O triunfo da dieta Low Crap

Foi publicado neste dia 20 de fevereiro de 2018 um novo ensaio clínico randomizado que provocará desconforto em quase todo mundo. E isso é bom. Pois a ciência não progride pela confirmação de crenças, e sim por sua refutação, que permite o surgimento de modelos mais sofisticados. Um bom estudo gera mais dúvidas do que certezas. Por essa métrica, trata-se de um estudo e tanto.

Sobre o autor principal, Christopher Gardner, já falei mais de uma vez aqui no blog (veja aqui e aqui). Gardner é autor de um clássico estudo, chamado A to Z, no qual 4 dietas foram comparadas, Atkins, LEARN, Zone e Ornish, e Atkins foi melhor na maioria dos parâmetros.

Em uma análise post hoc daquele trial de 2007, Gardner levantou a hipótese de que o que ajudaria a explicar por que alguns pacientes respondem melhor a algumas dietas do que a outras fosse o seu perfil de sensibilidade ou de resistência à insulina. 

No vídeo abaixo, Gardner faz uma excepcional palestra, e aborda esta hipótese a partir do minuto 38:

Existem outros estudos que parecem indicar que, de fato, o grau de sensibilidade à insulina é determinante para a resposta aos diferentes tipos de dieta: pessoas com resistência à insulina responderiam melhor à abordagem low carb, e pessoas sensíveis à insulina responderiam melhor à abordagem low fat. Tenho uma postagem inteira dedicada a esse assunto, e esse poderia ser um bom momento para relembrá-la.

Conto essa breve história para contextualizar. Gardner é o pai da hipótese. Mas um verdadeiro cientista tenta atacar a sua hipótese, para ver se ela sobrevive – e todos ganham quando uma hipótese é abalada. Gardner montou (com fundos do NuSI, a organização fundada justamente por Gary Taubes) um ensaio clínico randomizado realmente espantoso, com 609 pessoas e duração de 12 meses. Mas, dessa vez, TODOS os integrantes foram submetidos a diversos testes genéticos e metabólicos para identificar quais características poderiam ajudar a determinar quem se beneficiaria mais de cada dieta. Diferentemente da análise post hoc de Gardner no passado, aqui as análises e endpoints foram determinados antecipadamente, o que fornece maior robustez metodológica.

  • Primeira hipótese primária: genes específicos ajudariam a predizer a resposta às dietas. Para isso, foram testados 5 genótipos que favoreceriam low fat, e 9 genótipos que favoreceriam low carb;
  • Segunda hipótese primária: a secreção de insulina em uma curva insulinêmica poderia predizer a reposta às dietas. As pessoas que secretassem mais insulina após um desafio de 75g de glicose teriam, em tese, um melhor desempenho com uma dieta low carb. Tal teste foi feito no início do estudo e aos 3, 6 e 12 meses.

DOIS ASPECTOS MUITO IMPORTANTES:

Há dois aspectos muito importantes neste estudo, que precisam ser levados em consideração.

1) o grupo low carb foi orientado a consumir menos de 20g de carboidratos líquidos por dia nos primeiros 2 meses do estudo, e o grupo low fat  foi orientado a consumir menos de 20g de gordura por dia nos primeiros 2 meses do estudo. Não houve restrição calórica voluntária em nenhum dos grupos. Porém, por decisão dos autores, ambos grupos tiveram suas dietas “relaxadas” depois dos primeiros 2 meses para níveis que os indivíduos achassem que poderiam manter por tempo indeterminado. Isso significa que o grupo low carb acabou consumindo uma média de 96,6 g de carboidratos por dia já aos 3 meses (não exatamente very low carb), enquanto o grupo low fat acabou consumindo o dobro da gordura a que originalmente se propôs (42g, não exatamente low fat). Na verdade, no final do estudo, o grupo “low carb” já consumia mais de 130g de carboidratos! Assim, a comparação foi entre uma dieta não muito low carb versus uma dieta não muito low fat.

2) Ambas dietas foram de altíssima qualidade. É muito importante salientar esse ponto – creio que seja ABSOLUTAMENTE CRUCIAL para a compreensão dos resultados. Ambos grupos foram orientados a consumir apenas comida de verdade, evitar o açúcar e grãos processados, e alimentos processados em geral. Ou seja, um grupo foi moderadamente low carb, outro foi moderadamente low fat, mas AMBOS foram notoriamente LOW CRAP

Especificamente, ambos grupos foram “(…) instruídos a (1) maximizar a ingestão de vegetais; (2) minimizar o consumo de açúcares adicionados, farinhas refinadas e gorduras trans; e (3) focar em alimentos integrais que tenham sido minimamente processados, fossem densos em nutrientes, e preparados em casa sempre que possível.

Isso é muito importante, pois talvez tenha sido a primeira vez que um ensaio clínico randomizado assegura a qualidade da dieta em ambos grupos. Ate agora, o foco vinha sendo EXCLUSIVAMENTE em macronutrientes (gorduras, proteínas, carboidratos) e não em QUALIDADE. Acontece que isso poderia conferir uma vantagem indevida aos grupos low carb dos demais estudos. Explico: low carb, por DEFINIÇÃO, não incluirá açúcar, nem farinha, nem a maioria dos alimentos processados (que terão açúcar, farinha, ou ambos). A simples orientação de consumir menos de 40g de carboidratos praticamente assegura uma dieta de alta qualidade, composta de carnes, peixes, aves, ovos, vegetais e frutas de baixo índice glicêmico, pois caso contrário praticamente não haveria mais o que comer! Agora, se você estipular como única regra que deva-se consumir menos de 20g de gordura, é possível construir a pior dieta possível, com todo o tipo de cereal açucarado, pães, massas, biscoitos low fat, sorvetes low fat, sucos de fruta de caixinha, picolés açucarados, refrigerantes normais, doces e guloseimas (sendo este o óbvio motivo pelo qual a indústria divide a cama com as diretrizes low fat tradicionais).

Gardner e seu grupo foram os primeiros, até onde eu saiba, a construir um desenho experimental no qual AMBOS grupos  fossem de alta qualidade. Até hoje, a maioria dos estudos comparava uma dieta low carb/low crap com uma dieta low fat/high crap, o que tornava impossível isolar as variáveis.

Como eu disse na introdução dessa postagem, a maioria de nós emergiu da leitura deste estudo lambendo pelo menos algumas feridas. Vejamos os principais resultados:

1) Embora não houvesse restrição calórica voluntária, AMBOS grupos sentiram menos fome e comeram menos. Saem machucados aqui queles que pensam que só é possível perder peso passando fome, com restrição calórica VOLUNTÁRIA, bem como aqueles de nós que acreditam quem apenas low carb é capaz de produzir tal efeito:

2) Ambos grupos perderam peso: 6 Kg no low carb, 5,3 Kg no low fat. Essa pequena diferença não é estatisticamente significativa. Saem machucados aqui aqueles de nós que esperavam uma diferença maior a favor do grupo low carb. Resta a dúvida sobre se isso teria a ver com o fato de que o grupo low carb terminou o estudo consumindo mais de 130g de carbs (ou seja, não era de fato low carb), ou se o segredo está no fato de que o grupo low fat foi, pela primeira vez, low crap. Acho que foram ambos, mas gosto mais da segunda hipótese: finalmente alguém bolou uma dieta low fat de qualidade, capaz de competir com uma low carb meia-boca.

3) A genética não conseguiu predizer quem responderia melhor a qual tipo de dieta. Ter genes que metabolizam melhor a gordura, ou ter genes que metabolizam melhor a glicose, foi irrelevante! Acho que foi uma surpresa para quase todo o mundo, e serve de alerta para o fato de que a realidade tem primazia sobre os mecanismos. O fato de haver genes que você ACHA que favoreceriam uma dieta ou outra, ou mesmo de haver estudos observacionais ou retrospectivos indicando a possível utilidade de tais testes genéticos, simplesmente não lhe autoriza a afirmar que eles são úteis antes de verificar isso na prática. Saem machucados todos aqueles que queimaram a largada e já estão empregando testes genéticos, cobrando caro por isso, e indicando ou contra-indicando dietas específicas baseadas em seus resultados, ANTES da realização dos devidos ensaios clínicos randomizados.

4) A reposta insulínica não predisse a melhor dieta. É, ao meu ver, um dos resultados mais surpreendentes. A ortodoxia low carb postularia a ideia de que aquelas pessoas que secretam mais insulina quando consomem carboidratos, deveriam ser as pessoas que perderiam mais peso em uma dieta low carb. Pois não foi o que aconteceu. A resposta insulínica não teve relação com o sucesso ou insucesso de uma dieta low carb ou low fat, desde que low crap. Sabe o que teria sido interessante? Um grupo controle (high crap), para ver se, nessas pessoas, a reposta insulínica faria diferença (mas isso apenas implicaria que algumas pessoas são metabolicamente mais resistentes ao efeito danoso dos alimentos processados – não mudaria muito as coisas na prática). Também seria interessante saber se existe um efeito de LIMIAR, ou seja: se a dieta low carb fosse REALMENTE low carb (digamos, menos de 40g de carboidratos por dia), talvez o grupo com maior resposta insulínica aos alimentos respondesse melhor à low carb? Em outras palavras, talvez a diferença não tenha aparecido pois nenhum dos grupos comeu carboidratos ruins, e ambos grupos comeram carboidratos demais (não ficando abaixo de um possível limiar). Saem machucados: todos nós que damos ênfase ao papel da insulina na dieta low carb no que diz respeito à perda de peso (NÃO estamos falando de diabetes ou síndrome metabólica). É o segundo estudo que tende a refutar o papel (ao menos preponderante) da insulina no que diz respeito à perda de peso. O primeiro foi o pequeno estudo de Kevin Hall de 2015. Por ironia do destino, este é o segundo estudo patrocinado pela NuSI, instituição co-fundada por Gary Taubes com objetivo de validar o modelo obesidade-insulina, que parece refutar a sua tese principal. Não deixa de ser poético.

4) O estudo mostrou dados individuais de TODOS os pacientes, algo incomum, e que deveria ser feito mais vezes, visto que a média muitas vezes esconde a variabilidade. Responda rápido, você vê alguma GRANDE diferença entre os gráficos abaixo? É, eu também não:

cada risco corresponde a um indivíduo. Teve gente que perdeu mais de 25 Kg, muitos perderam uns 10 Kg, e alguns ganharam até 10 Kg. Em AMBAS dietas. Saem machucados todos nós que esperávamos conseguir adivinhar qual gráfico corresponde a cada dieta sem nem mesmo ter que olhar a legenda. Sim, eu sei, low carb não foi realmente low. E sim, a low fat aqui foi sem açúcar, sem farinha refinada e só com comida de verdade. Mas isso não muda o fato de que low fat, nesses moldes, é tão eficiente (para perda de peso) quanto uma low carb com 100g de carbs.

BOTTOM LINE

  • Low carb, sem controle voluntário de calorias, é eficaz para perda de peso, mesmo com carboidratos acima de 100g por dia.
  • Low fat, em estudos prévios, só era eficaz se houvesse redução voluntária de calorias, ou seja, com fome;
  • Low fat, desde que também low crap, ou seja, com orientação de não consumir açúcar, nem grãos refinados, nem comida processada, e consumir alimentos integrais preferencialmente preparados em casa, pode ser tão eficaz para perda de peso quando uma low carb moderada, com 100g de carboidratos por dia;
  • A narrativa mudou. Poucos anos atrás, low carb era condenado porque seria uma alternativa doida, com riscos fictícios para os rins, fígado e coração. Hoje, a questão é tentar demonstrar que não é TÃO bom assim, e muita gente respirou aliviada quando finalmente surgiu um ensaio clínico randomizado que não mostrou SUPERIORIDADE de low carb. Estão comemorando EQUIVALÊNCIA. Se é equivalente, precisa ser incorporado às diretrizes nutricionais como opção válida e ensinado nas faculdades.
  • Não há base para a ideia de que o perfil genético permita escolher a melhor dieta para o indivíduo. Isso poderá mudar no futuro, mas somente a partir de novos ensaios clínicos randomizados. Opiniões de especialistas não bastam.
  • A teoria da insulina no que diz respeito à perda de peso (não estamos falando de síndrome metabólica ou diabetes) fica muito enfraquecida quando se junta o resultado negativo deste estudo, o resultado negativo do estudo de Kevin Hall, e o fato de que dietas ricas em proteína, embora estimulem a liberação de insulina, produzem perda de peso em ensaios clínicos randomizados.

CAVEATS

  • O resultado se aplica exclusivamente a pessoas com sobrepeso que sejam saudáveis. O estudo excluiu pacientes diabéticos ou portadores de síndrome metabólica (nestes, low carb parece ser imbatível, até agora);
  • O estudo não avaliou o efeito de low carb sobre diabetes tipo 2; nestes pacientes, low carb é uma estratégia superior, e quanto mais low carb, melhor (veja aqui);
  • Os resultados poderiam ter sido diferentes se o braço low carb fosse REALMENTE low carb (<50 ou < 40g por dia). Não temos como saber. E é difícil extrapolar para outros estudos, pois em vários estudos de very low carb o grupo low fat era high crap; e em estudos como o da Virta Health, nos quais a dieta foi cetogênica por um ano, os resultados foram muito superiores mas 1) os pacientes eram diabéticos; 2) o estudo não era randomizado, e os indivíduos auto-selecionados eram muito mais motivados.

Conclusão:

Entre mortos e feridos, salvou-se a qualidade nutricional. É o triunfo da dieta low crap. Qualidade em detrimento da quantidade (calorias). Cada dia fica mais nítido que nem todos os pacientes respondem igualmente bem a todas as dietas, e que há vários caminhos possíveis. O Dr. Gardner, com este estudo, levanta a possibilidade de que low carb pode ser eficaz não tanto pelos motivos que Taubes pensava (insulina), e sim por melhorar (até mesmo acidentalmente) a qualidade da dieta (eliminando açúcar e farináceos, e trazendo de volta alimentos saudáveis como nozes, castanhas, abacate, carnes) que haviam sido vilificados pelas diretrizes nutricionais. Sim, é possível estar certo pelos motivos errados. Que isto sirva de exemplo de que:

1) a realidade tem primazia sobre os mecanismos (não precisávamos saber o mecanismo correto para saber, pelos ensaios clínicos randomizados, que low carb é eficaz);

2) as verdades científicas são – sempre – provisórias.

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