No último dia 13 de setembro de 2021, foi publicado um artigo no American Journal of Clinical Nutrition que está dando o que falar:
A primeira coisa que chama atenção é a lista improvável de autores. O autor principal é David Ludwig, o cientista acadêmico que mais pesquisa a teoria carboidrato-insulina nos dias de hoje. Mas QUEM imaginaria que encontraríamos em um mesmo paper Gary Taubes (o jornalista autor do livro Por Que Engordamos, que me fez começar a estudar sobre low-carb há 10 anos) e Walter Willett, o ex-chefe da Escola de Saúde Pública de Harvard, defensor arraigado da epidemiologia nutricional e grande cruzado contra a carne vermelha e a gordura saturada? Aliás, um dos grandes pesquisadores que exonerou a gordura saturada (em quantidades normais) na dieta, Ronald Krauss, também é co-autor. Ícones da pesquisa com low-carb como Jeff Volek, Eric Westman e William Yancy também compõem a ilustre nominata, juntamente com Cara Ebbeling, que há mais de uma década pesquisa a vantagem metabólica da abordagem low-carb. Que pessoas de background tão distinto tenham unido forças para questionar o paradigma vigente da obesidade é algo realmente sem precedentes, e uma forte sugestão de que está havendo uma acomodação das placas tectônicas no mundo da nutrição.
O antigo modelo carboidrato-insulina – aquele que afirmava que a totalidade da explicação da obesidade devia-se ao efeito dos alimentos no hormônio insulina, ou seja, que bastaria comer coisas que não elevam a sua insulina para que o emagrecimento acontecesse – já não era levado a sério por muita gente, inclusive aqui neste blog.
O modelo atualizado e revitalizado é bem mais complexo – o que o torna seguramente mais próximo da realidade biológica. A figura abaixo resume o modelo carboidrato-insulina versão 2021:
Eu sugiro fortemente que se leia o artigo original, para poder apreciar a totalidade da figura acima. Mas, para mim, a principal contribuição da teoria carboidrato-insulina é colocar a regulação do tecido adiposo no CENTRO do esquema. Observe que o armazenamento de gordura está no centro, e, à direita, como CONSEQUÊNCIA, está a redução do gasto energético e o aumento do consumo calórico, levando à obesidade. Para mim, os detalhes são menos importantes do que essa epifania: o QUÊ você come afeta a regulação do tecido adiposo, e isso por sua vez pode afetar o QUANTO você come, e como o seu corpo gasta as calorias. A seta da causalidade, neste caso, seria invertida.
No modelo C-I, o efeito crucial da dieta é metabólico, ao influenciar o particionamento do substrato. Ou seja, o destino final das calorias que você consome (armazenamento versus uso como fonte de energia) depende, ao menos em parte, da COMPOSIÇÃO dessa dieta.
A concepção baseada exclusivamente em balanço calórico (“tudo que importa é quantas calorias você consome e quantas você gasta”) é repleta de tautologias. O que é uma tautologia? É dizer a mesma coisa de formas diferentes, é ser completamente óbvio. Por exemplo: dizer que alguém engordou por comer mais do que gasta é tão tautológico quanto dizer que alguém está com febre porque gerou mais calor corporal do que é capaz de irradiar. Essa informação é, ao mesmo tempo, verdadeira e inútil, visto que não diz nada a respeito da CAUSA. Você quer saber o motivo, a causa pela qual o indivíduo está com febre. E o mesmo aplica-se ao acúmulo de gordura nos adipócitos. A seguir, alguns pontos que gostaria de destacar no artigo – que, repito, sugiro que você leia na íntegra:
A questão da palatabilidade: será que engordamos pois as comidas são simplesmente muitos gostosas? Claramente as pessoas tendem a comer mais dos alimentos que são hiperpalatáveis no curto prazo. No entanto, há pouca evidência de que o sobreconsumo crônico deva-se a essa variável apenas. Em roedores para os quais se oferecem duas dietas, uma hiperpalatável e a outra não, há clara preferência pela hiperpalatável, mas não há hiperconsumo nem ganho de peso, uma vez que se controle para a composição de macronutrientes.
Em humanos, uma injeção de insulina associada com hipoglicemia leve ativa áreas no sistema límbico associadas com o desejo por alimentos calóricos, ainda mais se forem altos em carboidratos. Assim, fica a dúvida: são os alimentos hiperpalatáveis que fazem com que se coma mais, ou definimos como hiperpalatáveis aqueles alimentos que desejamos quando a insulina está atuando em nosso cérebro? Em outras palavras, a definição de alimento hiperpalatável também é tautológica – é o alimento que se tende a consumir mais quando se ganha peso. Não é necessariamente uma causa.
A questão do aumento do “set point” de peso nos últimos 50 anos: o set point é o peso que nosso corpo naturalmente defende. Se você perde peso, ele tenta voltar para o set point. Importante – se você ganha peso, o corpo tende a voltar também para o set point. A questão é que o set point médio da população aumentou de 75 para 90Kg dos anos 1960 para cá. A teoria do balanço calórico não fornece uma explicação adequada para esse fenômeno, enquanto a hipótese C-I, por considerar o efeito metabólico (e não apenas calórico) da composição da dieta, ajuda a entender a desregulação dos sistemas biológicos que, quando normais, deveriam ser uma força contrária ao aumento progressivo desse set point.
A hipótese carboidrato-insulina (C-I) como uma explicação fisiológica para a pandemia de obesidade: A hipótese C-I propõe uma reversão da seta da causalidade. No LONGO prazo, um balanço calórico positivo não seria a causa do acúmulo de gordura; ao contrário, uma alteração no particionamento dos substratos (ou seja, na determinação, de natureza BIOLÓGICA e não física, do destino dos nutrientes – tecido adiposo ou outros tecidos?) favorecendo o armazenamento de gordura causaria o balanço calórico positivo compensador. O consumo de dietas de alta carga glicêmica (açúcar, farináceos, amidos simples) aumenta a secreção de insulina, reduz a secreção de glucagon, e produz uma resposta de incretinas na qual domina o GIP (peptídeo insulinotrópico dependente de glicose). Não vou entrar em detalhes aqui (veja a figura, e leia o artigo), mas todas essas alterações regulatórias favorecem o armazenamento de gordura e dificultam sua liberação pelo adipócito. Três horas após uma refeição rica em carga glicêmica, estas respostas hormonais seguem dificultando a liberação de gordura dos adipócitos e de glicose pelo fígado, produzindo uma queda na energia disponível no sangue, que produz fome.
Esta reversão da causalidade, embora pareça uma ideia muito ousada quando se fala em obesidade, é óbvia em outros estados fisiológicos. O crescimento de uma criança leva ao aumento do consumo calórico em relação ao gasto calórico, mas ninguém imaginaria que a CAUSA do crescimento é comer mais (muito embora seja possível, como no caso da obesidade, impedir o crescimento comendo menos).
Se o modelo C-I é correto, forçar a restrição calórica no contexto de uma dieta de alta carga glicêmica não reduziria a predisposição ao acúmulo de gordura (não significa que não emagreça – emagrece, é óbvio, mas emagrece no contexto de uma predisposição no sentido contrário); e também, por óbvio, não reduziria a fome. Em contraste, no contexto de uma dieta low-carb, haveria redução na razão insulina/glucagon, aumento da lipólise e da oxidação das gorduras, resultando em redução espontânea do consumo de comida.
Como dito acima, uma dieta low-carb não afeta, do ponto de vista hormonal, apenas a insulina. Em low-carb, há redução de insulina, aumento de glucagon e a incretina dominante passa a ser a GLP-1 (incretinas são hormônios intestinais que, hoje sabemos, são muito importantes tanto na resposta pancreática como também na regulação central do apetite). O GLP-1 retarda o esvaziamento gástrico dando uma sensação de plenitude, e atua diretamente no cérebro reduzindo o apetite. Medicamentos extremamente eficazes para a redução de peso como Ozempic, Saxenda e Victoza são análogos do GLP-1. Low-carb poderia ser visto, dessa forma, como um Ozempic natural.
Muitas vezes mede-se a resistência à insulina no corpo inteiro, o que obscurece os efeitos em diferentes tecidos. Experimentos em ratos indicam que a infusão de insulina leva ao aumento da utilização de glicose e da síntese de gordura nos adipócitos, enquanto os músculos desenvolvem resistência a insulina – ou seja, o tecido adiposo segue sensível à insulina. Assim, dietas repletas de carboidratos, que mantêm níveis elevados de insulina em boa parte do tempo, tendem a produzir resistência à insulina em tecidos como o músculo e o fígado, mas NÃO no tecido adiposo. Não bastasse isso, a insulina reduz a proteína desacopladora (UCP-1), um mecanismo pelo qual as mitocôndrias aumentam o gasto calórico para dissipar excessos. Assim, a insulina não apenas favorece o acúmulo de gordura, mas também reduz o gasto calórico do organismo.
Camundongos nos quais o receptor de insulina foi geneticamente eliminado do tecido adiposo ficam magros, sem que para isso comam menos, e ficam protegidos contra anormalidades metabólicas com a idade. Ao contrário, a eliminação genética dos mesmos receptores nos músculos leva ao acúmulo de gordura no animal. Isso sugere que o particionamento das calorias e nutrientes é fortemente regulado por fatores endócrinos, dentre os quais a insulina – algo que depende muito da quantidade de carboidratos na dieta, não apenas de calorias.
Alguns dos experimentos mais impressionantes para que se possa apreciar a teoria C-I são feitos em animais, pois questões de natureza ética e prática impedem sua realização em humanos. Em roedores, o tratamento com insulina induz o aumento do ingestão calórica e o ganho de gordura mas – incrível – esses dois efeitos são dissociáveis! Pesquisadores trataram ratos com insulina mas mantiveram o consumo de ração inalterado. Mesmo assim, os animais engordaram. Após 4 semanas, havia mais gordura e menos massa magra nas carcaças dos animais. Ou seja, a insulina determinou o particionamento preferencial das calorias para o tecido adiposo. Os animais gostariam de comer mais de forma compensatória, mas não podiam. O corpo então sacrificou OUTROS tecidos em prol da gordura. Consistente com tal achado, roedores com redução geneticamente determinada de insulina apresentam maior gasto calórico e são protegidos contra obesidade induzida por dieta.
Em humanos, é bem conhecido que drogas para diabetes que aumentam a insulina (ou sua sensibilidade no tecido adiposo) induzem ganho de peso, e drogas que reduzem a insulina favorecem a perda de peso. Humanos com diabetes tipo 1 que intensificam seu tratamento com insulina por 2 meses apresentam ganho de gordura corporal ao mesmo tempo em que reduzem o gasto calórico (indicando que o efeito não é totalmente atribuível ao aumento de consumo calórico). Por fim, variantes genéticas associadas a aumento da secreção de insulina predizem ganho de peso.
Ainda em animais, dietas de alta carga glicêmica aumentam a adiposidade independentemente do consumo calórico (e, simultaneamente, ocorre redução do gasto energético). Veja, os animais comeriam mais se pudessem. E, se alguém observasse, seria tentado a dizer que a CAUSA do ganho de peso era o comer a mais. O acúmulo de gordura, induzido por efeitos fisiológicos e hormonais, ao menos neste modelo, foi causal, e o comer a mais teria sido apenas compensatório. Em não podendo comer a mais, o corpo dos ratinhos passou a gastar menos energia para compensar a energia que foi aprisionada nos adipócitos. As leis da termodinâmica explicam que alguma compensação precisa ocorrer para que a conservação de energia seja mantida. Mas não está escrito nas leis físicas do universo QUAL compensação. Isso é uma decisão da biologia, não da física. Dietas low-carb tendem, ao contrário, a induzir um maior gasto calórico no LONGO prazo; da mesma forma, indivíduos com maiores secreções de insulina parecem ser particularmente suscetíveis às respostas metabólicas adversas e ao ganho de peso com dietas de alta carga glicêmica.
Talvez um dos fatos mais fascinantes narrados no artigo (algo que é novo para mim) diz respeito a um dos modelos animais mais clássicos de obesidade – o chamado modelo de obesidade hipotalâmica ventromedial. Há muitas e muitas décadas é sabido que uma lesão (espontânea ou provocada) na região ventromedial do hipotálamo produz um apetite voraz e um rápido desenvolvimento de obesidade nos animais de laboratório. Mas – e isso é notável! – o particionamento das calorias preferencialmente para o tecido adiposo e a redução do gasto calórico ocorrem mesmo que se impeça o aumento do consumo calórico! Ou seja, diferentemente do que eu supunha, os efeitos não são exclusivamente (e talvez nem mesmo primariamente) sobre o apetite. Até mesmo aqui, pode ser que o aumento descontrolado do apetite seja compensatório, pelo fato de que, através do sistema nervoso autônomo, a lesão hipotalâmica altere primariamente o particionamento das calorias no sentido do armazenamento. Incrivelmente, a resistência à insulina que surge após a lesão da região ventromedial do hipotálamo PRECEDE o ganho de peso. Da mesma forma, o ganho de gordura e a redução da atividade física ocorrem nos animais que sofreram a lesão da região ventromedial do hipotálamo mesmo quando a quantidade de comida é mantida igual à consumida por roedores no grupo controle.
O artigo discute, a seguir, algumas das críticas ao modelo C-I da obesidade. Uma das críticas diz respeito ao fato de que muitos dos genes relacionados à obesidade mapeiam para o cérebro. Mas, como vimos acima, o fato de um gene ter efeito sobre o cérebro não descarta que o cérebro atue sobre a regulação do tecido adiposo e que isso, indiretamente, produza as mudanças de comportamento (apetite, atividade física, metabolismo). Um exemplo? Camundongos ob/ob, nos quais uma mutação impede a produção do hormônio leptina, engordam rapidamente e atingem 3 vezes o peso de camundongos normais. Sabemos que a leptina atua no cérebro informando ao mesmo sobre a quantidade de gordura corporal. Assim, nos camundongos ob/ob, o cérebro imagina que o animal não tem gordura corporal nenhuma (pois não há leptina), o que o faria engordar pelo aumento descontrolado do apetite. Mas você sabia que camundongos ob/ob submetidos à restrição calórica também engordam, mesmo sem poder comer mais? Eu também não sabia! E se, na verdade, tais animais tivessem é um forte particionamento das calorias para o tecido adiposo, e a fome fosse uma consequência? Como sempre, na teoria C-I, (des)regulação do tecido adiposo é o fenômeno central; e pensar sobre essa perspectiva é, no mínimo, fascinante.
Outra crítica comum é a de que a teoria C-I afirma que, em condições de insulina alta, haveria carência de energia circulante, o que faz com que a pessoa tenda a comer mais para compensar. Porém, o que se observa é o contrário – indivíduos obesos frequentemente têm glicose e gordura (triglicerídeos) elevados no sangue, e não baixos. Com efeito, há sobra de energia. Acontece que os mecanismos causais podem ser evidentes apenas durante as mudanças dinâmicas, mas não depois de se atingir a compensação e o reestabelecimento da homeostase. As concentrações reduzidas de combustíveis circulantes foram documentadas no início do desenvolvimento da obesidade (bem como algumas horas após o consumo de uma refeição de alta carga glicêmica). Porém, com o tempo, o corpo desenvolve resistência à insulina (justamente como um mecanismo de defesa contra o efeito continuado de uma razão insulina/glucagon elevada); então, e apenas então, já com resistência à insulina, ocorre uma elevação compensatória dos níveis de combustíveis (glicose, triglicerídeos) em circulação. Mas, como a situação mais extrema do diabetes tipo 2 exemplifica, de nada adianta ter níveis muito elevados de glicose e triglicerídeos no sangue quando os tecidos (com exceção da gordura) estão tão resistentes à insulina que não os conseguem utilizar adequadamente. Do ponto de vista da célula, ocorre o “internal starvation”: em meio à abundância, a célula “passa fome”.
Outra crítica comum consiste em citar estudos em roedores com dietas de alta gordura. Já tratei disso inclusive aqui no blog (aqui e aqui, por exemplo). Acontece que é sabido que muitas das dietas de “alta gordura” empregadas em estudos de roedores são, na verdade, de alta gordura E de alto carboidrato. Mas, talvez ainda mais relevante, altas quantidades de gordura saturada causam uma disfunção ESPECIFICAMENTE EM ROEDORES caracterizada por hiperinsulinemia, resistência à insulina nos músculos e fígado e inflamação do hipotálamo. Tais fenômenos simplesmente não são observados em seres humanos nos ensaios clínicos randomizados de dietas low-carb. Assim, o desenvolvimento de hiperinsulinemia (seja através de uma dieta com baixa gordura e alto teor de açúcar em um humano, ou de alto teor de gordura saturada em um roedor) leva ao particionamento das calorias para o adipócito, provocando aumento de peso e aumento compensador do apetite, compatível com a teoria C-I. O que muda, em diferentes espécies, é o tipo de dieta que induz a hiperinsulinemia.
Uma das críticas importantes sobre a teoria C-I da obesidade é que existe evidência de que, em uma dieta cetogênica low-carb com alta gordura, não há redução do consumo calórico (foi documentado inclusive aumento em estudo de curta duração). Isso deveu-se à alta densidade energética da dieta (mais calorias por grama de comida, quando há alta gordura). Mas, argumentam os autores, tal efeito de curto prazo não pode ser extrapolado para o longo prazo. E, no longo prazo, os ensaios clínicos randomizados mostram que dietas low-carb, mesmo com mais gordura e maior densidade calórica, produzem maior perda de peso. Na mesma linha, argumenta-se, também baseado em estudos de curta duração (menos de 2 semanas e meia), que não se observa o aumento espontâneo do gasto calórico que a teoria C-I prediz que deveria haver em low-carb. Estudos mais longos (5 meses), porém, evidenciam um aumento do gasto energético em low-carb. A lição é não extrapolar para o mundo real conclusões baseadas em estudos muito curtos: adaptações metabólicas levam tempo.
Uma das críticas mais comuns (e tolas, na minha opinião) refere-se ao fato de que, no longo prazo, participantes de estudos de low-carb não perdem, em média, mais peso do que os dos outros grupos. Acontece que até as pedras sabem que as pessoas tendem ir abandonando as estratégias de mudança de estilo de vida (seja dieta, seja atividade física, seja o que for). Assim, é evidente que a “perda de efeito” observada ao longo do tempo não acontece porque a estratégia deixa de funcionar, e sim porque as pessoas deixam de seguir a estratégia. Em um estudo (que também já abordei aqui no blog) no qual as refeições foram fornecidas durante toda a duração do estudo (2 anos) para assegurar maior adesão à dieta, os resultados foram mantidos pelos 2 anos.
Uma crítica comum diz respeito ao fato de que certas populações asiáticas que vivem de agricultura de subsistência (grãos e tubérculos baratos, mas ricos em carboidratos) têm baixos níveis de obesidade. É provável que os altos níveis de atividade física laboral, bem como a escassez de comida, ajudem a mitigar os efeitos de uma dieta de alto carboidrato, diz o artigo. Há também o fato de que tais sociedades, quando passam pela transição nutricional, o fenômeno caracterizado pela migração da relativa escassez calórica para a abundância de alimentos processados, têm apresentado níveis alarmantes de obesidade, como se vê na China. Tais carboidratos processados contêm cargas glicêmicas maiores do que os carboidratos tradicionais de subsistência (já tratei disso aqui no blog também e, modéstia à parte, a argumentação está muito melhor do que a do artigo em questão).
Os autores salientam ainda que parte das críticas são na verdade uma falácia do espantalho (escrevi sobre esse tipo de falácia aqui), ou seja, pintam a teoria C-I de uma forma muito simplista para então poder criticá-la; mas o que está sendo criticado não é o modelo real, em toda a sua complexidade. Exemplos são considerar apenas o efeito dos carboidratos da alimentação sobre os níveis pós-prandiais de insulina (os efeitos vão muito além), bem como os efeitos da insulina apenas sobre o tecido adiposo (desconsiderando os efeitos sobre outros tecidos). Salientam ainda que os efeitos da composição da dieta sobre o particionamento energético não envolvem apenas insulina (ver novamente a figura no início desta postagem). Aqui, traduzo literalmente: “Para evitar confusão, deve-se reconhecer que o nome de um modelo científico normalmente reflete as principais características que o distinguem – no caso, carboidratos e insulina – não o escopo completo de fatores causais e relações mecanicistas.”. Em outras palavras, o que mais importa no modelo é a inversão da seta da causalidade, a possibilidade de que a regulação do tecido adiposo e do armazenamento de gordura sejam centrais, e de que aumento do consumo calórico seja um epifenômeno, uma consequência ao invés de uma causa. Não precisa ser apenas a insulina a mediar tal processo!
Mas afinal, qual a importância disso tudo? Há consequências reais que decorrem de diferentes concepções de mundo. Se você acredita que a causa do problema é comer demais e ser muito preguiçoso, sua visão de mundo oscilará entre a culpabilização da vítima (“glutão e preguiçoso”) e medidas ineficazes (imprimir calorias nos menus dos restaurantes e reduzir o tamanho dos pacotes, por exemplo). Mas se você reconhecer que o aumento de peso médio dos últimos 50 anos é atribuível a um acúmulo extra de apenas 1g (um grama!) de gordura corporal por dia, e que, na prática (fora de estudos em alas metabólicas de institutos de pesquisa) é impossível medir as necessidades energéticas de um indivíduo com uma margem de erro menor do que 300 calorias por dia, fica evidente que, no longo prazo, atuar sobre a regulação do particionamento energético é uma solução muito, mais muito mais racional. Ademais, no atual ambiente alimentar moderno e industrial, humanos têm muito maior controle sobre o que comem do que sobre quanto comem. E, segundo prediz a teoria C-I, o que você come acaba determinando o quanto você come. Para citar a analogia utilizada no artigo, “ao reduzir o estímulo anabólico de uma dieta de alta carga glicêmica, a pessoas sentem menos fome e experimentam níveis mais altos de energia, promovendo assim perda espontânea de peso, da mesma maneira que um antitérmico reduz a febre sem que haja controle consciente do balanço do calor corporal“. Assim, reitero, as diferentes visões de mundo têm implicações reais para o manejo da epidemia de obesidade e – vamos combinar – a estratégia focada no balanço calórico não está indo nada bem.
Já existe sobreposição entre as duas visões (balanço calórico e teoria C-I). Por exemplo: nosso desejo instintivo por doces pode, por si só, levar ao consumo calórico excessivo (compatível com a visão focada em balanço calórico). Tal consumo de açúcar, por sua vez, irá afetar o particionamento de calorias em direção ao armazenamento através de mecanismos independentes de calorias (compatível com a teoria carboidrato insulina). Se ambas teorias podem explicar a realidade, qual a importância de entreter a hipótese alternativa? O valor de uma teoria é estimular o discurso e informar o desenho e planejamento dos estudos e experimentos. É fato que a realidade não muda de acordo com nossas teorias, que não passam de modelos imperfeitos. Mas a verdade é que a forma com que encaramos a realidade depende, sim, de nosso arcabouço teórico. No frigir dos ovos, os ovos podem ser uma opção melhor do que a mesma quantidade de calorias de torradas.