Em outubro de 2018, foi publicado um consenso conjunto da ADA (Associação Americana do Diabetes) e da EASD (Associação Europeia para o Estudo do Diabetes), que já havia posicionado low-carb como uma das estratégias padrão para o manejo nutricional do diabetes tipo 2 (veja aqui).
Agora, a ADA acaba de publicar suas diretrizes atualizadas para 2019, especificamente no que diz respeito à terapia nutricional para o diabetes e o pré-diabetes:
Como já expliquei aqui no blog, documento de consenso não é evidência – evidências são os estudos primários que lhe dão sustentação. Documentos de consenso são peças de opinião. As evidências sobre a eficácia de low-carb em diabetes já estavam aqui no blog há muitos anos, quando a ADA praticamente nem tomava conhecimento do assunto.
No entanto, muitas pessoas – a maioria – são vítimas da falácia da autoridade. Eu posso elencar mais de uma dezena de ensaios clínicos randomizados sobre low-carb e diabetes, mas se a ADA – que é tida como autoridade no assunto – não corroborar, de nada adianta. O problema é a faísca atrasada de certas entidades. Há 5 (CINCO) anos já falávamos sobre isso por aqui. Faz sentido a ADA estar vários anos atrasada em um assunto – diabetes – que lhe dá nome?
Então, que fique claro – nunca precisei de diretriz ou documento de consenso para ler os ensaios clínicos randomizados e chegar às minhas conclusões. O motivo pelo qual estou festejando é que a ADA – antes tarde do que nunca – está finalmente adotando posturas baseadas em evidência no que diz respeito a dieta e diabetes. O que deve tornar mais fácil a aceitação por parte daqueles que só aceitam algo se lhes for dado de cima pra baixo por uma figura de autoridade. Para alguns, falar sobre quinze ensaios clínicos randomizados tem menos peso do que afirmar “a ADA diz que low-carb é bom”. Bem, que seja, então…
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Com o insustentável acúmulo das evidências, não é mais possível tratar esta abordagem como “dieta da moda”, e a ADA deixa isso claro em diversos trechos:
“As reduções da hemoglobina glicada (A1c) com terapia nutricional médica podem ser similares OU MAIORES do que o que se espera com o tratamento medicamentoso do diabetes tipo 2”
Neste trecho, pela primeira vez, a ADA admite com todas as letras que não se sabe qual a quantidade ideal de carboidratos para a saúde humana (portanto afirmações categóricas de que deveria ser mais de 45% das calorias não passam de meras opiniões – o mais baixo nível de evidência), mas que as necessidades energéticas do cérebro podem ser providas por gliconeogênese e cetogênese no contexto de uma dieta very low-carb. Sim, isso é sabido há décadas, e já foi explicado aqui neste blog há mais de 6 anos, mas finalmente a ADA publica algo que seria aceitável como resposta dos calouros nas provas de fisiologia humana 1 e bioquímica básica 1 do ano inaugural da faculdade. De fato, que o corpo é capaz de sintetizar toda a glicose de que necessita a partir dos aminoácidos da dieta e do glicerol das gorduras é algo sabido desde antes da segunda guerra mundial. Não foi no mesmo século, mas a ADA se atualizou – o que reforça o adágio de que antes 100 anos tarde do que nunca.
Sobre proteína na dieta, a ADA também reconhece que aumentar o consumo de proteínas parece ser vantajoso para o diabético:
E, finalmente, a tabela sobre os diferentes tipos de dieta – elencando várias vantagens de low-carb e very low-carb:
Nas palavras da própria ADA (tabela acima), as vantagens comprovadas, baseadas em evidência, de low-carb para diabetes incluem redução da hemoglobina glicada (A1c), perda de peso, redução da pressão arterial, aumento do HDL (“colesterol bom”) e redução dos triglicerídeos. Um detalhe curioso, quase engraçado, é o fato de que a única estratégia que a ADA não recomendou para o diabetes tipo 2 foi o “Dietary Guidelines for Americans”, ou seja, a pirâmide alimentar – na coluna “vantagens” da tabela, não aparece nenhuma!
Escondido em outra tabela, temos um dos parágrafos mais importantes deste texto. Trata-se da admissão clara de que low-carb é a estratégia nutricional 1) mais estudada dentre TODAS no contexto do diabetes e 2) é a que tem maior evidência na melhora da glicemia. Eis o trecho, seguido de sua tradução:
“Reduzir a quantidade total de carboidratos para indivíduos com diabetes [é a estratégia que] demonstrou a maior quantidade de evidências para a melhora da glicemia, e pode ser aplicada em uma variedade de padrões alimentares de acordo com a necessidades e preferências de cada indivíduo”
Ao descrever os diferentes tipos de abordagens nutricionais, a ADA deixa clara a futilidade da abordagem low-fat (a que é ensinada nas faculdades, e que embasa, por exemplo, a alimentação oferecida aos diabéticos nos hospitais):
“Reduzir a gordura total não melhorou a glicemia ou os fatores de risco cardiovascular em pessoas com diabetes tipo 2 baseado em uma revisão sistemática, vários estudos, e em uma metanálise (…) a dieta low-fat tem sido usada como “grupo controle” para testar outros padrões alimentares”
Em outras palavras, low-fat literalmente não serve pra nada: sua única utilidade é servir de controle inerte para testar coisas melhores. E é – repito – o padrão alimentar que se ensina nas nossas faculdades de nutrição.
E aí, vem o momento de falar sobre low-carb e sobre very low-carb:
“Low-carb, especialmente very low-carb, tem demostrado reduzir a hemoglobina glicada e a necessidade de medicação no diabetes. Estes padrões alimentares ESTÃO ENTRE OS MAIS ESTUDADOS NO DIABETES TIPO 2”.
Se você é profissional da saúde, poupe-se do embaraço causado pela admissão pública do desconhecimento da literatura: não chame low-carb de dieta da moda. Provoca vergonha alheia, e pega mal para você. Low-carb é a estratégia alimentar MAIS ESTUDADA em diabetes, e sabidamente produz melhora do controle glicêmico ao mesmo tempo em que reduz a necessidade de medicamentos.
Segue o texto da ADA:
“Em estudos de até 6 meses de duração, a dieta low-carb melhorou mais a hemoglobina glicada (A1c), baixou os triglicerídeos, aumentou o HDL, baixou a pressão arterial e resultou em maiores reduções nos medicamentos“
Ou seja, low-carb foi superior para diabetes, e ainda tratou toda a síndrome metabólica (como, aliás, já se sabia em 2013). Segue ainda o texto do parágrafo acima:
“Quanto maior a restrição de carboidratos, maior a redução da hemoglobina glicada“
Comer menos glicose melhora a glicose… quem diria, não é mesmo?
O texto continua (sim, low-carb ocupa um espaço e tanto nesse consenso), alertando para a eficácia rápida e até mesmo excessiva de low-carb em diabetes:
O trecho acima alerta para a rápida redução da glicemia que ocorre quando se adota low-carb, motivo pelo qual deve haver acompanhamento de um profissional com experiência, para poder reduzir as doses de insulina (em quem usa) e de medicamentos para diabetes. Nada mal para uma dieta da moda…
E quanto à gordura saturada da dieta? Eis o que a ADA tem a dizer:
“A maioria dos ensaios clínicos de low-carb não restringiram a gordura saturada; pela evidência atual, este padrão alimentar não parece aumentar o risco cardiovascular“.
O texto explica que estudos mais longos são necessários para confirmar isso a longo prazo. Mas isso é verdade para os outros padrões alimentares também. Até onde foi estudado, os benefícios estão demonstrados, e riscos não surgiram. Como as mesmas ressalvas aplicam-se aos demais padrões alimentares, resta evidente que as condutas devem basear-se na evidência disponível sobre a eficácia e a segurança, e não em riscos teóricos (todas as estratégias os têm).
Em diabetes tipo 1, a ADA já começa a prestar atenção aos estudos que indicam benefício – mas aponta a duração curta e o n pequeno dos mesmos:
Pela primeira vez, a ADA endossa a ideia de se buscar não apenas o controle do diabetes, e sim a sua REMISSÃO, definida como glicemia normal ou em nível de pré-diabetes sem medicação por pelo menos um ano. Veja o título dessa seção:
A seção questiona: “Qual o papel da perda de peso na potencial remissão do diabetes tipo 2?”
Este título dá a entender que a única coisa que afeta a chance de remissão é a perda de peso. No entanto, um pouco mais abaixo, vem o seguinte trecho:
“A composição da dieta também pode ser importante. Em um ensaio clínico randomizado, o grupo seguindo uma low-carb mediterrânea teve taxas maiores de remissão ao menos parcial do diabetes, embora a diferença de perda de peso tenha sido de apenas 2 Kg a mais, do que o grupo low-fat”
Ao discorrer sobre o tema das proteínas na dieta dos diabéticos com doença renal crônica, a ADA diz o seguinte:
Felizmente, a ADA também admite, pela primeira vez, que não há indicação de restrição de proteínas em diabéticos portadores de doença renal. Isso já foi tratado aqui no blog em mais de uma ocasião (veja aqui e aqui), mas é muito bom ver que a ADA finalmente se atualizou, e substituiu as orientações baseadas em senso comum por outras baseadas em evidência. No texto acima, se lê:
“historicamente, dietas de baixa proteína ERAM indicadas para pacientes diabéticos com albuminúria e progressão de doença renal crônica (…) Há indicações de que uma dieta pobre em proteínas possa levar esses pacientes à desnutrição (…) o consumo médio de proteínas de diabéticos sem doença renal é em torno de 1 a 1,5 g por Kg de peso (…) As evidências NÃO sugerem que diabéticos com doença renal precisem restringir as proteínas para menos do que isso.”
Por fim, o prêmio DISSONÂNCIA COGNITIVA do ano:
Por que eu digo isso? Vamos à tradução literal do parágrafo:
“Para adultos selecionados com diabetes tipo 2 que não estejam conseguindo atingir os alvos de glicemia ou nos quais reduzir as medicações hipoglicemiantes seja uma prioridade, reduzir a quantidade total de carboidratos com um plano alimentar low-carb ou very low-carb é uma abordagem viável”
Há coisas que só soam normais no distópico mundo em que a nutrição colide com a endocrinologia. Vou reescrever o parágrafo acima, como se fosse nas diretrizes para a hipertensão: “Para adultos selecionados com hipertensão arterial que não estejam conseguindo atingir os alvos pressóricos apenas com medicação, ou nos quais reduzir os remédios seja uma prioridade, exercício físico e redução de peso são uma abordagem viável”. É evidente que isso seria UM ABSURDO. Pois é EVIDENTE que a ordem está invertida!! As diretrizes para o tratamento da hipertensão leve indicam o manejo não-farmacológico primeiro – exercício físico, perda de peso – e o uso da medicação fica reservado para aqueles casos nos quais os alvos pressóricos não foram atingidos APENAS com as medidas de estilo de vida.
O bizarro parágrafo da ADA deveria dizer que low-carb (ou outras estratégias alimentares menos eficazes) deveria ser a primeira abordagem no diabetes tipo 2 (há uma revisão narrativa da literatura dizendo justamente isso – publicada há CINCO anos). Caso os alvos de glicemia não seja atingidos APENAS com dieta e atividade física, então o tratamento farmacológico deve ser ADICIONADO.
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Sempre lutei contra a falácia da autoridade. Quando a ADA desconsiderava a estratégia low-carb, este blog já publicava as evidências. Quem mudou neste quesito foi a ADA, não o blog. Mas, se for para salvar vidas, membros, rins e retinas, que usemos a falácia da autoridade a nosso favor. Quando alguém disser que low carb é dieta da moda para diabéticos, tente argumentar com evidências. Mas, se não der certo, basta dizer “a ADA recomenda”.