Estudo PURE – quando a epidemiologia entra em xeque-mate

Se você presta alguma atenção no mundo da nutrição, com certeza ouviu falar do PURE – Prospective Urban and Rural Epidemiological Study – “Estudo Epidemiológico Prospectivo Urbano e Rural”, que foi publicado nesta semana na revista científica The Lancet, uma das mais influentes do mundo.

Para quem frequenta essas páginas, não é exatamente novidade. Afinal, em fevereiro de 2017 já havíamos divulgado um vídeo com a espetacular apresentação feita por seu principal investigador, Dr. Salim Yusuf, em um simpósio de cardiologia, em Davos, na Suíça, antecipando vários dos resultados. O vídeo daquela apresentação foi rapidamente removido do youtube e de todos os locais na internet, mas você pode conferi-lo na íntegra aqui. Aliás, o dr. Yusuf, faltando 1 minuto e 40 segundos para o final, recomenda o livro Big Fat Surprise (“Gordura sem Medo, em português) – se você ainda não leu, faça-o.

A publicação do estudo, e sua apresentação no congresso da Sociedade Europeia de Cardiologia gerou um turbilhão de notícias, matérias espalhafatosas e reações de todos os lados. Por quê? Vou copiar e colar para vocês alguns trechos do próprio estudo:

A ingestão elevada de carboidratos foi associada com maior risco de mortalidade total, enquanto que a gordura total e os tipos individuais de gordura estavam relacionados a menor mortalidade total. A gordura total e os tipos de gordura não foram associados a doenças cardiovasculares, infarto do miocárdio ou mortalidade por doenças cardiovasculares, enquanto a gordura saturada teve associação inversa com AVC. As diretrizes dietéticas globais devem ser reconsideradas à luz desses achados.

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Da mesma forma, a ingestão de proteína total foi inversamente associada aos riscos de mortalidade total (HR 0 · 88 [95% IC 0 · 77-1 · 00]; ptrend = 0 · 0030) e mortalidade por doença não-cardiovascular (HR 0 · 85 [0 · 73-0 · 99]; ptrend = 0 · 0022; tabela 2). A ingestão de proteína animal foi associada com menor risco de mortalidade total e não houvve associação significativaentre proteína vegetal e o risco de mortalidade total.

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Substituição de carboidratos por gordura saturada foi associada a um risco de AVC de 20% menor (HR 0 · 80 [IC 95% 0 · 69-0 · 93]). Não foram encontradas associações significativas com risco de AVC para a substituição de carboidratos por outras gorduras e proteínas.

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Nossos achados não dão suporte às recomendações atuais para limitar a ingestão de gordura total para menos de 30% das calorias e ingestão de gordura saturada para menos de 10% das calorias. Indivíduos com alto consumo de carboidratos podem se beneficiar de uma redução na ingestão de carboidratos e do aumento do consumo de gorduras.

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Durante décadas, as diretrizes dietéticas se concentraram na redução da ingestão total de gordura e ácidos graxos saturados, com base na presunção de que a substituição de ácidos graxos saturados por carboidratos e gorduras não saturadas irá diminuir o colesterol LDL e, portanto, reduzir os eventos de doenças cardiovasculares. Este foco é amplamente baseado na ênfase seletiva em alguns dados observacionais e clínicos, apesar da existência de vários ensaios randomizados e estudos observacionais que não apoiam essas conclusões.9,35-37

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Este é o primeiro grande estudo a descrever a associação entre a baixa ingestão de ácidos graxos saturados (por exemplo, <7% de energia) e mortalidade total e eventos de doenças cardiovasculares. Dois grandes estudos prospectivos de coorte (o Health Professionals Follow up and the Nurses’ Health Study) não encontraram associações significativas entre a ingestão de ácidos graxos saturados e risco de doença cardiovascular quando os nutrientes de substituição não foram levados em consideração.38,39,48,49 Ensaios clínicos randomizados de redução de ácidos graxos saturados (substituídos por ácidos graxos poliinsaturados) também não demonstraram um impacto estatisticamente significativo na mortalidade total.9,35-37

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Nossos achados de uma associação inversa entre ingestão de ácidos graxos saturados e risco de acidente vascular cerebral são consistentes com alguns estudos de coorte anteriores.50 Coletivamente, os dados disponíveis não suportam a recomendação de limitar os ácidos graxos saturados a menos de 10% das calorias, e que uma ingestão muito baixa (ou seja, abaixo de cerca de 7% das calorias) pode até ser prejudicial.

Bem, já deve estar claro os motivos pelos quais este estudo anda gerando reações tão emocionais no mundo da nutrição.

Mas… este estudo PROVA alguma coisa? Ele PROVA que consumir muitos carboidratos aumenta a mortalidade? Ele PROVA que consumir mais gordura saturada reduz a mortalidade e os AVC’s?

Não!! Ele não prova nada disso. Ele não pode provar nada disso. Por quê? Porque é um estudo OBSERVACIONAL, e estudos observacionais não podem estabelecer causa e efeito. Por favor, releia a postagem que eu escrevi sobre isso anos atrás.

Então, por que o “mundo low carb” festejou a sua publicação?

Alguns por ingenuidade – afinal, é gostoso bater palmas para qualquer coisa que defenda o que você acredita.

Mas me parece que a maioria das pessoas não captou os dois outros motivos pelos quais este estudo é MUITO importante:

1) Estudos observacionais não provam que algo é verdade, mas são extremamente úteis para refutar hipóteses causais equivocadas.

2) Na tentativa de desacreditar o estudo PURE, o establishment nutricional subitamente deu-se conta e declarou, publicamente, que estudos observacionais não estabelecem causa e efeito e que não devem, portanto, pautar condutas. EU CONCORDO COM ISSO. Em outras palavras, para refutar um estudo observacional com o qual não concordam, desacreditaram a quase totalidade dos estudos que embasam as diretrizes vigentes. Como alguém disse no twitter: “the house of carbs is falling down”.

Vamos expandir um pouco os dois tópicos

  • Estudos observacionais não provam que algo é verdade, mas são extremamente úteis para refutar hipóteses causais equivocadas.

Eu já escrevi uma postagem inteira sobre isso há mais de 2 anos, e sugiro que você leia a íntegra aqui.

Basicamente, é um argumento de lógica. Funciona assim:

Já explicamos, à exaustão, que a existência de uma associação entre duas coisas não implica que uma é causa da outra, ou seja, que associação não implica causa e efeito.

Mas aqui a coisa fica interessante: quando uma coisa efetivamente CAUSA a outra, obrigatoriamente haverá também uma associação entre elas. Ou seja, a associação não implica necessariamente que haja relação de causa e efeito, mas a relação de causa e efeito, quando de fato existe, evidentemente engendra a existência de uma associação.

Corolário lógico? A ausência de associação entre variáveis, mesmo em estudo observacional, sugere fortemente a inexistência de uma relação de causa e efeito entre elas. Se houver uma associação inversa entre duas variáveis, mesmo em um estudo observacional, a hipótese de que uma CAUSA a outra beira ou absurdo. Não é impossível, mas é deveras improvável.

Dito de outra forma: correlação não implica necessariamente causalidade, mas causalidade implica necessariamente correlação. Assim, a AUSÊNCIA de correlação (ou, pior ainda, uma correlação INVERSA) essencialmente REFUTA a existência de causalidade.

Em termos concretos, e no estudo em tela: o fato de que um maior consumo de gordura saturada foi ASSOCIADO a uma menor mortalidade não significa que a gordura saturada seja a CAUSA dessa redução. No entanto, tal associação INVERSA (entre gordura saturada e mortalidade) essencialmente REFUTA a hipótese de que a gordura saturada na dieta seja uma CAUSA de mortalidade.

Isso é tão importante que vou tentar dizer de outra forma: as diretrizes vigentes indicam a redução das gorduras na dieta, em especial as saturadas. Isso porque baseiam-se na ideia de que a gordura saturada da dieta aumenta o risco de morbidade e mortalidade. Tal hipótese é uma hipótese CAUSAL. Ou seja, as diretrizes baseiam-se na hipótese de que a gordura saturada da dieta CAUSA um aumento de mortes; em sendo a gordura a CAUSA, sua redução se justificaria, pois isso produziria uma redução das mortes. Porém, o estudo epidemiológico mostra uma associação INVERSA entre o consumo de gorduras em geral, incluindo a saturada, e mortalidade e AVC. Como o estudo é observacional, ele não PROVA que mais gordura PREVINE mortes (apenas levanta essa hipótese). Mas ele é essencialmente INCOMPATÍVEL com a hipótese de que a gordura saturada CAUSA mortes. Nesse sentido, embora observacional, é mais um estudo que refuta a hipótese.

O estudo PURE não é o primeiro nem o único estudo observacional a refutar a hipótese de que a gordura na dieta é causa de mortalidade. É apenas o maior, mais recente e que levantou os dados uma população mais diversificada (não apenas na América do Norte e Europa).

Segundo tópico:

  • Na tentativa de desacreditar o estudo PURE, o establishment nutricional subitamente deu-se conta e declarou, publicamente, que estudos observacionais não estabelecem causa e efeito e que não devem, portanto, pautar condutas. EU CONCORDO COM ISSO. Em outras palavras, para refutar um estudo observacional com o qual não concordam, desacreditaram a quase totalidade dos estudos que embasam as diretrizes vigentes.

Cada vez que sai um novo estudo observacional sugerindo que carne vermelha está associada com diabetes, câncer, acidentes de automóvel, as MESMAS pessoas que agora gritam que associação não implica causa e efeito fazem festa e mandam você não comer carne.

Cada vez que sai um novo estudo observacional sugerindo que o maior consumo de grãos integrais está associado com menor risco de diabetes, câncer, acidentes de automóvel, as MESMAS pessoas que agora gritam que associação não implica causa e efeito fazem festa e mandam você aumentar o consumo de grãos integrais (P.S.: os ensaios clínicos randomizados que mostram vantagens de grãos integrais tem como grupo controle grãos processados, por isso mostram vantagem).

Reproduzo aqui parte de um texto que foi publicado no blog de uma das seccionais da Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia:

“Aliás, sabemos que nossa alimentação varia dia após dia, semana após semana, ano após ano. O estudo aplicava o questionário alimentar em intervalos de 3 anos. Será mesmo que todo paciente manteve exatamente o mesmo padrão durante todo este período? Será que alguns pacientes não modificaram suas dietas, para um consumo menor de gorduras justamente por terem um risco maior de problemas de saúde? Será que as pessoas que consumiam mais gordura não se permitiam a isso por serem mais saudáveis? São questões que os próprios autores do trabalho reconhecem não ter conseguido responder.”

“Em resumo, gorduras não são as vilãs que se pregava em outros tempos, desde que consumidas dentro de um padrão alimentar e de atividade física equilibrado. Já o consumo abusivo de carboidratos, especialmente refinados ou vindos de alimentos altamente processados, pode sim trazer prejuízos à saúde.”

Eu concordo 100% com essa análise. Mas veja, ela deve ser aplicada para todos os estudos observacionais.

Na próxima vez que sair um estudo da escola de saúde pública de Harvard sugerindo que o consumo de carne vermelha está associado a um maior risco de seja-lá-o-que-for, você deve se perguntar: “Aliás, sabemos que nossa alimentação varia dia após dia, semana após semana, ano após ano. O estudo aplicava o questionário alimentar em intervalos de 3 anos. Será mesmo que todo paciente manteve exatamente o mesmo padrão durante todo este período? Será que alguns pacientes não modificaram suas dietas, para um consumo menor de carne vermelha justamente por terem um risco maior de problemas de saúde? Será que as pessoas que consumiam mais carne não se permitiam a isso por serem mais saudáveis?”

***

No jogo de Xadrez, diz-se que o rei está em xeque quando a casa em que ele se encontra está ameaçada. O jogador precisa fazer um movimento para retirar tal ameaça. Quando não existe nenhum movimento possível que remova a ameaça ao rei, chama-se de xeque-mate.

O motivo pelo qual uma abordagem low carb não é amplamente aceita e adotada por profissionais de saúde no manejo de sobrepeso, diabetes e síndrome metabólica não é a ausência de evidências robustas de sua eficácia. Existem dezenas de ensaios clínicos randomizados indicando a superioridade da abordagem, tanto para peso quanto para diabetes tipo 2. A resistência baseia-se inteiramente na percepção de risco associado ao aumento proporcional do consumo de gorduras (incluindo as saturadas) que ocorre quando se reduz os carboidratos da dieta. Mas tal percepção é oriunda da citação seletiva de alguns estudos epidemiológicos – justamente o tipo de estudo que os críticos da abordagem low carb começaram a descartar por serem baseados em questionários e por possuírem variáveis de confusão. 

Eis o dilema: ou se aceita que estudos epidemiológicos são adequados para ditar normas alimentares à população (o que significaria ignorar todas as suas limitações, suas imprecisões e suas variáveis de confusão), e nesse caso o estudo PURE indicaria a necessidade de uma grande revisão nas diretrizes que recomendam a restrição de gordura (especialmente saturada) na dieta; ou se aceita que o estudo PURE é fatalmente inadequado para informar as diretrizes alimentares, visto ser epidemiológico e falho – mas isso terá que valer para TODOS os estudos epidemiológicos que estão na base deste grande castelo de cartas. You can’t have it both ways.

O rei não tem para onde fugir, sem que fique em xeque. Xeque-mate.

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