4%, respectivamente. Mas não para todos. Cerca de 3 pessoas apresentaram AUMENTO da pressão arterial com dieta low carb.
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O que este estudo demonstra não é exceção, é a regra. As médias escondem mais do que mostram. Nas palavras do economista Roberto Campos, “são como o biquíni: mostram tudo, mas escondem o essencial”.
Vejamos um exemplo emblemático:
Neste estudo, 36 homens e 46 mulheres com pressão inferior a 140/95 foram submetidos a uma restrição de sal na dieta por 12 semanas, e sucessivas medidas da excreção de sódio urinário foram utilizadas para garantir que, de fato, as pessoas estavam seguindo a orientação à risca.
Se usarmos a média para descrever os resultados deste estudo, veremos que houve uma redução da pressão arterial com a redução do sal:
Ok, é fato que a redução de pressão foi irrelevante, de 107/71 para 105/69 mmHg. Já abordei esse assunto em outra postagem.
Mas o que acontece com os INDIVÍDUOS? Será que todo TODOS tem uma pequena queda de 2 pontos em sua pressão arterial?
O gráfico abaixo mostra a evolução da pressão arterial de cada um dos indivíduos após 12 semanas de restrição de sal. Os resultados são médias de CINCO medidas diferentes, ou seja, trata-se de resultados fidedignos:
Basicamente, a restrição de sal pode produzir qualquer desfecho em diferentes indivíduos! Em cerca de 50% deles, não ocorre mudança significativa, 30% têm quedas significativas de pressão arterial, e 20% têm AUMENTO significativo da pressão arterial. Olhe o gráfico novamente: sem análise estatística, sem calcular a média, você indicaria a restrição de sódio, indiscriminadamente, para população geral de indivíduos normotensos?
Admitir que a variação individual é frequentemente muito maior do que a média faz supor – e não raro no sentido contrário desta – é absolutamente essencial. É a base da recomendação de auto-experimentação. Não importa que algo funcione para a MÉDIA das pessoas. Importa saber se funciona para você.
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Em pacientes diabéticos, a restrição de carboidratos obviamente tem potencial para melhora da doença. Assim como pessoas alérgicas a camarão têm melhores desfechos não comendo camarão, pessoas com intolerância à glicose terão melhor desfecho não comendo glicose. Já explorei esse assunto aqui, aqui e aqui.
Em tese, quanto maior a restrição de carboidratos, melhor: se o indivíduo já não consegue impedir que seu fígado secrete glicose excessiva em jejum, quanto menos glicose desnecessária for consumida a mais, melhor, certo? Faz sentido.
Vejamos então um ensaio clínico randomizado desenhado para responder exatamente a essa questão: no diabetes tipo 2, o que é melhor, uma dieta low carb moderada, ou uma dieta low carb cetogênica (“very low carb”, ou seja, restrição severa de carboidratos):
Se olharmos para os resultados expressos em MÉDIAS, temos o seguinte:
O grupo very low carb cetogênico (menos de 50g de carbs, com cetose confirmada) teve uma redução de 0,6% em sua hemoglobina glicada, enquanto o grupo de low carb moderado (cerca de 45% das calorias em carboidratos de baixo índice glicêmico) não teve alteração neste parâmetro.
O grupo de low carb moderado perdeu 2,6 Kg, enquanto o grupo de very low carb cetogênico perdeu 5,5 Kg (mais do que o dobro, para quem gosta de risco relativo).
Assim, very low carb é melhor do que low carb moderado, correto? Em MÉDIA, sim.
Mas como foi o efeito das intervenções sobre os INDIVÍDUOS?
Eis a evolução da hemoglobina glicada:
Ok, é óbvio que o GRUPO que restringiu mais os carboidratos (esquerda) obteve melhores resultados. Mas é possível identificar indivíduos (uns 2 ou 3) que fizeram dieta cetogênica e não melhoraram nada, e é possível identificar alguns que melhoraram com low carb moderado (e alguns que pioraram MUITO).
Eis a evolução do peso:
Nitidamente, há pessoas que não perderam peso com nenhuma das dietas, assim como há pessoas que perderam peso nas duas, e ninguém perdeu muito (as expectativas muitas vezes superam a realidade, e um estudo de 90 dias com pessoas sorteadas para uma dieta não é o mesmo que um estilo de vida adotado por uma pessoa motivada). Assim, embora seja verdade que o grupo very low carb perdeu o dobro do peso, você encontrará facilmente, nos dois gráficos acima, exemplos de indivíduos que perderam mais peso em low carb moderado do que em low carb cetogênico.
Quando combinamos, em um único gráfico, as mudanças de peso e de hemoglobina glicada das pessoas submetidas a very low carb cetogênico (bolinhas brancas) e a low carb moderado (losangos pretos), temos o seguinte:
Veja, a maioria das pessoas se beneficiou com a restrição de carboidratos. Mas nitidamente 5 pessoas pioraram (3 em peso, 2 em hemoglobina glicada) com low carb moderado, e UMA pessoa engordou em dieta cetogênica (seta vermelha). E embora tenhamos visto que, em MÉDIA, a dieta cetogênica obteve melhores resultados de peso e hemoglobina glicada, não é nada difícil encontrar, acima, losangos pretos mais próximos do objetivo (convergência das setas verdes, ou seja, perda de peso e melhora da hemoglobina glicada) do que alguns dos círculos brancos.
Para aquela bolinha branca isolada, acima, que engordou com dieta cetogênica, não adianta afirmar que os estudos mostram que se perde o dobro do peso. Ela engordou. E é isso que ela dirá, raivosa, no Facebook (“fiz essa dieta louca e engordei!! Nunca deveria ter largado minhas barrinhas de cereal e meu pão 12 grãos!!”).
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Longe de mim sugerir que as médias são inúteis. Pelo contrário. Graças a elas, conseguimos fazer sentido de um grande conjunto de dados individuais. E isso permite estimar, com maior acurácia, qual deverá ser o desfecho esperado de um intervenção. Mas, por trás da média, há o indivíduo. Sua resposta é, por definição, imprevisível. João perdeu 20 quilos com dieta cetogênica, Maria engordou 2Kg. O que Maria fez de errado? NADA, ela apenas não nasceu João. Maria aumentou sua ingestão de sal e sua pressão arterial baixou. João fez o mesmo, e sua pressão subiu para 190/110. O que João fez de errado? NADA, ele apenas não nasceu Maria.
Há ainda os casos reais, descritos aqui no blog, de uma pessoa cujo colesterol total baixou de 313 para 136, enquanto outra pessoa, seguindo a mesma dieta, elevou seu colesterol total acima de 500, com LDL de 404.
Já abordei aqui no blog o fato de que, por exemplo, o grau de resistência à insulina (ou, dito de outra forma, o grau de flexibilidade metabólica de cada um) determina em grande parte a sua resposta INDIVIDUAL à restrição de carboidratos. Se não leu ainda, por favor leia aquela postagem.
Mas, ao fim e ao cabo, a ÚNICA forma de determinar a melhor estratégia é testando em si mesmo.
Recente artigo na revista Nature mostra que, finalmente, a ciência está prestando atenção nisso:
“Já está na hora de estudos de uma pessoa só”
“A medicina de precisão requer um tipo diferente de ensaio clínico que se foque no indivíduo, não na média, para avaliar repostas à terapia.”
O “n”, o número de pessoas em um estudo, é obviamente importante para descobrir se algo é bom ou eficaz – na média. Mas, na vida de cada um de nós, igualmente importante são os estudos de n=1, ou seja, em nós mesmos. Se algo não está dando certo, mude.