Há duas tendências perniciosas na medicina nesses dias. Sobre uma delas já conversamos em outra postagem – a ilusão de segurança fornecida pela solicitação de número excessivo e não justificado de exames. Isso não apenas encarece desnecessariamente a medicina (sobrecarregando o sistema de saúde), mas sequer traz benefícios ao paciente. Como explicado naquela postagem, o mais comum é que surjam exames falso-positivos, gerando angústia e, pior ainda, tratamentos desnecessários (e, por vezes, perigosos) para doenças ou condições inexistentes ou clinicamente irrelevantes.
Mas hoje vamos tratar da outra tendência perniciosa: a prescrição de grande quantidade de suplementos. Estou falando de receitas com mais de uma página – cheias de cima a baixo – com incontáveis suplementos incluindo minerais de toda sorte, extratos botânicos, vitaminas e probióticos. Os custos mensais de tais prescrições podem ultrapassar os 2 mil reais. É como matricular um filho em uma faculdade. Afora o fato de precisar consumir 30 ou mais cápsulas todos os dias. Eis um exemplo típico de um paciente que me procurou tempos atrás – e que não tinha doenças:
Isto é UMA receita médica – em 3 páginas. Para um paciente saudável, mas que sentia o que todos sentimos por vezes – um certo cansaço ou fadiga.
Mas, você poderia argumentar, nada disso é problema se for para viver com saúde e vitalidade até os 100 (ou 140, como alegam alguns…) anos de idade. A saúde em primeiro lugar!
Mas onde está a evidência de que tais esquemas sejam efetivamente benéficos? Mais preocupante: onde estão as evidências de que tal suplementação não é prejudicial?
Já falamos inúmeras vezes neste blog que pensamentos baseados em mecanismos teóricos pavimentam o caminho para o inferno. Vale dizer: muitas coisas que deveriam funcionar – pela lógica! – simplesmente não funcionam quando você testa em um estudo controlado (um ensaio clínico randomizado). Pior ainda, muitas fazem mal.
Alguns exemplos deveriam nos servir de alerta. O cálcio, por exemplo, é muito importante para os ossos. Por este motivo, frequentemente é prescrito na forma de suplementos, especialmente para mulheres pós-menopáusicas, a fim de prevenir a osteoporose. O que ninguém imaginava é que o uso de cálcio na forma de suplementos pudesse aumentar o risco cardiovascular. Uma recente metanálise de ensaios clínicos randomizados indica um aumento do risco (embora pequeno). Tal fenômeno não é observado com o consumo de cálcio na alimentação. Há pessoas que precisam de tais suplementos – os casos devem ser avaliados individualmente. O ponto aqui é mostrar que pode haver consequências não antecipadas causadas por suplementos comuns.
Quase todo mundo suplementa vitamina D nos dias de hoje. Muitos benefícios para a saúde são alegados – baseados em mecanismos e em estudos observacionais. Sob pena de chover no molhado, cabe explicar aqui os evidentes fatores de confusão que poderiam justificar a associação entre níveis mais altos de vitamina D e bons desfechos de saúde. Para começo de conversa, o fato de a vitamina D ser sintetizada pela exposição solar significa que pessoas que fazem atividade ao ar livre terão níveis maiores. Naturalmente, espera-se que estas pessoas sejam diferentes das sedentárias que ficam presas dentro de casa. A vitamina D poderia ser apenas um marcador de estilo de vida. Para resolver essa duvida, são necessários ensaios clínicos randomizados. O maior estudo deste tipo, envolvendo mais de 25 mil pessoas, levou a diversas publicações que foram resumidas em um editorial do New England Journal of Medicine: “A suplementação de vitamina D não preveniu câncer ou doenças cardiovasculares, não preveniu quedas, não melhorou a função cognitiva, não reduziu a fibrilação atrial, não alterou a composição corporal, não reduziu a frequência de enxaqueca, não melhorou os desfechos de acidente vascular cerebral, não diminuiu a degeneração macular relacionada à idade nem reduziu a dores nos joelhos”. Mulheres que usaram doses de 10 mil unidades de vitamina D por dia (doses altas, mas que são até modestas quando comparadas ao que eu frequentemente vejo em consultório) tiveram MAIS perda mineral óssea, e não menos.
O beta caroteno é outro exemplo fascinante. Estudos observacionais (aqueles que não podem estabelecer causa e efeito) sugeriram que pessoas que consumiam mais carotenos NA COMIDA tinham menor chance de desenvolver câncer. Perceba que isso não prova sequer que os carotenos eram os responsáveis por essa diferença. É perfeitamente razoável supor que as pessoas que consomem mais carotenos na dieta são diferentes das que consomem menos em outros aspectos, e que estes outros aspectos sejam responsáveis pela menor incidência de câncer. Mas, enfim, foi conduzido um ensaio clínico randomizado em que fumantes foram sorteados para suplementação com carotenos ou placebo. Os do grupo placebo tiveram mais sorte, pois quem recebeu o suplemento teve mais câncer de pulmão. Resulta que os mecanismos pelos quais a suplementação deveria ter ajudado pavimentaram o caminho para o inferno.
Talvez o caso mais emblemático para mim, como urologista, tenha sido o do selênio e da vitamina E para prevenção de câncer de próstata. Vou contar uma breve história real. Muitos anos atrás eu assisti a uma aula de um grande professor em um congresso de urologia. Ele então mostrou slides com estudos observacionais que indicavam que pessoas com níveis mais elevados de selênio nas unhas (um indicativo de maior consumo) tinham menos câncer de próstata. E outros slides mostrando que, em estudos observacionais, o consumo de vitamina E NA DIETA estava associado com menos câncer de próstata. Baseado nisso, dizia ele, mandava manipular selênio e vitamina E para os pacientes que, por qualquer motivo, fossem considerados de alto risco para desenvolver a doença. Pois bem, um ensaio clínico randomizado testou a hipótese em 35 mil homens por 7 anos. Mais uma vez, só o grupo placebo se salvou. Quem tinha selênio baixo não se beneficiou do selênio, e quem não tinha selênio baixo teve mais câncer com a suplementação (91% mais!); em compensação, quem tinha selênio baixo e recebeu vitamina E teve mais câncer (63% mais, e 111% a mais do tipo mais agressivo de câncer de próstata). Deu tudo errado! O selênio prejudicava quem não precisava do selênio, e a vitamina E prejudicava quem precisava do selênio, de modo que, dando os dois, encontramos uma forma de prejudicar todo mundo.
Eu continuo admirando aquele professor. Mas ele é de uma geração que não conhecia medicina baseada em evidências e que não tinha claro que os mecanismos pavimentam o caminho para inferno.
E o que dizer dos incontáveis minerais, vitaminas e extratos botânicos? Não sabemos o efeito no longo prazo – e este é justamente o ponto. Será que usar picolinato de cromo por 10 anos aumenta o risco de câncer ou Alzheimer? Não se sabe, pois ninguém estudou. Será que usar manganês por 10 anos aumenta o risco de alguma doença? Não se sabe. E será que usar 30 coisas ao mesmo tempo é arriscado? O QUE VOCÊ ACHA??
Para mim, uma das coisas mais nobres da medicina com foco em estilo de vida é a DESPRESCRIÇÃO. Um paciente que consegue emagrecer, sobretudo com inclusão concomitante de atividade física, frequentemente precisa reduzir ou suspender medicamentos para pressão alta e diabetes, por exemplo. Também é muito comum a desprescrição de remédios para azia/refluxo, enxaqueca. Já está bem estabelecido também que reversão de síndrome metabólica e atividade física tem efeitos antidepressivos. Temos de dar graças à existência de diversos medicamentos eficazes (às vezes indispensáveis) mas, de forma geral, a progressão na jornada de melhora da saúde com mudanças salutares de estilo de vida se acompanha de um número progressivamente menor de pílulas – não maior. É evidente que suplementos por vezes são necessários (pense, por exemplo, em uma pessoa anêmica por deficiência de ferro) – mas aí são receitas pontuais para deficiências pontuais.
Assim, vejo um grande paradoxo em pessoas que estão buscando melhorar sua saúde através de mudanças intensivas de estilo de vida, que recusam a prescrição de medicamentos por vezes necessários, mas que chegam ao consultório com 20 frascos de cápsulas e comprimidos. Afora o fato de que podem estar colocando sua saúde em risco pelo uso em combinação de incontáveis compostos manipulados que sequer foram testados isoladamente em ensaios clínicos randomizados de longa duração, o objetivo dessas pessoas não era livrar-se da necessidade de tomar remédios?
Incentivos perversos
É vedado ao médico vender medicamentos ou indicar um estabelecimento específico que repasse ao médico percentual do valor de suas prescrições. Me lembro até hoje da única vez – muitos anos atrás – que recebi uma proposta indecente dessas em meu consultório: um representante oferecia um valor em dinheiro em troca de prescrição de medicamentos. Mandei embora, e disse à secretária que nunca mais o recebesse. Não sei se a fama se espalhou, mas nunca mais recebi propostas desse tipo (também é fato que decidi não receber mais propagandistas e representantes há alguns anos, visto que isso sempre gera conflito de interesses). O que ajuda a explicar a minha perplexidade quando um colega me falou, recentemente, que farmácias de manipulação chegam a repassar 40% do valor da medicação a título de “gratificação” ao prescritor. E que há gente que fatura mais com isso do que com o próprio trabalho. Afinal, ao contrário das consultas, que são esporádicas, o dinheiro das farmácias vem todos os meses, uma vez que as prescrições são eternas. Diferentemente de doenças, que muitas vezes podem ser curadas, trata-se de pessoas já saudáveis, que estão usando fórmulas mirabolantes buscando a juventude eterna. Por este motivo, seja especialmente cético com expressões tais como “longevidade saudável” ou “medicina integrativa”. A ideia por trás de ambas as coisas pode até ser nobre, mas a prática tem sido cada vez mais se desfigurada.
Será que todos os médicos que prescrevem 3 folhas de receitas com 2000 reais de suplementos o fazem por motivos escusos? Certamente não. Assim como o meu professor de anos atrás acreditava genuinamente no selênio e na vitamina E para prevenir câncer de próstata, muitos entram nisso com boa fé, oriundos de cursos de graduação em que o pensamento crítico é repelido com balas de borracha. O problema é que os ganhos financeiros transformam-se no que os economistas chamam de incentivos perversos. Como dizia o escritor Upton Sinclair “É difícil fazer um homem compreender algo quando seu salário depende, acima de tudo, que não o compreenda”.
Da mesma forma que o melhor médico não é o que pede mais exames – também é falso que os melhores médicos são os que prescrevem mais pílulas.