Na postagem anterior, eu disse que não pretendia mais escrever sobre isso. Mas é mais forte do que eu…
Em Colesterol I, eu expliquei como surgiu a ideia de que colestrol pudesse ser algo ruim: uma combinação de má ciência básica e de um estudo epidemiológico mal feito da década de 1950.
Em colestrol II, eu mostrei que até 1957 nem mesmo a Associação Americana de Cardiologia estava convencida de que se deveria mudar a dieta das pessoas por causa de colesterol. No entanto, apenas 4 anos após, a maré começava a mudar, por motivos políticos, e não científicos.
Em colesterol III, eu detalhei os grandes estudos prospectivos e randomizados que demonstraram que reduzir a gordura na dieta não tem NENHUM impacto na mortalidade em homens e mulheres. Além disso, que estudos epidemiológico mais bem feitos sugerem que quanto maior o consumo de gordura per capita, menor a incidência de doenças cardiovasculares.
Em colesterol IV, vimos como o colesterol é um marcador de risco sofrível, como a redução de colesterol não traz benefício para a maior parte das pessoas, como a indústria manipula as estatísticas para nos convencer de que intervenções que têm o potencial de ajudar apenas 1 em cada 250 pessoas seriam “essenciais”, e como modificações de estilo de vida podem ter impacto superior ao das drogas, sem o custo e efeitos colaterais.
Em colesterol V, vimos como o reducionismo feriu de morte o pensamento científico, levando-nos à crença ingênua de que podemos efetivamente dominar a complexa teia de causas e efeitos que compõem sistemas infinitamente complexos como o organismo humano. E citamos o ilustrativo exemplo da droga torcetrapib, que aumentava o HDL (colesterol “bom”) e diminuía o LDL (colesterol “ruim”). E, no entanto, os pacientes morreram MAIS com esta droga – estes exames de sangue são apenas isso: exames de sangue, e o que queremos é viver mais e MELHOR, e não apenas mudar os números impressos no papel, apenas para morrermos com resultados “normais”.
Na postagem denominada Conflitos de Interesse, abordamos o grau extremo com que os vultuosos interesses financeiros contaminam de forma decisiva (e infundada) as diretrizes que estabelecem que o colesterol “normal” seja abaixo de 200 e o LDL abaixo de 130 (ou 100, ou mesmo 70 como se fala agora!).
Em colesterol VI mostramos um vídeo curto para salientar que não existe correlação entre os níveis de colesterol e doença cardiovascular em nível populacional (diversos países).
Em colesterol VII, legendei uma longa palestra do Dr. David Diamond, que faz um belo sumário de todo este assunto.
Hoje, vamos avaliar um dos fatos mais elementares relacionados à essa discussão. Afinal, o que é colesterol “alto”, e isso é bom ou ruim?
A pergunta parece meio absurda: “todos sabem que colesterol alto é ruim”. Será?
Famingham é uma pequena cidade nos EUA. Qual sua importância? Como diz o “portal do coração, do site UOL”:
“Cerca de 60 anos atrás, uma cidade dos Estados Unidos, Framingham (estado de Massachusetts), foi selecionada pelo governo americano para ser o local de um estudo cardiovascular. Foram inicialmente recrutados 5.209 residentes saudáveis entre 30-60 anos de idade para uma avaliação clínica e laboratorial intensa. Desde então a cada 2-4 anos, esta população e, atualmente as gerações descendentes, é reavaliada cuidadosamente e acompanhada em relação ao desenvolvimento de doença cardíaca.
O consagrado estudo de Framingham foi o primeiro a demonstrar a importância de alguns fatores de risco para o desenvolvimento de doença cardíaca e cérebro-vascular (derrame cerebral).”
Este estudo continua até os dias de hoje – já são várias gerações de moradores de Framingham minuciosamente acompanhados.
A seguinte figura, publicada há mais de 40 anos, mostra os níveis de colesterol de pessoas com doença coronariana e sem doença coronariana no estudo de Framingham:
Observem o seguinte:
- O colesterol médio das pessoas era em torno de 220. Não é curioso que o número defendido como “normal” (200) seja, de fato, abaixo da média??
- A linha contínua corresponde ao colesterol das pessoas saudáveis. A linha pontilhada, corresponde ao colesterol das pessoas com doença coronariana. Observe que há pessoas com colesterol “baixo” e “alto” em AMBAS categorias.
- O colesterol médio de AMBAS populações é de 220;
- As curvas só começam a divergir em níveis de colesterol acima de 290.
Outra coisa importante, e que frequentemente é esquecida por quem olha estes estudos, é que nenhum de nós sairá vivo deste jogo. Ou seja, todos morreremos de ALGUMA coisa. Assim, o desfecho mais importante de qualquer intervenção é a chamada mortalidade por todas as causas (“all cause mortality”). Além disso, a mortalidade por todas as causa é imune a questões de classificação ou à subjetividade. Muitos dos estudos sobre mortalidade cardiovascular baseiam-se em atestados de óbito. E atestados de óbito são notoriamente imprecisos. Veja, a grande maioria das pessoas que morre não sofre uma necrópsia. Assim, o médico que atende aquela pessoa, escreve o que lhe vem na cabeça, a coisa mais provável naquela circunstância. E nunca teremos certeza do que realmente foi a causa da morte.
Mas a mortalidade por todas as causas não sofre desses vieses. Afinal, não há ambiguidade – ou você está vivo, ou está morto – é o diagnóstico menos sujeito a erro que existe. Ou seja, o desfecho que mais importa dentre todos é, ao mesmo tempo, o único cuja aferição é 100% precisa – MORTE.
Um autor português, Ricardo Carvalho, que infelizmente desativou seu blog em 2011 por falta de leitores, montou uma inacreditável compilação de dados de mortalidade por todas as causa versus níveis de colesterol, com dados de todos os países do mundo.
É um gráfico incrivelmente rico em informações. Cada ponto corresponde a um país (vermelho para mortalidade cardiovascular, azul para mortalidade por todas as causas), com seus níveis médios de colesterol. A escala vertical é a mortalidade; o eixo horizontal é o colesterol total. As curvas de diferentes cores correspondem à mortalidade por diferentes causas.
Chamo sua especial atenção para algumas curvas:
Em vermelho pontilhado (—–), a mortalidade cardiovascular
Em vermelho contínuo (______), a mortalidade por doenças não transmissíveis
Em verde (______), mortalidade por infecções e mortalidade materna
Em azul (______), mortalidade por todas as causas.
Olhe com atenção – observe todas as curvas (clique aqui para ampliá-lo):
Olhou o gráfico com atenção? Então, responda às seguintes perguntas:
- Qual o nível de colesterol associado com a menor mortalidade por TODAS as causas?
- O que acontece com a chance de morrer do coração à medida que o colesterol DIMINUI abaixo de 200?
- O que acontece com a chance de morrer de infecção na medida em que o colesterol diminui?
- O que acontece com a chance de morrer de câncer na medida em que o colesterol diminui?
Caro leitor, estes não são dados isolados. Veja, por exemplo, este estudo recente:
Tradução: “Será o uso do colesterol nos algoritmos de risco de morte nas diretrizes válido? Dados prospectivos de 10 anos do estudo norueguês HUNT 2”
Conclusão: nosso estudo fornece uma indicação epidemiológica atualizada de possíveis erros nos algoritmos de risco cardiovascular um muitas diretrizes clínicas. Se nossos achados forem generalizáveis, recomendações clínicas e de saúde pública no que diz respeito aos “perigos” (aspas no original) do colesterol deveriam ser revistas. Isto é especialmente verdadeiro para mulheres, para as quais níveis moderadamente elevados de colesterol (de acordo com os padrões atuais) podem ser não apenas inofensivos, mas até mesmo benéficos.
Mais uma vez, vou respeitar a inteligência dos leitores e vou me abster de fazer recomendações. Os dados estão aí – para que você possa estudá-los e tirar suas próprias conclusões.