Ainda sobre arroz e diabetes

Há poucas semanas, escrevi aqui sobre o lamentável fato de que um hospital universitário de Porto Alegre tenha permitido que uma entidade que representa a cadeia produtiva do arroz fizesse campanha dentro da instituição afirmando que o arroz (glicose) poderia auxiliar no tratamento do diabetes (intolerância à glicose).

Tomei conhecimento de que a entidade publicou uma resposta em seu site. O texto contém os seguintes trechos relevantes:

“A partir de citações recentemente divulgadas em redes sociais que apontam o arroz como alimento não adequado a diabéticos, viemos por meio deste apresentar, com base em estudos e artigos científicos, que este cereal possui moderado índice glicêmico entre outras qualidades e sempre que consumido em quantidades orientadas não agrava a condição do diabético. “

Vejamos:

  • O texto não elenca NENHUM estudo científico.
  • O índice glicêmico do arroz é elevadíssimo. O arroz branco tem índice glicêmico próximo de 100. Você pode conferir aqui: http://www.glycemicindex.com/
  • Além disso, a CARGA glicêmica do arroz é alta, mesmo quando suas versões integrais têm índice glicêmico um pouco menor –> continua sendo glicose.
  • A última parte do parágrafo deve ser repetida: “sempre que consumido em quantidades orientadas não agrava a condição do diabético.” –> mas VEJA: a campanha NÃO dizia isso! A campanha dizia “Arroz é saúde: auxilia no tratamento do diabetes“. Não conheço nenhum ensaio clínico randomizado que tenha demonstrado que o ACRÉSCIMO de arroz à dieta de um diabético MELHORE os desfechos. Dizer que pequenas quantidades de glicose (arroz) NÃO AGRAVAM a condição do diabético é MUITO diferente de dizer que alimentar-se com glicose quase pura AUXILIA no tratamento do diabetes. A campanha está ERRADA, e o correto seria simplesmente admitir isso.

Mais um trecho:

“A ingestão dietética de carboidratos para pessoas com diabetes segue recomendações semelhantes às definidas para a população em geral, respeitando concentrações entre 45 e 60% do requerimento energético. Embora o carboidrato seja um importante preditor da glicemia pós-prandial, os alimentos que contêm esse nutriente são também fontes importantes de energia, fibra, vitaminas e minerais, contribuindo ainda com a palatabilidade da dieta.”

Vejamos

  •  Embora o carboidrato seja um importante preditor da glicemia pós-prandial, os alimentos que contêm esse nutriente são também fontes importantes de energia, fibra, vitaminas e minerais. Vamos traduzir: –> Embora a pessoa com diabetes seja diagnosticada justamente pelo fato de que, ao consumir alimentos como arroz, sua glicemia passa de 200 em duas horas, as pessoas com diabetes deveriam comer arroz? Por quê? Porque arroz é fonte de energia (peixe, frango e ovos também são, mas não alteram a glicemia); porque é fonte de fibra (couve e espinafre também, mas não aumentam a glicemia); porque é fonte de vitaminas (vegetais de baixo amido também, mas não aumentam a glicemia). E nem vamos entrar na questão da POBREZA nutricional do arroz (péssima fonte de qualquer coisa que não seja amido)
  • contribuindo ainda com a palatabilidade da dieta“. –> Vejamos: arroz é amido. Amido é glicose. Glicose na dieta deve ser evitado por pessoas com intolerância à glicose (que é sinônimo de diabetes, quando tal intolerância é mais grave); de que forma afirmar que o gosto é bom justificaria seu uso nessa situação? Se sim, porque não açúcar? 
  • Enfim, se o arroz (e coisas nutricionalmente semelhantes, como batata, polenta, mingau de aveia, pão ou açúcar mascavo) fossem as únicas fontes disponíveis de energia, fibra, vitaminas ou minerais, a solução seria medicar o diabético para que ele tolerasse um pouco melhor o excesso de glicose que o adoece, e torcer para que as amputações, cegueira e infartos demorassem um pouco mais a chegar. Mas não são. Há muitos alimentos muito mais ricos em “energia, fibra, vitaminas e minerais”, e que não são compostos fundamentalmente de glicose.
  • Finalmente, vamos à seguinte afirmação: “A ingestão dietética de carboidratos para pessoas com diabetes segue recomendações semelhantes às definidas para a população em geral, respeitando concentrações entre 45 e 60% do requerimento energético“. O fato de que, efetivamente, as diretrizes vigentes afirmam isso é embaraçoso e, de fato, não é um motivo para recomendar arroz para diabéticos, e sim para questionar veementemente as diretrizes. Primeiramente, vamos deixar claro que as diretrizes não recomendam consumir alimentos de alto índice glicêmico (como o arroz) para AUXILIAR no tratamento do diabetes. Elas partem de premissas errôneas (de que as pessoas precisariam consumir uma quantidade maior de carboidratos do que realmente precisam) e tentam então LIMITAR O DANO causado por estes carboidratos (usando suas versões de menor índice glicêmico, por exemplo, e estimulando o exercício físico). No entanto, este blog se pauta por evidência, ou seja, pelos ESTUDOS, que mostram que restrições maiores de carboidratos produzem melhores desfechos. Para uma revisão que pode lhe levar aos estudos em questão, clique aqui.

Mas aqui, vou reproduzir um artigo publicado no site da clínica Joslin em 2015. A Joslin é maior centro mundial para a pesquisa e tratamento da diabetes, em Boston, Massachusetts, uma instituição afiliada à Universidade de Harvard. O texto original pode ser lido aqui.

Revolução na Nutrição: O Fim da Era de Alto Carboidrato para a Prevenção e Manejo do Diabetes Tipo 2.

Em 1977, o Comitê Especial de Nutrição e Necessidades Humanas do Senado dos EUA recomendou que as pessoas aumentassem seu consumo de carboidratos para 55 a 60% de suas calorias, reduzindo ao mesmo tempo o consumo de gordura de 40 para 30% das calorias totais. O objetivo destas recomendações era reduzir os crescentes gastos com saúde e maximizar a qualidade de vida dos americanos, como explicou o senador George McGovern, o presidente daquela comissão.

A suposta redução de custos seria o resultado de uma possível redução na incidência de doença cardíaca, câncer e derrames, assim como de outras doenças letais. A despeito de controvérsias sobre fato de que tais recomendações eram baseadas em evidências científicas fracas, o Departamento Americano de Agricultura (USDA) criou em 1980 uma pirâmide alimentar para representar o que seria o número ótimo de porções a ser consumido a cada dia, de cada um dos grupos alimentares básicos. Os carboidratos foram colocados na base da pirâmide (perfazendo a maior porção da ingestão calórica – 6 a 11 porções por dia), e as gorduras foram relegadas ao ápice da pirâmide, a fim de mostrar que deveriam ser consumidas em pouca quantidade.

Infelizmente, o resultado destas recomendações acabou sendo o oposto do que o USDA esperava.

O que foi descrito corretamente como um “experimento nutricional em âmbito nacional”contribuiu, como agora sabemos, para aumentar a prevalência da obesidade. E, contrariamente aos principais objetivos das recomendações, a prevalências do diabetes tipo 2 e de doenças cardiovasculares também aumentou significativamente.

Por que isso aconteceu? Fisiologicamente, um aumento no consumo de carboidratos resulta em um aumento da resposta da INSULINA aos carboidratos e, devido à ação promotora do armazenamento de gordura deste hormônio, promove a obesidade. E, como já foi demonstrado, este acúmulo de gordura abdominal (“gordura visceral”) está associado com inflamação crônica, que é diretamente ligada à diabetes tipo 2 e ataques cardíacos.

“um aumento no consumo de carboidratos resulta em um aumento da resposta da INSULINA aos carboidratos e, devido à ação promotora do armazenamento de gordura deste hormônio, promove a obesidade. E, como já foi demonstrado, este acúmulo de gordura abdominal (“gordura visceral”) está associado com inflamação crônica, que é diretamente ligada à diabetes tipo 2 e ataques cardíacos.”

O problema é igualmente ruim para aquelas pessoas que já são portadoras de diabetes tipo 2. Hoje nós sabemos que aumentar a quantidade de carboidratos na dieta de um diabético aumenta a chamada toxicidade da glicose (ou “glicotoxicidade”) e, consequentemente, aumenta a resistência à insulina, os triglicerídeos e reduz o benéfico HDL.


“Hoje nós sabemos que aumentar a quantidade de carboidratos na dieta de um diabético aumenta a chamada toxicidade da glicose (ou “glicotoxicidade”) e, consequentemente, aumenta a resistência à insulina, os triglicerídeos e reduz o benéfico HDL.”

No início do século 20 (portanto muito antes das recomendações do USDA representados na pirâmide alimentar), aquilo que hoje conhecemos como diabetes tipo 2 era predominantemente definido como uma doença de intolerância os carboidratos, e era tratado fundamentalmente através da redução dos carboidratos. A restrição dos carboidratos era uma forma particularmente bem sucedida de tratar o diabetes antes da descoberta da insulinaOs Drs. Elliot P. Joslin e Frederick Allen, os pais da ciência do diabetes, tratavam com sucesso seus pacientes diagnosticados com “diabetes gorda” (mais tarde conhecida como diabetes tipo 2) com uma dieta de muito baixo carboidrato (“very low carb diet”). Hoje, a dieta de Joslin seria considerada excêntrica, como se pode ver pela reação da comunidade médica à Dieta Atkins, que nada mais é do que a sua reencarnação.

“Hoje, a dieta de Joslin seria considerada excêntrica, como se pode ver pela reação da comunidade médica à Dieta Atkins, que nada mais é do que a sua reencarnação.”

Tal redução extrema dos carboidratos, embora fosse altamente bem sucedida em tratar o diabetes tipo 2 antes da descoberta da insulina, era associada a alguns efeitos colaterais desconfortáveis, tais como constipação, dor de cabeça, mau hálito e cãibras. Mas, embora a recomendação quanto à quantidade de carboidratos tivesse sido um pouco afrouxada após a descoberta da insulina em 1922, tal recomendação nunca excedeu 40% das calorias, uma quantidade que já demonstrava reduções na glicemia e nos triglicerídeos. Assim, foi um grande absurdo o fato de que, quando as recomendações do USDA foram publicadas, várias sociedades médicas passaram a recomendar um aumento dos carboidratos e uma redução do consumo de gordura para os pacientes com diabetes.

“(…) foi um grande absurdo o fato de que, quando as recomendações do USDA foram publicadas, várias sociedades médicas passaram a recomendar um aumento dos carboidratos e uma redução do consumo de gordura para os pacientes com diabetes.”

Desde 2003, muitos ensaios clínicos confirmaram que reduzir os carboidratos é superior à reduzir as gorduras, tanto na redução do peso, quanto em melhorar o controle da glicose. Também foi demonstrado que reduzir os carboidratos em pacientes com diabetes tipo 2 melhora a sensibilidade dos mesmos à sua própria insulina, reduz a gordura abdominal, os triglicerídeos, e aumenta o HDL (colesterol “bom”).

“Desde 2003, muitos ensaios clínicos confirmaram que reduzir os carboidratos é superior à reduzir as gorduras, tanto na redução do peso, quanto em melhorar o controle da glicose. Também foi demonstrado que reduzir os carboidratos em pacientes com diabetes tipo 2 melhora a sensibilidade dos mesmos à sua própria insulina, reduz a gordura abdominal, os triglicerídeos, e aumenta o HDL (colesterol “bom”).”

Recentemente uma análise de vários estudos (metanálise) mostrou que reduzir a carga glicêmica (quantidade de glicose) e o índice glicêmico (o efeito de um determinado alimento na glicemia) estava associado com uma redução no risco de desenvolver diabetes tipo 2. Após a redução do peso, manter uma dieta com redução de alimentos de alto índice glicêmico e com mais proteína demonstrou ser uma estratégia superior em manter a perda de peso já atingida, por um tempo maior do que qualquer outra composição de dieta.

(…) 

Recentemente, a maior parte das sociedades médicas afastou-se das recomendações de alto consumo de carboidratos e passaram a recomendar a individualização das necessidades nutricionais. Na Clínica Joslin nós temos prova de que esta é uma decisão acertada. Desde 2005 nós temos seguido a diretrizes Joslin para manejo do peso (N.T.: redução de carboidratos). Os 44 grupos de pacientes com diabetes tipo 2 que passaram pelo programa e seguiram as diretrizes Joslin perderam um total de 5 mil quilos, melhoram seu controle do diabetes e cortaram significativamente sua necessidade de medicamentos.

“Recentemente, a maior parte das sociedades médicas afastou-se das recomendações de alto consumo de carboidratos (…)”

Infelizmente, muitos profissionais de saúde e nutricionistas em todo o país ainda recomendam uma dieta de alto carboidrato para pacientes com diabetes, uma recomendação que pode prejudicá-los e contribuir para o aumento de sua obesidade e piora do controle de seu diabetes, consequentemente aumentando sua chance de vir a desenvolver complicações da doença no futuro.

“Infelizmente, muitos profissionais de saúde e nutricionistas em todo o país ainda recomendam uma dieta de alto carboidrato para pacientes com diabetes, uma recomendação que pode prejudicá-los e contribuir para o aumento de sua obesidade e piora do controle de seu diabetes, consequentemente aumentando sua chance de vir a desenvolver complicações da doença no futuro.”

Agora está CLARO que um GRANDE ERRO foi cometido nos anos 1970 quando se recomendou um aumento dos carboidratos para mais de 40% das calorias totais. Este período precisa terminar, se nós realmente queremos reduzir a epidemia de obesidade e de diabetes tipo 2.

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