A expressão é absolutamente espetacular: “evidence-free zone”, a zona livre de evidências. Quisera eu ter sido o idealizador da mesma, mas quem cunhou essa preciosidade foi o Dr. Steven Nissen, nada mais nada menos do que o Chefe da Medicina Cardiovascular da Cleveland Clinic que, por sua vez, é a instituição mais importante DO MUNDO na área de doenças cardiovasculares. Então, não estamos falando de medicina alternativa ou de algum sujeito de opiniões desviantes – estamos falando de mainstream.
Mas, a que zona livre de evidências referia-se o Dr. Nissen? À nutrição, mais especificamente às diretrizes nutricionais americanas de 2015.
É uma expressão forte – mas já está na hora de chamar as coisas pelos seus nomes.
Não se pratica medicina hoje como se praticava há 10 anos. Não obstante, as orientações nutricionais apregoadas hoje são virtualmente as mesmas de 40 anos atrás, mesmo após incontáveis estudos que as refutam. É algo sem paralelo no mundo das ciências. É algo que se espera, talvez, de seitas fundamentalistas. É, enfim, uma zona livre de evidências – o último bastião do dogma nas ciências da saúde.
Mas vou deixar que o Dr. Nissen explique isso, com suas palavras, no editorial desta semana do periódico científico Annals of Internal Medicine. (19 April 2016, Vol 164, No. 8)
Diretrizes dietéticas americanas: uma zona livre de evidências.
Steven E. Nissen, MD
Em 7 de janeiro de 2016, o departamento americano de saúde e o departamento de agricultura publicaram as diretrizes dietéticas para os americanos 2015–2020. Este texto discute as novas diretrizes e a força das evidências científicas que lhe dão suporte.
Em 7 de janeiro de 2016, o Departamento Americano de Saúde e o Departamento de Agricultura publicaram as diretrizes dietéticas para os americanos 2015–2020 (1). O relatório preliminar, publicado em fevereiro de 2015, havia gerado considerável atenção da mídia ao reverter um dogma de décadas, com a afirmação de que “o colesterol não era mais um nutriente de preocupação no que diz respeito ao consumo excessivo”. Inacreditavelmente, no relatório final de 2015, esta frase havia sido removida, e foi substituída por “indivíduos devem consumir o mínimo de colesterol possível na sua dieta”. Em qual versão devemos acreditar? Como pode um mesmo comitê chegar a duas conclusões diametralmente opostas? Agora que o relatório final está disponível, é prudente examinar como, por décadas, o establishment médico dos Estados Unidos tem erroneamente orientado a população a limitar severamente a ingestão de colesterol, e considerar se outras orientações nutricionais convencionais também irão se provar igualmente os falsas.
O quão forte é a evidência científica que dá suporte às diretrizes atuais? O comitê de 2015 foi encarregado de “fornecer orientações baseadas em evidência” sobre nutrição e atividade física para “promover a saúde durante toda a vida, e reduzir o risco das principais doenças crônicas na população americana”. A maior parte das recomendações são similares às das diretrizes anteriores, aconselhando a população a limitar a ingestão de sódio, de gorduras saturadas (substituindo-as por gorduras insaturadas) e de açúcares simples, além de aumentar o consumo de frutas, vegetais e nozes. Entretanto, uma revisão detalhada das novas diretrizes confirma uma realidade perturbadora: a quase completa ausência de ensaios clínicos randomizados (ECR) de alta qualidade que estudem desfechos clinicamente significativos para as intervenções dietéticas. O relatório, repetidas vezes, faz recomendações baseadas emestudos observacionais e com desfechos secundários, deixando de distinguir entre recomendações baseadas em consenso de especialistas ao invés de ensaios clínicos randomizados de alta qualidade (por favor, se ainda não leu, leia a postagem que trata sobre isso, aqui). Infelizmente, as diretrizes dietéticas atuais e passadas representam uma zona virtualmente livre de evidências.
A ausência de ensaios clínicos randomizados de alta qualidade relegou as orientações dietéticas a figuras cultuadas (gurus), frequentemente com recomendações opostas.
Um grupo aconselha a eliminação quase completa dos carboidratos da dieta, enquanto outros promovem uma dieta virtualmente livre de gordura. Uma pesquisa em livrarias virtuais e em sites da web revela número ilimitado de escolhas de dietas, todas com alegações extraordinárias de perda incrível de peso e outros benefícios de saúde.
A literatura médica peer-reviewed também desaponta. Um estudo observacional, o Nurses’ Health Study (NHS), gerou uma pletora de alegações questionáveis sobre dieta.
Uma publicação do NHS relata que consumir 30 gramas de nozes duas vezes por semana reduz o risco de câncer de pâncreas em 35% (2), e outro alega que há uma redução de 33% no risco de doença pulmonar obstrutiva crônica para o quintil de pessoas que consome a maior quantidade de grãos integrais, gorduras poliinsaturadas, nozes e gorduras ômega 3 de cadeia longa além de baixo consumo de carnes vermelhas processadas, grãos refinados e bebidas adotadas (3). Há ainda outro estudo baseado no NHS que alega que o consumo diário de mais do que duas porções de refrigerante adoçado artificialmente está independentemente associado com a duplicação do risco para um declínio de 30% ou mais da função renal (4).
Este tipo de estudo observacional mal controlado e mal conduzido seria difícil de se publicar na literatura peer reviewed em qualquer outra área do conhecimento, mas são frequentemente relatados em manchetes dramáticas por organizações respeitadas da mídia. Os achados que sugerem danos são particularmente atraentes para a mídia, tais como um estudo publicado que alega que o consumo de aspartame duplica o risco de mieloma múltiplo (5).
Tais alegações absurdas esbarram no ceticismo de cientistas com pensamento mais sofisticado, mas têm pouca dificuldade em achar um periódico que as publique, e menos dificuldade ainda em achar veículos da mídia que trarão esta “ciência” à atenção do público.
Tipicamente, estudos de dieta baseiam-se em um método semelhante e falho, o uso de questionários periódicos para avaliar os padrões dietéticos dos participantes. Vieses de memória e variáveis de confusão residuais prejudicam Tais métodos. Haveria muito menos interesse em dietas de moda e em estudos científicos de má qualidade se a pesquisa na área da nutrição incluísse mais ensaios clínicos randomizados adequadamente desenhados e conduzidos, mas poucos existem.
Como o establishment médico americano embarcou nesta terrível aventura, que já dura décadas, no que diz respeito à gordura da dieta e ao colesterol? Muitos observadores e um autor popular (6) afirmam que o atual estado de confusão remonta ao renomado estudo dos 7 países, dirigido Ancel Keys.
Iniciado em 1956, com financiamento do serviço de saúde pública dos Estados Unidos, o estudo foi primeiramente publicado em 1971, e ligava o consumo de gordura saturada e colesterol ao risco de doença coronariana (7).
Antes da publicação deste estudo, Keys já havia promovido agressivamente o conceito de que a gordura na dieta e o colesterol estavam intimamente relacionados ao desenvolvimento de doença cardíaca. Ele até mesmo apareceu na capa da revista Time, em 1961, promovendo uma dieta de baixa gordura como a solução para epidemia de doenças coronariana.
Os críticos têm sugerido que o estudo dos sete países continha um viés a favor da hipótese de que a gordura e o colesterol da dieta eram fatores críticos na doença coronariana (6).
O estudo examinou as taxas de doença cardíaca na Itália, Grécia, Iugoslávia, Finlândia, Holanda, Japão e Estados Unidos. No entanto, havia dados disponíveis de 22 países. Os pesquisadores omitiram países tais como a França, nos quais o consumo de gordura total e saturada eram muito altos, mas o risco de doença cardíaca permanece baixo. Mesmo antes da publicação do estudo dos sete países, a Associação Americana de Cardiologia abraçou a causa, recomendando que os americanos reduzissem a ingestão de gordura, e que substituíssem a manteiga por óleos de milho ou soja. Logo, a margarina (com sua grande quantidade de gorduras trans) tornou-se a alternativa “saudável para o coração”, os ovos viraram sinônimo de padrões de alimentação pouco saudáveis, e dietas de baixa gordura tornaram-se a resposta para as taxas assustadoras de doença cardíaca. A Associação Americana de Cardiologia continua a promover uma dieta de baixa gordura. As recomendações, atualizadas em 12 de agosto de 2015, indicam “laticínios de baixa gordura” e “se você resolver comer carne procure pelos cortes mais magros disponíveis” (8).
Como uma consequência da promoção das dietas de baixa gordura e baixo colesterol em larga escala, os americanos gradualmente reduziram o seu consumo desses ingredientes “ruins”. Nós reduzimos o consumo de gordura na dieta, mas passamos a consumir carboidratos de forma compulsiva, e nos tornamos progressivamente obesos.
O diabetes tipo 2 transformou-se em uma epidemia, que agora ameaça reverter décadas de progresso em reduzir a incidência de doença coronariana. A obsessão com dietas de baixa gordura resultou em algumas práticas extraordinárias e bizarras de marketing de alimentos. Eu recentemente encontrei um saco grande de balas de goma em uma prateleira de supermercado, no qual estava escrito “livre de gordura”, com a implicação de que tratava-se de algo bom para o seu coração.
Mas o que nós realmente sabemos sobre dietas de baixa gordura e limitação de gordura saturada como estratégia de prevenção para doença coronariana? Na verdade não sabemos muito. Entretanto, a melhor evidência disponível não dá suporte claro à crença, tão disseminada entre os americanos, de que a gordura saturada e o colesterol dever sem ser limitados na dieta. Uma revisão sistemática e metanálise foi publicada em 2014 com 32 estudos observacionais envolvendo mais de 500 mil participantes (9). Comparando-se o terço superior e inferior de consumo de gordura, o risco relativo de doença coronariana foi 1.03 (95% CI, 0.98 to 1.07) para gorduras saturadas, 1.00 (CI, 0.91 to 1.10) para monoinsaturadas, 0.87 (0.78 to 0.97) for ω-3 poliinsaturadas de cadeia longa, 0.98 (CI, 0.90 to 1.06) para ω-6 poliinsaturadas, e 1.16 (CI, 1.06 to 1.27) para gorduras trans. Obviamente, esta análise tem as mesmas limitações das pesquisas observacionais que lhe deram origem.
Felizmente, um grande ensaio clínico randomizado de alta qualidade (7447 participantes) foi finalmente publicado em 2013, o PREDIMED (Prevención con Dieta Mediterránea), conduzido na Espanha, comparando a dieta mediterrânea com uma dieta de baixa gordura convencional (no estilo da Associação Americana de Cardiologia) em participantes com um risco aumentado para doença cardíaca (escrevi sobre este estudo em uma postagem da época – confira) (10). Os riscos relativos ajustados para variáveis múltiplas para doença coronariana foram de 0.70 (CI, 0.54 to 0.92) para o grupo sorteado para dieta mediterrânea enriquecida com azeite de oliva extra virgem e 0.72 (CI, 0.54 to 0.96) para o grupo sorteado para dieta enriquecida com nozes ambas quando comparadas com a dieta de baixa gordura.
Como deveremos proceder na busca do entendimento da relação entre dieta e doença coronariana? Já está na hora de conduzir ensaios clínicos randomizados cuidadosos para testar várias intervenções dietéticas – estudos estes que tem pouca probabilidade de receber fundos da indústria alimentícia. Agências federais tais como o Instituto Nacional de Saúde e o Centro para Controle de Doenças e Prevenção devem financiar e ajudar na condução de tais estudos. A realização com sucesso do PREDIMED, com fundos do governo espanhol, prova que tais estudos são factíveis. Ensaios clínicos adequadamente realizados podem até demonstrar no futuro algum problema no que diga respeito ao consumo de gordura saturada e colesterol, mas a conclusão oposta é igualmente possível. Está na hora de fazer a transição entre a zona livre de evidências na qual as recomendações dietéticas são baseadas, para a mesma qualidade de evidência que nós exigimos em quaisquer outras áreas da medicina.
REFERÊNCIAS
1 – U.S. Department of Health and Human Services, U.S. Department of Agriculture. Dietary Guidelines for Americans 2015–2020. 8th Edition. December 2015. Accessed athttp://sci-hub.io/http://health.gov/dietaryguidelines/2015/guidelineson 8 January 2016.
2 – Bao Y, Hu FB, Giovannucci EL, Wolpin BM, Stampfer MJ, Willett WC, et al. Nut consumption and risk of pancreatic cancer in women. Br J Cancer. 2013; 109:2911-6.
3 – Varraso R, Chiuve SE, Fung TT, Barr RG, Hu FB, Willett WC, et al. Alternate Healthy Eating Index 2010 and risk of chronic obstructive pulmonary disease among US women and men: prospective study. BMJ. 2015; 350:h286.
4 – Lin J, Curhan GC. Associations of sugar and artificially sweetened soda with albuminuria and kidney function decline in women. Clin J Am Soc Nephrol. 2011; 6:160-6.
5 – Schernhammer ES, Bertrand KA, Birmann BM, Sampson L, Willett WC, Feskanich D. Consumption of artificial sweetener- and sugar-containing soda and risk of lymphoma and leukemia in men and women. Am J Clin Nutr. 2012; 96:1419-28.
6 – Teicholz N. The Big Fat Surprise: Why Butter, Meat & Cheese Belong in a Healthy Diet. New York: Simon & Schuster; 2014.
7 – Coronary heart disease in seven countries. Summary. Circulation. 1970; 41:I186-95.
8 – The American Heart Association’s Diet and Lifestyle Recommendations. Accessed atwww.heart.org/HEARTORG/GettingHealthy/NutritionCenter/HealthyEating/The-American-Heart-Associations-Diet-and-Lifestyle-Recommendations_UCM_305855_Article.jsp#on 7 January 2016.
9 – Chowdhury R, Warnakula S, Kunutsor S, Crowe F, Ward HA, Johnson L, et al. Association of dietary, circulating, and supplement fatty acids with coronary risk: a systematic review and meta-analysis. Ann Intern Med. 2014; 160:398-406.
10 – Estruch R, Ros E, Salas-Salvadó J, Covas MI, Corella D, Arós F, et al, PREDIMED Study Investigators. Primary prevention of cardiovascular disease with a Mediterranean diet. N Engl J Med. 2013; 368:1279-90.
This article was published atwww.annals.org on 19 January 2016.
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