Estou escrevendo em um sábado (13/10/2018). Fiquei sabendo que um programa de TV falará, amanhã à noite, sobre os “perigos” da “dieta sem carboidratos”. E isso provocou uma preguiça antecipada, na linha de “que droga, vou ter que ocupar parte da minha segunda-feira, um dia regular de trabalho, retificando coisas que serão ditas no domingo”. Afinal, isso se repete com assustadora regularidade.
Foi aí que tive a ideia: e se eu fizesse a postagem ANTES? Afinal, não saiu nenhum novo ensaio clínico randomizado sobre low-carb. De modo que “os perigos”, as fake news (para usar um termo em voga) serão requentados, os mesmos de sempre, e que já foram discutidos anos atrás aqui no blog, e carecem de suporte científico.
Então, para que fique bem claro, eu não tive acesso a ninguém da emissora de TV em questão, sei apenas o que consta na manchete:
Proponho, aqui, uma espécie de JOGO: quantos dos falsos argumentos abaixo serão empregados? Qual proporção das afirmações do programa serão baseadas em ensaios clínicos randomizados, e o quanto será baseado na falácia da autoridade? Amanhã, saberemos. Com vocês, minhas previsões sobre os argumentos que serão usados no programa de amanhã.
1) Dieta da moda. Aqui, emprega-se a falácia lógica ad hominem:
Ad hominem: Atacar o carácter do oponente ou alguma característica pessoal, em vez de enfrentar o seu argumento.Os ataques ad hominem podem tomar a forma de um ataque aberto a alguém ou, de um modo mais subtil, levantar dúvidas sobre o seu carácter ou atributos pessoais. O resultado desejado com um ataque ad hominem é minar o oponente sem realmente enfrentar o seu argumento ou apresentar um argumento próprio convincente.
Dizer que low-carb é uma “dieta da moda” não é um argumento. Há coisas que estão na moda e são ruins, e outras são ótimas. Praticar exercícios físicos está na moda. Isso não diz nada a respeito dos exercícios. Agora, quando se tenta denegrir uma estratégia qualquer por estar “na moda”, isso diz muito a respeito da falta de reais argumentos por parte de que em o faz. O ad hominem é uma das falácias lógicas mais desprezadas na argumentação e na retórica.
2) Falácia da autoridade. Há uma postagem inteira sobre isso aqui no blog.
O que é a falácia de autoridade? É a ideia de que um argumento é inerentemente válido por ter sido proferido por uma figura que consideramos uma autoridade.
Exemplos: professores, médicos, economistas, jornalistas, pessoas famosas.
Figuras de autoridade serão usadas na reportagem. O que importa são referências bibliográficas de alto nível de evidência. Não importa QUEM fala. Prevejo que as figuras de autoridade apenas recitarão, como se verdades fossem, os argumentos falaciosos que se seguem, sem indicar referências bibliográficas válidas. Caso alguma referência seja citada, será de natureza observacional (veja o item 12, abaixo).
3) Esta dieta não é balanceada.
Balanceado significa, literalmente, equilibrado. Primeira pergunta: onde estão, na literatura científica de alto nível de evidência, os indícios de que tal equilíbrio produza melhores desfechos de saúde? Uma dieta com equilíbrio perfeito dos três macronutrientes teria 33% de carboidratos, 33% de proteína e 33% de gordura. Isto é seria uma dieta low-carb moderada, de alta proteína, e de baixa gordura. Ou seja, seria literalmente a “dieta da proteína”. É essa dieta que está sendo defendida pelas autoridades que (prevejo) serão entrevistadas? É claro que não!! A dieta que (prevejo eu) será defendida no programa contém 60% de carboidratos, 15% de proteínas e 25% de gorduras. Mas esta é EVIDENTEMENTE uma dieta DESBALANCEADA. Tem uma quantidade desproporcional de carboidratos, uma quantidade pequena de proteínas e é francamente low-fat. Veja bem, eu não tenho nenhum problema com essa desproporção, até porque seria ridículo definir, arbitrariamente, que os macronutrientes deveriam ser todos iguais (que seria o real significado de balanceado). Uma dieta “balanceada” mataria tanto um leão quanto um coelho. Para um coelho, a dieta evolutivamente adequada seria 100% vegetais, e para um leão 100% carne. O que é lamentável é o emprego completamente injustificado do termo BALANCEADO por quem prega uma dieta COMPLETAMENTE desproporcional como a da pirâmide alimentar, com 60% de carboidratos. Tal termo não deveria ser utilizado no que diz respeito à nutrição, pois no fundo ele apenas traduz um senso de superioridade moral (pois “balanceado” soa como “bom, justo e correto”) por parte de quem o emprega, mas obviamente 99% das pessoas nunca perdeu 5 minutos para apreciar o quão ridículo este adjetivo é quando aplicado desavergonhadamente a uma dieta high-carb, low-fat. Uma dieta low-carb também não é balanceada – e isso é obviamente uma virtude. É graças à sua baixa quantidade relativa de glicose biodisponível que low-carb favorece a oxidação das gorduras e consequente melhora da síndrome metabólica, resistência à insulina, diabetes e sobrepeso. Na realidade, NINGUÉM nesse embate de ideias está defendendo uma dieta balanceada. Apenas ocorre que os defensores da dieta high-carb, low-fat apropriaram-se indevidamente do termo como estratégia de marketing. O que interessa são os ensaios clínicos randomizados comparando essas duas dietas desbalanceadas: low-carb e low-fat. E, nessa comparação, low-fat nunca foi superior.
4) Esta dieta é ruim pois elimina um grupo inteiro de alimentos. Deixando um pouco de lado o fato de que o que define se uma estratégia é boa ou não é o conjunto dos ensaios clínicos randomizados, e não considerações de natureza conceitual como essa, faço a seguinte pergunta: por que essa objeção não é feita contra as dietas vegetariana/vegana? Por que as diretrizes vigentes nos EUA inclusive sugerem uma dieta vegetariana como recomendável e saudável quando a mesma – agora sim, de fato – elimina um grupo inteiro de alimentos? O argumento é completamente falacioso. Dentro dos grupos, opções são feitas visando um objetivo. Assim como numa dieta high-carb low-fat o peito de frango sem pele será escolhido em detrimento da sobrecoxa com pele para que o objetivo de consumir pouca gordura seja atingido, sem que o frango precise ser eliminado do cardápio, algo semelhante ocorre em uma estratégia low-carb: o morango será escolhido em detrimento da banana para que o objetivo de consumir pouco açúcar seja atingido, sem que as frutas sejam eliminadas do cardápio. No entanto, tal argumento que (prevejo eu), será usado no programa de TV é empregado como arma em outras situações de forma assimétrica. Por exemplo, a dieta paleolítica (que não é nosso assunto aqui hoje) de fato elimina um grupo inteiro de alimentos – os laticínios. E é criticada por causa disso (sem levar em conta os ensaios clínicos randomizados que mostram bons desfechos). No entanto, as MESMAS pessoas e instituições não criticam o veganismo quando o mesmo grupo de alimentos é eliminado, pois agora os motivos da eliminação deste grupo inteiro de alimentos é natureza moral. Ao menos nesse blog, a lente usada para avaliar a adequação de uma estratégia são os desfechos de saúde, avaliados por ensaios clínicos randomizados.
5) Até perde-se peso, mas depois as pessoas não conseguem seguir, e ganham todo o peso novamente. Isso não é um argumento contra low-carb, isso é a descrição do que ocorre, na média, com QUALQUER estratégia de reeducação alimentar. Aliás, isso descreve o comportamento de qualquer grupo humano (tomado como um todo, levando-se em conta a MÉDIA de seus indivíduos) no que diz respeito a literalmente QUAISQUER estratégias de mudança de estilo de vida. Como já escrevi em outra postagem:
(…) Mas, veja, isso é verdade para TODA E QUALQUER intervenção de estilo de vida, seja exercício, cessação de tabagismo, ou absolutamente qualquer tipo de dieta, não porque as coisas deixem de funcionar com o tempo; evidentemente, é porque a MÉDIA das pessoas DEIXA de seguir a orientação. Se fôssemos usar este argumento, não recomendaríamos nenhuma modificação de estilo de vida – sabemos que em 24 meses a maioria das pessoas não estará mais seguindo a recomendação. Para fazer uma recomendação, o que importa é saber sua EFICÁCIA, isto é, se ela funciona QUANDO implementada. Não fumar é melhor do que fumar, por isso recomendamos que se pare de fumar, MESMO sabendo que a maioria das pessoas estará fumando em 24 meses. E é por isso que recomendamos low-carb para diabéticos, porque a EFICÁCIA (que é melhor aferida nos primeiros 90-180 dias dos estudos, quando as pessoas ainda estão seguindo a estratégia) é indiscutível. Se a baixa efetividade (isto é, o resultado para a média das pessoas no mundo real, levando em conta que a maioria das pessoas desiste) não nos impede de recomendar a cessação do tabagismo e a prática de exercícios físicos, também não deve nos impedir de indicar low-carb para os pacientes diabéticos. Isso é óbvio.
Se dependêssemos de sucesso garantido em recomendações de estilo de vida, não recomendaríamos nada para ninguém. Uma estratégia só funciona quando é implementada. Que poucas pessoas continuarão a implementar qualquer estratégia no longo prazo é uma parte triste da condição humana, mas se isso for a base para não recomendar algo sabidamente eficaz, estaremos condenados ao niilismo perene. E, para saber se low-carb é eficaz ou não, o que importa são os ensaios clínicos randomizados. Especialmente durante o período inicial do estudo, no qual a estratégia está sendo seguida adequadamente pela maioria dos participantes.
6) Perde-se massa magra (músculos). Toda e qualquer estratégia de perda de peso pode produzir algum grau de perda de massa magra. TODA, e isso NÃO é maior em low-carb. Há apenas duas estratégias para mitigar isso. Exercício resistido (exemplo, musculação) e aumento do consumo de proteínas. Mas e os ensaios clínicos randomizados, o que mostram? Mostram que low carb produz perda DE GORDURA, mais do que qualquer outra coisa. Eu prevejo que esse argumento será usado no programa de TV. E, como sempre, não haverá estudos para corroborar a afirmação, que será totalmente baseada em falácia de autoridade. Já aqui, você pode ver os estudos que estão citados na seguinte postagem, bem como esse outro estudo em atletas de crossfit, e avaliar você mesmo quem tem razão, a literatura científica peer reviewed (experimental, pois não importam artigos de opinião) ou o especialista.
7) Pode sobrecarregar os rins. Isso é ridículo em dois níveis. O primeiro é o fato de que a literatura simplesmente não dá indicações nesse sentido. De fato, as duas principais causa de doença renal e hemodiálise, diabetes e hipertensão, SABIDAMENTE melhoram com low-carb. Há duas postagens inteiras neste blog (veja aqui e aqui) dedicadas exclusivamente a desmentir essa lenda urbana com estudos originais, incluindo um ensaio clínico randomizado robusto. O segundo nível é que, MESMO que uma dieta rica em proteínas fosse tóxica para os rins, isso seria irrelevante, visto que low-carb não é hiperproteica. Duvida? Sem problemas, este blog não se baseia em opiniões, aponta fontes primárias: confira, por exemplo, um dos maiores e mais bem feitos ensaios clínicos randomizados comparando low-carb, low-fat e dieta mediterrânea, e vá até a tabela 2. Ali, você irá constatar que o consumo de proteínas é igual nos três braços (dentro da margem de erro), muito embora o grupo low-carb pudesse comer quanto proteína desejasse. E este estudo não é uma exceção. Low carb é normoproteico, e isso deveria ser conhecimento básico para um profissional de saúde que fala sobre esse assunto.
8) Sobrecarrega o fígado. Há uma postagem inteira no blog sobre esta lenda. E mais uma especificamente sobre esteatose (gordura no fígado) e os benefícios de low-carb. Em resumo, o que sobrecarrega o fígado é álcool e medicamentos. E o ingrediente por trás da esteatose é o açúcar. Estudo recente, inclusive, mostrou que apenas 14 dias de uma dieta low-carb são capazes de reduzir significativamente a gordura hepática, e ao mesmo tempo melhorar os marcadores de risco cardiometabólico. Se um profissional de saúde lhe disser que low-carb faz mal para o fígado, fuja como se sua vida dependesse disso. Pois depende mesmo.
9) Esta dieta restringe fibras/vitaminas/nutrientes pois não possui grãos integrais.
Comecemos com o fato de que há duas metanálises da Cochrane sobre grãos integrais, a primeira indicando que não há evidências de benefício cardiovascular, e a segunda indicando que não há evidências de que exerçam um efeito protetor contra diabetes, de modo que conviria uma certa parcimônia e humildade no que diz respeito da frases que começam com “grãos integrais apresentam inúmeros benefícios COMPROVADOS para a saúde”. Os únicos estudos que, sistematicamente, demostram benefícios comparam grãos integrais com grãos refinados. Ser melhor do que algo péssimo não é, obviamente, justificativa para afirmar que algo é bom. De forma que os alegados malefícios da retirada de algo cujos benefícios nem sequer foram comprovados repousa exclusivamente no fato de conterem fibras e micronutrientes. Se grãos fossem as únicas, os mesmo as melhores, fontes de fibras, vitaminas e minerais, eu concordaria. Mas, e a SALADA? De que forma, sem insultar a lógica e a inteligência, seria justificado submeter um diabético ao consumo de grandes quantidades de amido (grãos) apenas para que possa consumir a fina casca de fibra que os envolve? Com toda a riqueza de folhosas, vegetais de baixo amido e legumes disponíveis, que apresentam densidade nutricional ordens de magnitude superior a qualquer grão, quem precisa de grãos para atingir a suficiência de nutrientes? Sinto muito, mas há momentos em que é necessário pensar. De que forma a retirada de pão, massa, biscoitos, guloseimas, açúcar e farinhas diversas, e sua substituição por vegetais múltiplos, peixes, ovos, carnes, laticínios, nozes, castanhas e amêndoas teria qualquer efeito que não fosse o de MELHORAR a densidade nutricional? Não é ÓBVIO que o amido, este polímero de glicose desprovido de valor nutricional, semelhante em tudo ao açúcar exceto pela ausência de frutose, apenas dilui os nutrientes, reduzindo a quantidade dos mesmos por grama, ao mesmo tempo em que afeta de forma adversa a glicemia e a insulina dos indivíduos síndrome metabólica e diabetes? Para parafrasear a constituição dos EUA, há verdades que simplesmente são auto-evidentes.
10) Mas o cérebro precisa de glicose. Sim. E precisa de sangue também, mas isso não significa que você precise beber sangue diariamente. A analogia, grosseira, serve apenas para lembrar que o fato de o cérebro precisar de glicose não significa que você precisar consumir a glicose na sua dieta. Há uma postagem inteira sobre isso aqui no blog, e o resumo é que a gliconeogênese (produção de glicose pelo fígado) é capaz de manter a glicemia normal por tempo indeterminado (e os aminoácidos necessários vêm da dieta, e não dos músculos, reveja o tópico No.6, acima). Na verdade, o cérebro apenas depende primariamente de glicose em quem se alimenta de glicose. Nas pessoas que se alimentam com baixo carboidrato, até 75% das necessidades energéticas do cérebro são supridas por corpos cetônicos, o que parece oferecer uma série de vantagens. Incontáveis pessoas (incluindo esse que vos escreve) consomem menos de 50 gramas de glicose por dia há muitos anos, e o fato de não estarmos em coma (e conseguirmos escrever postagens) é tudo o que você precisa saber sobre o tema, pois a realidade tem primazia sobre os mecanismos.
11) Low carb nunca foi testada por mais de 3 anos em estudos prospectivos para saber suas consequências a longo prazo. Pois é, mas nenhuma dieta foi (com exceção de low-fat, no WHI, que mostrou ser deletéria para pessoas com diabetes, o que sugere que seja ruim para mais de 50% das pessoas – que é o número combinado de obesos, diabéticos e pré-diabéticos), mas low carb é superior (ou, no mínimo, igual) em até 3 anos (veja aqui e aqui). Como os dados que possuímos são esses, até que os estudos de longo prazo sejam conduzidos, temos que nos ater às melhores evidências (de ensaios clínicos randomizados), e as melhores evidências favorecem low-carb, e desfavorecem low-fat. E, vamos combinar, 40 anos de pirâmide alimentar (que também nunca havia sido testada antes de ser implementada) redundaram em um desastre sem precedentes, de modo que não há muita dúvida sobre para qual lado o pêndulo se encaminha.
12) Low carb está associado com maior mortalidade em estudos observacionais. Um monte de coisas ridículas estão associadas com outras em estudos observacionais. Escrevi recentemente sobre isso. A verdade é que cerca de 80% dos achados de estudos observacionais revelam-se errados quando testados em ensaios clínicos randomizados. Eu disse oitenta por cento. Em outras palavras, uma afirmação oriunda de estudo observacional, especialmente epidemiologia nutricional, que é o pior dos tipos, tem uma probabilidade MUITO maior de estar errada do que correta. Recentemente, dois estudos observacionais com resultados completamente opostos foram publicados, um dizendo que restringir carboidratos reduz a expectativa de vida (veja aqui e aqui), e outro dizendo que mais queijo e mais carne estão associados com maior longevidade (veja aqui) assim como mais gordura e menos carboidratos (veja aqui). Por definição, um deles está errado. A rigor, ambos podem estar errados, e na verdade essas coisas podem não ter nenhum impacto sobre a longevidade. Estamos baseando condutas em especulações com chance de erro da ordem de 80%. A leitura das seguintes postagens pode ajudar:
- O que é uma referência bibliográfica aceitável? 2 – Alguns estudos são mais importantes
- Reductio ad absurdum
- O viés do paciente bem comportado
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Há apenas uma semana Foi publicado online, no periódico Diabetes Care, o novo consenso conjunto da Associação Americana do Diabetes (ADA) e da Associação Europeia para o Estudo do Diabetes (EASD), no qual low-carb é reconhecida como uma das alternativas dietéticas válidas no manejo do diabetes, baseada no fato de ser efetiva e não possuir efeitos adversos (leia a postagem aqui).
Este novo consenso não contempla a dieta da lua, nem enemas de café, nem a mais nova superfood da lojinha de produtos naturais. Afinal, não se espera que DIETAS DA MODA figurem entre as alterativas recomendadas em um consenso científico desse porte.
Confesso que não pretendo assistir ao programa, pois a sensação de vergonha alheia me provoca uma dor quase física. Conto com vocês, leitores, para dizer quantas das 12 falácias acima foram, de fato, empregadas no programa de amanhã, dia 14/10/2018, e se esqueci de enumerar alguma, nesse exercício de futurologia.