O Salmão e o Biscoito

crédito imagem: Alice Vieira Souto

Arte by Alice Vieira Souto

Muitas vezes eu já repeti por aqui o velho adágio de que o ótimo não pode ser o inimigo do bom. Que a carne mais industrializada (ao menos para quem é diabético, ou pretende usar low-carb como estratégia) é melhor do que o pão mais integral e orgânico; que sal do Himalaia não acrescenta em nada em relação ao sal refinado comum (veja aqui); que não se deve cair nas modinhas de super-alimentos.

Pois bem, algum tempo atrás recebi um link de uma coluna de um jornal importante no qual se dizia que o salmão normalmente consumido nos restaurantes japoneses brasileiros era basicamente um alimento ultraprocessado. O articulista falava inclusive que não era muito diferente de biscoito recheado – uma afirmação bastante bizarra.

E por que o salmão seria tão ruim quanto um biscoito? Porque praticamente todo o salmão consumido no Brasil é importado do Chile, onde é criado por piscicultura (em fazendas marinhas) e alimentado com ração à base de soja e milho, dizia o texto. Como a ração é ultraprocessada, o salmão seria basicamente um biscoito. Ao detalhar o problema, explicava-se que o salmão selvagem adquire seus ácidos graxos ômega-3 de cadeia longa (EPA e DHA) comendo algas mas que, ao consumir ração à base de soja e milho, passaria a ter mais ômega-6 do que ômega-3. Ômega-6 seria inflamatório. Logo, biscoito.

Já expliquei aqui no blog o conceito de ciência da fada do dente. A ideia de que, antes de explicar os detalhes de um fenômeno, sempre convém antes saber se ele é REAL. Não me refiro a saber se salmão é realmente igual a biscoito, mas se, afinal, é verdade que salmão de piscicultura não tem ômega-3, ou que tem muito pouco, e que tem mais ômega-6 do que ômega-3?

Vamos ver a composição do salmão selvagem versus o biscoito (digo, o salmão de piscicultura), segundo o banco de dados do USDA:

Salmão Selvagem:

Ou seja, salmão selvagem tem 220 mg de ômega-6 e 2.586 mg ômega-3 em cada 100g

Biscoito recheado Salmão de piscicultura

Ou seja, salmão de piscicultura tem 666 mg de ômega-6 e 2.260 mg ômega-3 em cada 100g. Assim, embora seja correto afirmar que, tecnicamente, o salmão de piscicultura tem mais ômega-6 do que o salmão selvagem, é INCORERTO afirmar que tenha mais ômega-6 do que ômega-3. Aliás, a quantidade de ômega-3 é praticamente a mesma, e há MUITO mais ômega-3 do que ômega 6. Nada mal para um biscoito recheado.

Indo mais adiante, vamos investigar detalhadamente a composição das gorduras de ambos? Para isso, você precisa saber a nomenclatura: DHA, o ômega-3 que é tido como mais importante para o cérebro, é o 22:6(n-3); EPA, o ômega-3 que é tido como mais importante por suas ações anti-inflamatórias, é o 20:5(n-3). 18:3(n-3) é o ALA, que é o ômega-3 que nós não conseguimos usar direito, aquele que se encontra em plantas como linhaça e canola; e 18:3 é o ácido linoleico, que perfaz a maior parte do azeite de oliva.

Salmão selvagem:

Salmão biscoito de piscicultura:

Ironia das ironias, o salmão que foi comparado ao biscoito porque teria mais ômega-6 do que ômega-3 (como se isso realmente fosse o que diferencia o biscoito recheado de um peixe), não apenas tem MUITO mais ômega-3 do que ômega-6, mas na verdade tem mais DHA do que o salmão selvagem (ao menos nominalmente e nessa tabela, pois obviamente irá variar de uma amostra para outra). Como isso é possível? Porque o salmão é carnívoro, e portanto há peixes na composição da ração, e tais peixes por sua vez contêm ômega-3 que obtiveram de algas.

Michael Pollan, em seu excelente livro Em Defesa da Comida, explica o conceito de nutricionismo, a visão reducionista da nutrição. Pensamos em uma cenoura como beta-caroteno, em laranja como vitamina C, em salmão como ômega-3. Ignoramos o fato de que uma cenoura tem mais de mil compostos diferentes, e que sua complexidade irredutível é muito, mas muito mais do que beta-caroteno. Se ter mais ômega-6 do que ômega-3 fosse o grande problema, nozes, castanhas e amêndoas seriam veneno (têm muito mais ômega-6 do que ômega-3), e deveríamos ao invés disso beber óleo de linhaça, que tem bem mais ômega-3 do que ômega-6 (não faça isso!).

Observe que, nesta postagem, não estou entrando nas questões ecológicas da piscicultura, que com certeza merecem atenção, ou no fato de que a coloração do salmão de piscicultura vem de pigmentos (idênticos aos naturais) acrescentados à ração. Estou apenas sublinhando a bizarra comparação do salmão com o biscoito, e a consequente elitização das dietas. Veja, a pessoa já faz um esforço tremendo para largar alimentos ultraprocessados e altamente viciantes e hiperpalatáveis, poupa dinheiro para melhorar a sua alimentação, compra salmão para comer com legumes refogados, apenas para descobrir que – segundo os entendidos – é tudo em vão, porque o salmão não é selvagem e do Alaska, o sal não é do Himalaia, e os legumes não são orgânicos? Sabe o que essa pessoa fará? Vai comprar biscoito recheado, pois se é a mesma coisa, o biscoito é mais gostoso e muito mais barato.

As estratégias low-carb são altamente eficazes, com dezenas de ensaios clínicos randomizados mostrando emagrecimento, reversão de pré-diabetes, remissão de diabetes tipo 2, cura de esteatose, etc. E, nesses estudos que demonstraram tamanho benefício, os peixes não eram selvagens, as carnes não eram grass fed, os frangos não eram free-range, e os embutidos não eram artesanais.

Low-carb tem que ser SIMPLES, feita com comida de verdade normal e acessível. Não pode ser um conjunto bizantino de regras. Low-carb é BAIXO CARBOIDRATO, não ALTA GASTRONOMIA. 

O nutricionismo ajudou a indústria a convencer você de que é possível reduzir algo inconcebivelmente complexo (comida de verdade) aos seus componentes “principais” (macronutrientes, vitaminas, minerais, etc). Então, pega farinha refinada, açúcar refinado, gordura vegetal hidrogenada, acrescenta algumas vitaminas sintéticas e isso agora é tão bom quanto comida de verdade? Não, você dirá! Afinal, comida de verdade é muito, mais muito mais complexa. E é esse abismo que separa um salmão de um biscoito.

Há diferenças entre salmão selvagem e salmão de piscicultura? Certamente. Mas não são diferenças da mesma magnitude astronômica que separa um peixe de um biscoito recheado! Se seu orçamento permite comprar produtos melhores, acho ótimo. Mas o salmão segue sendo um alimento saudável e não processado, mesmo que tenha sido alimentado com ração em fazendas marinhas, e o mesmo vale para o frango e outros animais.

É importante lembrar também que a realidade tem primazia sobre os mecanismos. Se você olha para um salmão do sushi e vê apenas astaxantina sintética, ração com ômega-6, mercúrio e antibióticos, você provavelmente está sofrendo de algum grau de ortorexia. Esqueça por um momento esse monte de mecanismos assustadores e me diga o seguinte: acaso não é verdade que todos os ensaios clínicos randomizados e os estudos observacionais mostram bons desfechos de saúde com o consumo de peixe? Pois bem: nestes estudos, os peixes não eram selvagens, pescados um a um com vara, em riachos intocados. Estamos falando de peixe do mercado mesmo. A realidade – que o consumo de peixe normal, do mercado – está associado a bons desfechos – tem primazia sobre os mecanismos pelos quais deveria fazer bem ou mal. Antes de se perder nos detalhes, é preciso ver o todo: não tomar a árvore pela floresta.

Ainda hoje estava atendendo uma paciente que mora em uma cidade do interior. Ela queixava-se de que não tinha acesso a produtos artesanais, orgânicos em ungidos pelos influenciadores digitais. Vocês não imaginam o alívio e felicidade que ela teve quando eu expliquei que não era necessário. Que low-carb era simples: comida de verdade – plantas e bichos – feira e açougue – não processados ou minimamente processados, pobres em açúcar e amido. Só isso. Expliquei que, dentro desses parâmetros, buscasse a melhor qualidade que coubesse no seu orçamento e estivesse disponível em sua localidade.

Não se engane: cada vez que você desestimula o consumo de um peixe de piscicultura alegando que ele é análogo ao biscoito, você não está estimulando o consumo de peixes selvagens; você está estimulando o consumo do biscoito.

***

Eu entendo que, por trás desse tremendo equívoco, havia boas intenções (as mesmas que pavimentam, juntamente com a plausibilidade biológica, o caminho para inferno). O objetivo era dizer: “você não precisa consumir salmão criado em fazendas marinhas, que causa danos ecológicos lá no Chile, usa montes de combustíveis fósseis para chegar aqui, quando temos tantos peixes que podem ser localmente obtidos pela pesca sustentável e local em nosso país”. EU CONCORDO com isso. Mas então, diga-se isso. Eu nunca vou concordar que os fins justificam os meios. Não minta nem distorça a realidade para avançar a sua agenda. Não diga que o salmão de piscicultura faz mal, pois não faz. Não diga que o salmão é biscoito, pois não é. Faça campanha para reduzir as importações, para evitar práticas ecologicamente incorretas e não-sustentáveis, e favorecendo a indústria local. Aí sim, estaremos no mesmo barco.

Área de Membros Ciência Low-Carb

Acesso a conteúdo
premium exclusivo