E se cada estudo observacional gerasse pânico?

Estou em férias, fora do Brasil, e tinha me proposto a não escrever nada até o fim do mês. Mas parece que o mundo está desabando, e finalmente está PROVADO que low-carb mata! Ao menos é o que as incontáveis mensagens que recebi sugerem, ao reproduzir manchetes tais como:

Ou

Ou ainda:

Esta última é, sem dúvida, a melhor de todas, visto que o estudo sequer menciona dieta paleolítica, e sim low-cab, e que dieta paleolítica sequer é (necessariamente) low-carb.

E de onde saiu essa notícia bombástica? Pessoas foram sorteadas para seguir uma dieta low-carb ou uma dieta habitual, foram acompanhadas por 20 anos, e viveram 4 anos menos? Foi isso? Vejamos o estudo original:

Um estudo de coorte, ou seja, observacional!

Neste momento, você deve parar tudo, e ler as seguintes postagens:

Leu. Mentira. É sério – vá lá e leia! Se você ler as três postagens acima, não precisará ler mais nada sobre esse assunto, com a vantagem de estar imunizados não apenas quanto a esse pânico atual, mas também para os vindouros.

Mas Ok, vamos mais uma vez analisar um estudo observacional.

1) É observacional. Como sabemos disso? Pelo título. Coorte = observacional. E, como já vimos, estudo observacional não pode estabelecer causa e efeito. Portanto, quando você diz que low-carb encurta a vida, com ESSE tempo verbal, você está afirmando que algo (low-carb) CAUSA algo (encurtamento da vida). Isso é impossível com um estudo de coorte (não entendeu? Leia as três postagens acima).

2) É escrito pelo Walter Willett. 100% dos estudos publicados por este autor, que é o chefe da escola de saúde pública de Harvard, vilanizam a carne vermelha e a gordura saturada.

3) A coorte foi estabelecida originalmente para avalizar outra coisa, não dieta low-carb! Isso é importante, pois novas análises retrospectivas de estudos antigos têm chance muito maior de produzir vieses. Não bastasse isso, a coorte foi inquirida sobre o que comia com o emprego de um questionário de frequência alimentar (algo completamente pseudocientífico), apenas uma vez no início do “estudo” entre 1987-1989, e entre 1993-1995, e os resultados aferidos décadas depois.

4) O grupo que consumia menos carboidrato (menos de 40% das calorias, o que não é de fato low carb) nessa coorte tinha também as seguintes características (tabela 1 do estudo): eram mais obesos (maior IMC), faziam menos exercício, fumavam mais, tinham uma maior incidência de diabetes. Em outras palavras, comer menos carboidratos, nessa coorte específica, era um MARCADOR de maus hábitos. Exatamente como explicado nas 3 postagens cuja leitura foi indicada acima.

Ok, mas você não está convencido. Afinal, o UOL, a GLOBO e o TERRA não podem estar errados!

Ok, então eu pergunto: como seria o mundo se todos os estudos observacionais fossem levados a sério?

Vejamos:

Neste estudo observacional, foram avaliados 42 países da Europa:

Conclusão?

Ou seja, quanto mais carboidratos, mais doença cardiovascular. Quanto mais gordura e proteína, menos doença cardiovascular. E aí? qual tem razão? Não tem como saber! Ambos são estudos OBSERVACIONAIS – apenas sugerem tópicos a ser investigados em ensaios clínicos randomizados – NÃO DEVERIAM gerar manchetes. Aliás, este aí não gerou. Por que será que as manchetes só surgem quando o estudo observacional é CONTRÁRIO a low-carb?

Mas você ainda acha que devemos levar completamente a sério estudos observacionais?

Ok, nesse caso, quero ver as seguintes manchetes:

the incidence of colorectal cancer was higher in vegetarians than in meat eaters.

MANCHETE: Estudo PROVA que NÃO comer carne vermelha AUMENTA seu risco de câncer colo-retal

E que tal esse estudo observacional:

Homens vegetarianos têm mais depressão. A manchete bizarra seria “Uma dieta vegetariana CAUSA depressão, e pode levar ao suicídio!”. Sabe porque eu nunca escrevi sobre esse estudo? Porque ele é observacional. Não presta pra nada, apenas para levantar hipóteses. A diferença é que aqui, nesse blog, tento ser honesto.

Caso contrário, poderia citar ainda esse:

Vegetarians displayed elevated prevalence rates for depressive disorders, anxiety disorders and somatoform disorders.

Se eu fosse seguir o exemplo da imprensa, eu deveria escrever algo como: “CUIDADO: ser vegetariano AUMENTA o seu risco de desenvolver depressão, ansiedade e transtornos somatoformes!”.

Se você realmente acredita que low-carb reduz a sua expectativa de vida em 4 anos baseado em um estudo observacional com questionários, você tem OBRIGAÇÃO de acreditar em todos estes outros exemplos. E nós próximos (já começo a sorrir…).

Que tal entrar no mundo do reductio ad absurdum, e verificar alguns estudos observacionais realmente interessantes?

Você sabe qual a única diferença entre epidemiologia nutricional e horóscopo? É que a sua data e hora de nascimento pode ser conhecida com precisão, já os questionários nutricionais são imprecisos e pseudo-científicos. Por este motivo, o seguinte estudo é MUITO mais confiável do que o estudo de Harvard que gerou tanta comoção:

Residents born under Leo had a higher probability of gastrointestinal hemorrhage (P=0.0447), while Sagittarians had a higher probability of humerus fracture (P=0.0123) compared to all other signs combined.

Ou seja: pessoas do signo de leão tinham maior chance de ter hemorragia intestinal, e pessoas de sagitário tinham maior chance de quebrar o úmero. Os autores obviamente fizeram o estudo como uma piada, uma chacota sobre o abuso da epidemiologia. Pena que, quando é sobre low-carb, as pessoas levam a sério. Pois, repito, ambos estudos são observacionais. A diferença é que não há dúvida sobre a data de nascimento das pessoas, ao contrário da fidedignidade das suas respostas em questionários.

E que tal esse?

Com métodos observacionais, e um número suficientemente grande de pessoas no banco de dados, é possível descobrir que quem nasceu em março tem maior chance de desenvolver câncer de próstata, e quem nasceu em janeiro vomita mais. Eu preferia vomitar mas, infelizmente, nasci em março…

A única diferença entre os exemplos bizarros dados acima e o estudo em questão, é que estes tem uma fonte de dados MAIS confiável (data de nascimento), mas o atual alinha-se com o pensamento nutricional vigente. Sendo assim, a imprensa reage com um grande suspiro de alívio, como se dissesse: “Ufah – nós sempre soubemos que esse negócio de low-carb era loucura, não aguentávamos mais essa sucessão de ensaios clínicos randomizados favoráveis. Felizmente, temos agora algo para produzir manchetes”.

Ainda bem que não nasci em fevereiro. Câncer de pulmão é bem pior…

***

Bônus!

Acabei de lembrar que esqueci de colocar aqui um dos estudos mais interessantes para demostrar que, até mesmo em estudos prospectivos e randomizados, uma análise de subgrupo com critérios que não haviam sido pré-especificados, pode produzir resultados bizarros e risíveis – mas altamente significantes do ponto e vista estatístico – o que prova que significância estatística não é nada se o estudo for mal feito:

Trata-se de um estudo de câncer de próstata avançado tratado com um droga chamada abiraterona. Suas chances de responder favoravelmente a essa droga dependem, se você acreditar no tipo de estatística empregada para determinar que low-carb faz você viver 4 anos a menos, do dia da semana em que você nasceu. Sim, é mais um estudo que emprega propositalmente o reductio ad absurdum para educar o leitor:

Como você pode ver, se você for portador de câncer de próstata avançado, o ideal é ter nascido numa segunda-feira, pois isso aumenta MUITO a sua chance de responder favoravelmente à droga abiraterona. Mas eu disse NASCER numa segunda-feira. Pois se sua biópsia de próstata tiver sido numa segunda-feira, sua chance de ter bons resultados com esse medicamento caem drasticamente. Eu nasci num domingo. Pelo gráfico acima, tive azar. Que pena!! Se minha mãe tivesse esperado apenas mais UM dia…

Lembre-se: é ESSE o (baixo) nível (do ponto de vista estatístico) do estudo de Harvard que gerou as manchetes que a imprensa repercutiu.

Área de Membros Ciência Low-Carb

Acesso a conteúdo
premium exclusivo