Mais um estudo epidemiológico de Harvard

A escola de saúde pública de Harvard tem algumas coortes (conjuntos de milhares de pessoas que são observadas no decorrer dos anos) que rendem vários estudos por ano. São eles: Nurses’ Health Study e o Health Professionals Follow-up Study.

Tratam-se de estudos OBSERVACIONAIS / EPIDEMIOLÓGICOS. Ou seja, eles podem levantar hipóteses, mas não estabelecem causa e efeito. Neste momento, é muito importante PARAR e LER, e sua totalidade, a seguinte postagem:

O que é uma referência bibliográfica aceitável?

Ok, leu? Não leu? Então leia!!! Só continue após a leitura da postagem.

Leu? Ok, vamos adiante.

Hoje foi publicado um novo estudo das coortes de Harvard. O estudo mostrou o que TODOS os estudos observacionais e epidemiológicos da escola de saúde pública de Harvard SEMPRE mostram (pois esta é a posição FECHADA de Walter Willett, o chairman do departamento): que gordura saturada é pior do que insaturada.

Isto já está repercutindo da forma que habitualmente repercute na imprensa: a gordura vai lhe matar, especialmente a saturada.

Veja esta notícia, por exemplo:

Estudo de 30 anos confirma que gorduras saturadas fazem mal à saúde

Vejamos o que o estudo mostrou:

  • O estudo (observacional) indicou que quem comia MAIS gordura e MENOS carboidrato morria MENOS. Ou seja, que aumentar a gordura e reduzir os carboidratos é BENÉFICO. Por favor, veja a notícia da imprensa (acima), e veja se você encontra esse “pequeno detalhe”…

Eis o trecho do estudo: “dietary total fat compared with total carbohydrates was inversely associated with total mortality (hazard ratio [HR] comparing extreme quintiles, 0.84; 95% CI, 0.81-0.88; P < .001 for trend).” Ou seja “A gordura total da dieta quando comparada com os carboidatos foi INVERSAMENTE associada com a mortalidade total”.

Então, se você já leu a postagem sobre estudos epidemiológicos (leia!), já sabe que eles não estabelecem causa e efeito. Contudo, se alguém quiser usar este estudo para dizer que gordura saturada faz mal, terá que afirmar também que é melhor comer mais gordura do que carboidratos – pois o estudo afirma essas duas coisas. Bem entendido? Vamos adiante.

O estudo diz que gordura saturada está associado com aumento da mortalidade, e que gorduras insaturadas estão associadas com diminuição. Mas, como explicado na postagem sobre estudos epidemiológicos, há incontáveis variáveis de confusão. Embora você já tenha lido a postagem sobre estudos epidemiológicoseu vou citar aqui um trecho:

“(…) pessoas que comiam muita carne processada também tinham uma chance muito maior de fumar, comer menos frutas e saladas, e ter níveis mais baixos de educação. Eram muito mais gordos e se exercitavam muito menos do que o restante da amostra. E os homens que comiam mais carne processada bebiam muito. Ah, e os maiores comedores de carne eram também mais velhos – muitos já haviam passado dos 70 anos quando sofreram as consequências das salsichas.as pessoas que comiam a maior quantidade de carne processada – que o estudo qualificou como mais de 160g por dia (equivalente a cerca de 6 salsichas) – não morreram apenas de de doenças cardiovasculares ou câncer, as coisas que costumamos associar à uma dieta ruim; eles também morreram mais de “outras causas”, uma categoria que inclui acidentes de carro, ferimentos acidentais e outras causas não relacionadas à comida. Os maiores consumidores de carne branca, por outro lado, eram os “escoteiros” do grupo: não fumavam muito, comiam bastante salada, faziam exercício, iam à faculdade, e com certeza escovavam os dentes, usavam cinto de segurança e faziam seus check-ups regularmente.”

 Será que as pessoas nestas duas coortes de Harvard (compostas exclusivamente por profissionais de saúde, ou seja, gente que acredita que gordura faz mal), e que comiam gordura saturada MESMO ASSIM, tinham alguma diferença em relação às que não comiam gordura saturada?

Vejamos:

Ou seja, EXATAMENTE como no estudo EPIDEMIOLÓGICO E OBSERVACIONAL sobre carne vermelha e câncer, aqui também o que se observa é que as pessoas que comem mais gordura saturada (quintil 5) tem mais que o dobro da chance de serem fumantes (13,7% versus 5,6%) em relação às que consomem menos (quintil 1). Da mesma forma, as pessoas que comem menos óleos vegetais em maior chance de fumar, e as que consomem mais óleos vegetais, fumam menos. Agora, multiplique isso pela infinidade de outros fatores e variáveis…

Ok, mas ainda sobra uma “suspeita” de que a gordura saturada faça mal, e de que o óleo de soja/milho/canola seja melhor, não? Não! Por quê? Porque JÁ HÁ ENSAIOS CLÍNICOS RANDOMIZADOS, um nível de evidência muito mais alto, mostrando o CONTRÁRIO.

Já escrevi sobre isso, recentemente, nesta postagem. Relembrando:

O maior ensaio clínico randomizado jamais realizado sobre os efeitos de substituir a manteiga por óleo de milho (substituir a gordura saturada por gordura poliinsaturada, aquela com um adesivo escrito “cuide de seu coração”) foi conduzido no final dos anos 60 e início dos anos 70. Estarrecedor por quê? Porque os resultados completos nunca foram publicados!!! E por quê não? Porque mostraram o contrário do que todos imaginavam. E sabe quem era um dos co-autores do estudo? Ancel Keys (relembre quem é ele).Sim, o colesterol (desfecho MOLE) reduziu-se com a troca de manteiga por óleo vegetal refinado. Mas as mortes e o nível de aterosclerose (verificado por necrópsias!) AUMENTOU no grupo que trocou a manteiga pelo óleo de milho (desfecho DURO). “

Prezado leitor: quando um estudo epidemiológico mostra uma coisa, e o ensaio clínico randomizado mostra outra (especialmente quando são vários randomizados), VALE O RANDOMIZADO.

Então, vamos recapitular:

  1. O estudo em questão é EPIDEMIOLÓGICO, portanto não estabelece causa e efeito (última chance de reler a postagem sobre isso)
  2. Ainda assim, o estudo mostra que comer mais gordura e menos carboidratos está associado com MENOS mortes;
  3. O estudo sugere que gordura saturada está associada com mais mortes, e que gorduras insaturadas (tanto as mono quanto as poliinsaturadas) estão associadas com menos mortes;
  4. Ensaios clínicos randomizados indicam que isso não é verdade (as monoinsaturadas são ótimas, mas não as poli-ômega-6 na forma de óleos industriais);
  5. Os grupos que comem mais gordura saturada são diferentes (fumam mais, etc), o que pode muito bem explicar este aparente paradoxo.

Que mais este exemplo sirva de lição para sempre lembrar, ao ler um estudo, de verificar se ele é epidemiológico. Se for, releia imediatamente esta postagem (e esta também), antes de passar margarina no pão e jogar a manteiga no lixo.

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