O que o artigo sobre jejum do New England realmente mostra?

Há alguns dias foi publicada uma revisão da literatura sobre jejum intermitente no New England Journal of Medicine (NEJM):

Para situar aqueles que não são da área médica, o NEJM é o mais prestigioso periódico médico do mundo. Revisões como essa são encomendadas pela revista a especialistas mundialmente reconhecidos. Quando algo sai em uma revisão do NEJM, é porque deixou de ser “fringe” (isto é, uma ideia periférica, endossada apenas por visões alternativas) e passou a ser “mainstream” (isto é, passou a fazer parte do cânone de conhecimento vigente, aceito pelos pares de profissão). Jejum agora é mainstream.

É importante que se diga que este artigo não traz nada de novo. Trata-se de uma revisão “narrativa”, isto é, seus autores explicam, como em um livro-texto, sua convicções sobre o tema. É diferente de uma revisão sistemática ou de uma metanálise, que são feitas com critérios pré-estabelecidos de busca no PubMed pela totalidade da literatura. Ou seja, não agrega nada em termos de evidência. Então, qual a sua importância? Sua importância está na sanção oficial do establishment médico ao jejum intermitente. Não importa quantos ensaios clínicos randomizados e metanálises (os estudos com os maiores níveis de evidência) você mostre para seu médico, é provável que ele lhe diga que jejum é modinha, e que o certo é fazer tudo em moderação, o que inclui – em sua cabeça – comer de 3 em 3 horas. Mas basta uma revisão do New England para que seu médico passe a dizer que SEMPRE SOUBE que jejum intermitente é benéfico – e que o problema é apenas o grau de dificuldade em praticá-lo. Enfim, estamos já na década de 20 dos anos 2000 mas, para a maioria dos profissionais, uma peça de opinião no NEJM vale mais do que as reais evidências (experimentos em humanos, que não são de hoje): é a medicina baseada em eminência. Ainda assim, é uma grande vitória – nesgas de evidência acabam escapando de tempos em tempo por entre as frestas do dogma nutricional. Mas eu divago.

Há um outro aspecto que chama muito a atenção durante a leitura da revisão narrativa sobre jejum do NEJM: a esmagadora maioria das coisas que são citadas no artigo como sendo benéficas, ou como sendo as causas dos benefícios observados, ocorrem também em uma estratégia bem mais fácil de seguir, que requer muito menos disciplina e que não envolve a sensação de fome: DIETA CETOGÊNICA. A seguir, vamos explorar um pouco o artigo do New England, mostrando que, se jejum intermitente é bom pelos motivos que ali constam, decorre logicamente que cetogênica também é.

O artigo começa chamando atenção para a literatura existente sobre restrição calórica e benefícios para a saúde e longevidade de animais. Mas explica que os autores de tais estudos não perceberam que, na verdade, os animais consumiam a maior parte das calorias nas primeiras 4 horas, ficando o resto do tempo em jejum.

“Na época, não era geralmente reconhecido que, porque os roedores com restrição calórica normalmente consomem toda a sua porção diária de alimento poucas horas após sua provisão, eles têm um período de jejum diário de até 20 horas, durante o qual ocorre a cetogênese.”

Veja que cetogênese é colocada como algo bom (é que, em 2020, ainda há profissionais de saúde que confundem cetose com cetoacidose). O artigo segue ainda explicado que, no jejum intermitente, ocorre:

“(…) a troca metabólica da glicose derivada do fígado para cetonas derivadas de células adiposas (…).”

Este conceito é muito importante – o “interruptor” metabólico, que alterna entre o uso de glicose para o uso de gordura e corpos cetônicos como fonte de energia é, corretamente, colocado no centro do benefícios do jejum:

“Estudos pré-clínicos consistentemente mostram a robusta eficácia modificadora da doenças do jejum intermitente em modelos animais em uma ampla gama de distúrbios crônicos, incluindo obesidade, diabetes, doenças cardiovasculares, cânceres e doenças cerebrais neurodegenerativas. O acionamento periódico do interruptor metabólico não apenas fornece as cetonas necessárias para abastecer as células durante o período de jejum, mas também provoca respostas sistêmicas e celulares altamente orquestradas que são transportadas para o estado alimentado para reforçar o desempenho mental e físico, bem como a resistência a doenças.”

Eu espero que não escape ao leitor que o jejum não é a única forma de ligar tal interruptor. É evidente que uma dieta low-carb cetogênica induz exatamente as mesmas adaptações. Não custa lembrar que a dieta cetogênica foi desenvolvida há 100 anos com o objetivo de produzir o mesmo benefício que o jejum oferecia no tratamento da epilepsia – através do acionamento do interruptor metabólico no sentido do uso de cetonas como combustível (ver o final desta postagem). A profunda semelhança entre o jejum e a cetose nutricional é, literalmente, conhecida há 1 século.

“Durante os períodos de jejum, os triglicerídeos são divididos em ácidos graxos e glicerol, que são usados para energia. O fígado converte ácidos graxos em corpos cetônicos, que fornecem uma importante fonte de energia para muitos tecidos, especialmente o cérebro, durante o jejum. No estado alimentado, os níveis sanguíneos dos corpos cetônicos são baixos (…).”

Desde os experimentos clássicos de jejum de Cahill nos anos 1950-70, é sabido que os corpos cetônicos são os principais combustíveis do cérebro quando não se está consumindo glicose. O mesmo ocorre, obviamente, em uma dieta cetogênica.

A mudança metabólica do uso da glicose como fonte de combustível para o uso de ácidos graxos e corpos cetônicos resulta em uma taxa de troca respiratória reduzida (a proporção de dióxido de carbono produzido por oxigênio consumido), indicando maior flexibilidade metabólica e eficiência energética a partir de ácidos graxos e corpos cetônicos.”

Mais um trecho que, corretamente, aponta as vantagens de acionar o interruptor metabólico no sentido do uso de gordura e corpos cetônicos. Desnecessário dizer que o mesmo paragrafo poderia ter sido escrito com referência a uma dieta low-carb.

Corpos cetônicos não são apenas combustível usado durante períodos de jejum; são moléculas potentes de sinalização com efeitos importantes nas funções das células e órgãos. Os corpos cetônicos regulam a expressão e a atividade de muitas proteínas e moléculas que influenciam a saúde e o envelhecimento. (…) Ao influenciar essas principais vias celulares, os corpos cetônicos produzidos durante o jejum têm efeitos profundos no metabolismo sistêmico. Além disso, os corpos cetônicos estimulam a expressão do gene para o fator neurotrófico derivado do cérebro, com implicações para a saúde do cérebro e distúrbios psiquiátricos e neurodegenerativos.”

Tudo absolutamente correto! Mas você não precisa estar em jejum para isso – basta restringir carboidratos.

Segue o texto:

“Quanto do benefício do jejum intermitente se deve à troca metabólica e quanto à perda de peso? Muitos estudos indicaram que vários dos benefícios do jejum intermitente são dissociados de seus efeitos na perda de peso. Esses benefícios incluem melhorias na regulação da glicose, pressão arterial e freqüência cardíaca; a eficácia do treinamento de resistência; e perda de gordura abdominal.

Mais uma vez, estudos com dieta cetogênica mostram algo idêntico: os benefícios, porquanto incluam sem dúvida a perda de peso, não dependem exclusivamente dessa perda de peso.

“Em contraste com as pessoas de hoje, nossos ancestrais humanos não consumiam três refeições grandes e espaçadas regularmente, além de lanches, todos os dias, nem viviam uma vida sedentária. Em vez disso, estavam ocupados em adquirir alimentos em nichos ecológicos nos quais as fontes de alimentos eram escassamente distribuídas. Com o tempo, o Homo sapiens passou por mudanças evolutivas que apoiaram a adaptação a esses ambientes, incluindo alterações cerebrais que permitiram criatividade, imaginação e mudanças físicas e de linguagem que permitiram aos membros da espécie percorrer grandes distâncias com seu próprio poder muscular para perseguir presas.”

Este parágrafo em si já é sensacional. Porém, substitua acima o trecho “três refeições grandes e espaçadas regularmente, além de lanches, todos os dias” por “grandes quantidades de carboidratos” e releia. Entenda, caro leitor, que as adaptações evolutivas ao jejum e à restrição de carboidratos são fundamentalmente as mesmas.

A seguir, um trecho longo no qual, mais uma vez, se você substituísse jejum intermitente por dieta cetogênica, o texto permaneceria verdadeiro: 

Em animais e humanos, a performance física é melhorada com o jejum intermitente. Por exemplo, apesar de terem peso corporal semelhante, os camundongos mantidos em jejum em dias alternados têm melhor resistência à corrida do que os que têm acesso ilimitado à comida. O equilíbrio e a coordenação também são aprimorados em animais com regimes de alimentação com restrição de tempo diário ou jejum de dias alternados. Homens jovens que jejuam diariamente por 16 horas perdem gordura enquanto mantêm a massa muscular durante 2 meses de treinamento de resistência. Estudos em animais mostram que o jejum intermitente melhora a cognição em vários domínios, incluindo memória espacial, memória associativa e memória de trabalho. O jejum de dias alternados e a restrição calórica diária revertem os efeitos adversos da obesidade, diabetes e neuroinflamação na aprendizagem e memória espaciais. Em um ensaio clínico, adultos mais velhos em regime de restrição calórica a curto prazo melhoraram a memória verbal. Em um estudo envolvendo adultos acima do peso com comprometimento cognitivo leve, 12 meses de restrição calórica levaram a melhorias na memória verbal, função executiva e cognição global. Mais recentemente, um grande ensaio clínico randomizado, multicêntrico, mostrou que 2 anos de restrição calórica diária levaram a uma melhora significativa na memória de trabalho. Certamente, é necessário realizar estudos adicionais de jejum e cognição intermitentes em idosos, principalmente dada a ausência de terapias farmacológicas que influenciem o envelhecimento cerebral e a progressão de doenças neurodegenerativas.

Sobre jejum e câncer:

“Pensa-se que o jejum intermitente prejudique o metabolismo energético das células cancerígenas, inibindo seu crescimento e tornando-as suscetíveis a tratamentos clínicos. Os mecanismos subjacentes envolvem uma redução da sinalização através dos receptores de insulina e hormônio do crescimento e um aumento dos fatores de transcrição FOXO e NRF2.”

O mesmo ocorre com dietas cetogênicas.

Sobre doenças neurodegenerativas:

“Os dados epidemiológicos sugerem que a ingestão excessiva de energia, principalmente na meia-idade, aumenta os riscos de derrame, doença de Alzheimer e doença de Parkinson. Há fortes evidências pré-clínicas de que o jejum de dias alternados pode atrasar o início e a progressão dos processos da doença em modelos animais da doença de Alzheimer e da doença de Parkinson. O jejum intermitente aumenta a resistência ao estresse neuronal através de múltiplos mecanismos, incluindo o reforço da função mitocondrial e o estímulo à autofagia, produção de fatores neurotróficos, defesas antioxidantes e reparo do DNA. Além disso, o jejum intermitente aumenta a neurotransmissão inibitória GABAérgica, que pode prevenir convulsões e excitotoxicidade.”

Não há uma única frase nesse parágrafo que não permaneceria verdadeira se “jejum” fosse trocado por “dieta cetogênica”.

A seguir, vem um trecho muito interessante, no qual os autores explicam que não há dúvidas sobre os benefícios, e que a questão recai sobre a DIFICULDADE DE IMPLEMENTAÇÃO: 

Apesar das evidências dos benefícios à saúde do jejum intermitente e de sua aplicabilidade a muitas doenças, existem impedimentos à adoção generalizada desses padrões alimentares na comunidade e pelos pacientes. Primeiro, uma dieta de três refeições com lanches todos os dias é tão arraigada em nossa cultura que uma mudança nesse padrão alimentar raramente será contemplada por pacientes ou médicos. A abundância de alimentos e o amplo marketing nos países desenvolvidos também são grandes obstáculos a serem superados.Segundo, ao mudar para um regime de jejum intermitente, muitas pessoas experimentam fome, irritabilidade e capacidade reduzida de se concentrar durante períodos de restrição alimentar. No entanto, esses efeitos colaterais iniciais geralmente desaparecem dentro de 1 mês, e os pacientes devem ser avisados desse fato.”

Chegamos então ao ponto crucial: os benefícios atribuídos ao jejum são largamente obtidos em uma dieta cetogênica. Se a dificuldade (que não é pouca) de praticar o JEJUM não é obstáculo para que os autores do artigo do NEJM advoguem seu emprego por médicos, por que tantas pessoas ainda falam que o problema de uma dieta low-carb é a dificuldade de empregá-la? Dos sintomas listados acima, ao menos a fome não existe em uma dieta cetogênica. Dieta cetogênica é o jejum, sem a fome e o risco de desnutrição. Quem diz isso não sou eu. Isso foi descoberto há cerca de 100 anos! Em uma espetacular série de artigos sobre a origem da dieta cetogênica, Travis Christofferson e Dominic D’Agostino explicam essa conexão. O que se segue são trechos dessa série:

“Charles Howland, era um rico advogado corporativo de Nova York. Chocado que a cura para a epilepsia de seu filho estivesse tão longe da medicina tradicional, Howland ficou obcecado com uma única pergunta: por que o jejum curou seu filho de epilepsia?” (…) “. Comparando os exames de crianças epiléticas antes e depois de um jejum de 4 dias “Ele monitorou cuidadosamente todas as variáveis bioquímicas conhecidas enquanto elas passavam para o estado de jejum. Ele coletou e analisou exaustivamente sua urina e sangue com minuciosos detalhes – da perda de água ao equilíbrio de eletrólitos, equilíbrio ácido / base e a curiosa menção à estranha ocorrência de duas cetonas, beta-hidroxibutirato e acetoacetato, no plasma e na urina do paciente em jejum. Para Gamble, os compostos eram um mistério. Ele especulou que eles não tinham sentido; o subproduto da “oxidação incompleta de gorduras” – nada mais que um escapamento inútil expelido quando os pacientes começaram a queimar gordura.” (…) “Enquanto Woodyatt estava expondo fissuras em preconceitos alimentares (no que diz respeito ao diabetes), no verão de 1921, a 380 quilômetros a nordeste de Chicago na clínica Mayo em Rochester Minnesota, um médico chamado Russell Wilder publicou três parágrafos curtos no The Clinical Bulletin. A carta descrevia a mesma epifania na dieta que Woodyatt – manter um estado análogo ao do jejum através da substituição de carboidratos por gordura – mas Wilder imaginou tratar uma doença diferente: epilepsia. “Ocorreu-nos que o benefício do procedimento do Dr. Geyelin pode depender da cetonemia que deve resultar de tais jejuns, e que resultados possivelmente igualmente bons poderiam ser obtidos se uma cetonemia fosse produzida por outros meios”, escreveu Wilder. Mas Wilder deu um salto adicional de lógica. Woodyatt havia sugerido o protocolo alimentar simplesmente como um meio de contornar o metabolismo prejudicado dos carboidratos dos diabéticos. Como o jejum, ou a manutenção dietética do jejum, funcionava para controlar as convulsões, exigia outra explicação. Wilder argumentou que talvez houvesse mais – sugerir que as cetonas geradas a partir da dieta podem ter um significado não reconhecido. Afinal, eles eram a única variável metabólica compartilhada entre o estado de jejum e uma dieta baixa em carboidratos e rica em gorduras. Até agora, os pesquisadores assumiram que as cetonas não eram nada além de resíduos metabólicos prejudiciais, mas agora, por causa de Wilder, essa suposição foi questionada. Talvez tenham sido as próprias cetonas que puxavam as alavancas metabólicas dentro do cérebro dos epiléticos em jejum. Wilder estava ansioso para testar sua teoria. “Portanto, propõe-se tentar o efeito de tais dietas cetogênicas em uma série de epiléticos”.

O resto é história. Hoje, a dieta cetogênica é amplamente aceita para o tratamento de epilepsia, bem como na remissão do diabetes tipo 2.

***

O artigo do NEJM é, sem dúvida, um marco para alçar o jejum intermitente de “fringe” para “mainstream”. Não surgiu nenhuma nova evidência, mas agora o JI foi UNGIDO pelo New England, de modo que deixa de ser algo alternativo (muito embora as evidências já tenham cerca de 100 anos).

O que muitos não perceberam é que, sem querer, e a reboque, o artigo empresta prestígio à dieta cetogênica. E aí vem a pergunta: por que é mais palatável para o mainstream falar sobre jejum do que sobre low-carb?

Ao meu ver, trata-se de dissonância cognitiva. A demonização, por décadas, da abordagem low-carb – que tem muito, mas MUITO mais evidência de alto nível publicada do que o jejum – tornaria bem mais constrangedora uma revisão narrativa no New England propagando os benefícios de uma dieta cetogênica do que uma sobre jejum. Além disso, o jejum é politicamente agnóstico no que diz respeito ao Zeitgeist vegano em que vivemos, ao contrário da cetogênica, cuja aplicação é muito mais fácil com o emprego de alimentos de origem animal.

O mundo, nesta nova década, já está pronto para aceitar que cetose é uma coisa boa. Desde que não seja através de low-carb, é claro.

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