Densidade nutricional e “superfoods”

Nos últimos dias, algumas perguntas de leitores aqui e nas redes sociais me chamaram atenção para a necessidade de alguns rápidos esclarecimentos.

As perguntas diziam respeito à suposta vantagem de consumir açúcar mascavo ou caldo de cana, pois possuem “muito mais nutrientes” do que o açúcar refinado, e à necessidade ou conveniência de consumir produtos exóticos como “geléia real” ou goji berry – as chamadas “superfoods“.

No que diz respeito à primeira dúvida, fiquei pensando e cheguei à conclusão de que é um problema de dificuldade de alguns leitores com matemática. Veja, o açúcar refinado é quase que sacarose pura – contém traços infinitesimais de qualquer outro nutriente. Então, diz o leitor:

“O açúcar mascavo contém proteínas, gordura, cálcio, fósforo, ferro, vitamina B1, B2, niacina, vitamina C, sódio, potássio, magnésio, cobre e zinco, enquanto o açúcar refinado contém 0 (zero) desses nutrientes, e ainda rouba o estoque de minerais do organismo para ser digerido e absorvido.”

 Ok, mas QUANTO dessas substâncias há no açúcar mascavo?

A reposta está aqui:

em 100g de açúcar mascavo, 98g são… açúcar (sacarose).

E o açúcar mascavo, tem vitaminas? Bem, ter, tem… se você tiver uma lupa para encontrá-las:

Vejamos, o açúcar mascavo contém Niacina! Mas quanto? Em 100 gramas de açúcar mascavo (eu disse CEM gramas), temos 1% da necessidade diária de niacina. O açúcar refinado contém ZERO niacina, de modo que não seria errado afirmar que o açúcar mascavo contém uma quantidade infinitamente maior de niacina do que o refinado. Mas, E DAÍ? A quantidade, embora maior do que no refinado, segue sendo infinitesimal, e se você está comendo açúcar mascavo por causa disso, está fazendo uma grande bobagem, uma vez que precisaríamos de 10 Kg de açúcar mascavo apenas para atingir 100% da necessidade diária de niacina. Melhor seria comer 100g de peixe, que contém 110% da necessidade diária de niacina.

E que dizer dos minerais? Vejamos:

A quantidade acima é em CEM gramas de açúcar mascavo. Vou deixar para o leitor a tarefa de calcular, usando regra de três, quantos pacotes de açúcar seriam necessários para atingir a quantidade necessária de cada mineral por dia.

O conceito importante aqui, que gera a confusão na cabeça das pessoas, é o de densidade nutricional. Densidade nutricional pode ser definido de várias formas, mas a minha preferida é a do Dr. Matt Lalonde:

Densidade nutricional = somatório de nutrientes ESSENCIAIS / peso do alimento

Exemplo:

açúcar comum = ZERO nutrientes essenciais / 10g = ZERO

açúcar mascavo = praticamente ZERO nutrientes essenciais / 10g = praticamente zero.

Logo, a escolha entre um e outro é uma questão apenas de preferência. Ambos são açúcar, e ambos são igualmente ruins. A frase “O açúcar mascavo contém proteínas, gordura, cálcio, fósforo, ferro, vitamina B1, B2, niacina, vitamina C, sódio, potássio, magnésio, cobre e zinco, enquanto o açúcar refinado contém 0 (zero) desses nutrientes, e ainda rouba o estoque de minerais do organismo para ser digerido e absorvido” é portanto obviamente desprovida de sentido, já que as quantidades são infinitesimais, e 98% da coisa é puro açúcar. Mesmo que os outros 2% fossem o mais puro leite das virgens do Himalaia, isso jamais poderia mitigar o dano causado pelos 98%. Mas o papel aceita qualquer coisa. Nunca aceite frases como essa. Utilize uma fonte confiável de informação nutricional – como demonstrado acima, é FÁCIL.

E as superfoods? Superfoods são esses alimentos da moda, que custam uma fortuna, que até semana passada você nunca tinha ouvido falar, mas cujo consumo estaria associado a efeitos fantasiosos sobre a saúde: perda de peso, mais energia, vida mais longa, melhora da performance sexual. Eis uma breve lista: goji berry, amaranto, batata Yacon, maca peruana… eu nunca havia sequer ouvido falar nessas coisas antes de ter que pesquisá-las por causa de perguntas de leitores. 

Bom, aqui o problema é, de fato, credulidade extrema, e seu irmão gêmeo, a falta total de ceticismo. Quando algo parece bom demais para ser verdade, em geral é porque é mentira. Simples assim. Sabemos isso na vida prática do dia a dia. Quem não sabe, cai na mão dos estelionatários. Se você não cai em golpes o dia inteiro, é porque possui algum ceticismo. POR QUE não usar esse ceticismo também em relação às superfoods?

Exemplo: alguém me pergunta sobre geleia real. Eu respondo que é uma superfood – para abelhas! Sim, é capaz de transforma uma operária em rainha, quase como o Richard Gere no filme Pretty Woman. Aí, alguém responde: “É riquisima em compostos bioativos, compostos fenólicos e em DHEA !! Mostra significativos efeitos benéficos na neurogênese, melhora da fadiga, melhora da memória, aumento da regeneração celular, melhora da libido e, consequentemente e na modulação hormonal, olha que beleza… amo super foods …”

Então, você acreditaria em tudo isso se fosse um representante de laboratório, falando sobre um novo remédio? Espero que não, ao menos não sem referências bibliográficas peer reviewed (clique aqui para saber o que é isso), em HUMANOS.

Como dizia Carl Sagan, “alegações extraordinárias requerem provas extraordinárias”. Se eu digo que algo produz “Significativos efeitos benéficos na neurogênese, melhora da fadiga, melhora da memória, aumento da regeneração celular, melhora da libido e, consequentemente e na modulação hormonal”, trata-se de alegações realmente extraordinárias. Mas… Onde estão as PROVAS extraordinárias? Onde estão os ensaios clínicos randomizados, comprovando tais efeitos da geleia real comparada ao PLACEBO? A resposta é que não existem. Eis um documento da Autoridade de Segurança Alimentar da Europa sobre várias alegadas superfoods, e o que ele diz sobre geleia real:

The food that is the subject of the claims is royal jelly related to the following claimed effects:
―natural defence/immune system, ―metabolism, ―vascular function, ―glands function, ―skin
health, ―tonus/vitality, ―anti-asthénique, immunostimulant, ―ménopause, effet oestrogénique,
hypolipidémiant, ―vitalité physique et intellectuelle, and ―helps heart health and to maintain a
balanced level of cholesterol and lipids in the body.
Royal jelly is a creamy, whitish, strongly acidic secretion from the mandibular and hypopharyngeal
(cephalic) glands of Apis mellifera (Hymenoptera, Apidae) nurse bees, and is important in the sexual
differentiation and longevity of the queen bee. Pure royal jelly is usually presented in the form of
cream, capsules, or powder/flakes (freeze-dried); additionally, it is an ingredient in many products.
Royal jelly contains sugars, proteins, fatty acids, amino acids, vitamins, salts and trace elements. The
average water content of royal jelly is 60-70 %. Crude protein (49-87 kDa) constitutes 12-15 % (or
about 50 % of the dry mass), sugars 10-16 % and lipids 3-7 %. Proteins in royal jelly largely belong to
one protein family designated MRJP (major royal jelly proteins, about 90 % of proteins)
(apalbumins). Components of royal jelly reported to be biologically active include various proteins
and peptides, the fatty acid 10-hydroxy-2-decenoic acid (10-HDA), and unidentified components with oestrogenic activity. The composition of royal jelly is reported to vary with seasonal and regional
conditions (Bincoletto et al., 2005; Fontana et al., 2004; Sver et al., 1996).
In the human studies provided which addressed outcomes related to the claimed effects the origin and
composition of the royal jelly used was not specified.
The Panel notes that from the references provided it was not possible to characterise royal jelly in
general, nor the specific components of royal jelly mediating the functions for which the claims were
made.
The Panel considers that royal jelly, which is the subject of the claims, is not sufficiently
characterised in relation to the claimed effects considered in this section.
The Panel concludes that a cause and effect relationship cannot be established between the
consumption of royal jelly and the claimed effects considered in this section.

Em resumo, não há evidências que consubstanciem as alegações. Mas você teria que ser muito crédulo para acreditar nessas coisas, não é mesmo? Se acredita, sugiro que nunca compre um carro usado, e – por favor! – não acredite quando um SMS em seu celular disser que você foi premiado e ganhou uma casa.

Por fim, um exercício. Abaixo, temos 3 alimentos (100g de cada): A, B e C. Quero saber: qual deles é a superfood??

A

B

C

E aí, já decidiu? Se o critério for densidade nutricional, temos um CLARO vencedor! O alimento B deve ser nossa superfood. Afinal, tem grande quantidade de vitaminas e minerais, muitos em quantidades várias vezes superiores à necessidade (ou seja, precisaríamos apenas de uma pequena porção desse alimento para satisfazer nossas necessidades).

Mas, se você está fazendo uma dieta low carb, a quantidade de carboidratos em 100g dos alimentos A, B e C é, respectivamente: 10g, 5g e 21g, de modo que isso também deveria ser levado em consideração. Aqui, mais uma vez, o alimento B sai bem na frente dos demais.

Por fim, vamos à única informação que REALMENTE permitirá a você saber qual dos alimentos acima é a superfood: o PREÇO:

A – R$ 0,40 (quarenta centavos)

B – R$ 0,48 (quarenta e oito centavos)

C – R$ 27,17 (vinte e sete reais e quarenta centavos)

Agora você já sabe!! A superfood, aquele alimento que é definido por ser super-caro e super-exótico é a letra C. O estranho é que, muito embora o alimento C não seja nem um pouco ruim, sua densidade nutricional é bem inferior ao do alimento B, e apenas um pouco superior ao do alimento A. Não obstante, custa SESSENTA vezes mais caro.

Ok, ok, vou acabar com o suspense – a reposta está abaixo:

A – Cenoura

B – Fígado bovino

C – Goji Berry

Portanto, leitor, não seja ingênuo, crédulo e presa fácil de espertalhões. NÃO EXISTE SUPERFOOD. O que existe são consumidores super-ingênuos, e marqueteiros super-espertos.

Com menos de 3 reais, você faz um prato com um bife de fígado acebolado e uma salada mista com verdes e cenoura, e eu desafio qualquer comidinha cara, trazida ao Brasil de avião, de nome complicado e metida a besta, a superar tal prato no índice de densidade nutricional. Sério.

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