Low Carb, High Fat: quando high torna-se “too high”?

Em 2014, qualquer pessoa bem informada já sabe que a restrição de carboidratos (“low carb”) é a melhor estratégia para o manejo da síndrome metabólica, diabetes e sobrepeso – já é ponto pacífico, e já está-se tornando mainstream.

Ou seja, no movimento LCHF (“low carb, high fat”), a parte Low Carb já não é mais controversa. Mas e que dizer do “High Fat” (alta gordura)? Aqui, há não apenas controvérsia, mas também nuance.

Há grande número de postagens nas quais explico que:

  • Nunca houve evidência experimental de que a restrição de gordura na dieta traga benefícios;
  • Até mesmo a evidência epidemiológica aponta para o fato de que a gordura na dieta não tem relação do doença cardiovascular;
  • Como visto na última postagem, nem mesmo em pacientes com doença cardiovascular grave já estabelecida existe evidência de malefício da gordura saturada.

Coletivamente, estes fatos são suficientes para estabelecer os seguintes fatos:

  • Não há base científica para evitar uma dieta de baixo carboidrato devido ao fato de que o consumo proporcional de gordura aumentará;
  • Não há base científica para recomendar que a população evite o consumo de gordura, mesmo saturada;
  • Não há base científica para recomendar que pacientes portadores de doença cardiovascular não sigam uma dieta de baixo carboidrato.

Mas o termo high fat é amplo e mal definido. O que é high fat? 40% das calorias em gordura? 60%? 80%?

Os estudos populacionais e os grandes estudos experimentais referidos acima nos tranquilizam completamente no que diz respeito ao aumento proporcional da gordura que ocorre naturalmente nas dietas de baixo carboidrato. Mas isto não é a mesma coisa que forçar o consumo de gordura – como consumir gordura líquida no café ou consumir “fat bombs” (receitas especialmente cheias de gordura com o objetivo explícito de levar o consumo de gordura a 75 ou 80% das calorias, por exemplo).

Posso já ouvir a gritaria: “Estamos confusos! Afinal, uma hora a gordura é boa, outra hora não é! Não sabemos mais nada!”

É aqui que entra a questão das nuances. É preciso ponderar sobre 3 aspectos, no que diz à quantidade de gordura na dieta: objetivo, duração (prazo), e resposta individual.

A orientação geral, para as pessoas como um todo, e que está bem clara nessa postagem de janeiro de 2014, é a seguinte:


“Não há necessidade de complicar com fases, regras detalhadas, etc. aquilo que, no fundo, é simples:
1) Cortar açúcar;
2) Eliminar grãos (especialmente trigo e soja);
3) Evitar raízes (“tubérculos”, em especial batatas) se você precisa perder muito peso (caso contrário, não);
4) Optar por comida de verdade;
5) Não consumir gorduras artificiais e evitar as refinadas (óleos extraídos de sementes);
6) Perder o medo da gordura natural dos alimentos;

Esta orientação presta-se ao objetivo geral de obtenção e manutenção da saúde e redução de peso, pode ser mantido indefinidamente, e tende a ter boa resposta na maioria dos indivíduos. Além disso é altamente segura.

Mas há objetivos mais específicos, nos quais uma intervenção dietética mais extrema pode ajudar. Por exemplo, em pacientes com muito peso para perder, síndrome metabólica franca ou diabetes (ou ainda epilepsia). Nestes casos, uma dieta “very low carb”, cetogênica, pode ter resultados superiores em termos de perda de peso, controle glicêmico, etc.

A questão de se uma dieta cetogênica é ou não adequada no longo prazo é muito debatida entre autores e especialistas. Há referências históricas de povos, como os Esquimós, que viviam em uma dieta de muito baixo carboidrato, durante toda a vida, com aparente boa saúde. Mas, em termos de estudos controlados, a segurança de dietas de muito baixo carboidrato está estabelecida por apenas cerca de dois a três anos. Em 2013, já escrevi sobre isso:

“E quanto ao benefício ao longo prazo? Ninguém sabe. Por que ninguém sabe? Porque, em virtude da desinformação e do preconceito, as entidades patrocinadoras deste tipo de estudo nunca incluíram um braço low carb nos seus grandes estudos prospectivos e randomizados de longa duração (como oWHI ou o MRFIT).
Assim, temos a seguinte situação:
Sabemos COM CERTEZA que low fat NÃO é bom no longo prazo (esta já foi testada em estudos prospectivos e randomizados e fracassou SEMPRE).
No contexto evolutivo, uma faz sentido e a outra não. Nos estudos de até 3 anos de duração, low carb é SEMPRE melhor no que diz respeito aos fatores de risco cardiovasculares, perda de peso, etc, em mais de 18 estudos prospectivos randomizados (veja aqui, e aqui).”

Assim, como recomendação geral, dietas “very low carb, very high fat” (muito baixo carboidrato e alta gordura) devem ser vistas como uma intervenção terapêutica útil em casos específicos, até que os objetivos sejam atingidos, quando então a estratégia low carb páleo poderá ser adotada. Tal recomendação (segurança de dietas de muito baixo carboidrato por até 2 anos) foi reconhecida oficialmente nas diretrizes nutricionais da suécia, e dietas de baixo carboidrato já são admitidas pela Associação Americana de Diabetes (ADA) como sendo uma alternativa válida.

No que diz respeito à resposta individual, é importante que fique claro que uma dieta de muito alta gordura, como é o caso das dietas cetogênicas, é uma intervenção terapêutica com potenciais efeitos adversos sobre o perfil lipídico.

A maioria das pessoas submetidas a dietas very low carb, high fat (VLCHF – muito baixo carboidrato, alta gordura) responde bem no que diz respeito aos objetivos terapêuticos (perda de peso, controle da glicemia, melhora da síndrome metabólica) sem paraefeitos significativos. Veja por exemplo este estudo de 2006 no qual 66 indivíduos obesos foram submetidos a uma dieta cetogênica com menos de 20g de carboidratos (VLCHF) por pouco mais de um ano:

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De uma forma geral, na média, os pacientes apresentaram melhora nos níveis de colesterol:

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Aumento do HDL e redução dos triglicerídeos:

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Redução do LDL e redução da glicemia:

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Além, é claro, de perda significativa de peso:

Com frequência, recebo feedback de leitores do blog que corroboram tais achados, o que muito me alegra:

 

Mas os gráficos acima são MÉDIAS, e os relatos acima são selecionados. De vez em quando, vemos relatos como o dessa leitora:

Veja, chamo atenção para alguns detalhes nessa narrativa:

  • A leitora refere que estava em uma dieta “cheia de gordura saturada”;
  • O LDL foi a 404, o que é absurdamente elevado e indicativo de alto risco cardiovascular (não confundir com pequenas alterações, que são irrelevantes);
  • A leitora MANTEVE-SE em uma dieta Low Carb, e apenas “diminuiu bastante o consumo de gordura saturada”;
  • 2 meses depois, “sem nenhum remédio”, o LDL caiu de 404 para 167.

E é isso que eu quero dizer quando falo de Reposta Individual. A maioria das pessoas pode responder bem, como mostram os gráficos do artigo e os primeiros dois depoimentos, mas isso de nada adianta para nossa leitora com 400 de LDL. Para ela, uma dieta VLCHF estava sendo uma intervenção altamente nociva.

Seria mais fácil se o mundo fosse mais simples e todos fôssemos clones, mas a realidade é complexa, e há nuances:

  • A expressão “perder o medo da gordura natural dos alimentos” não é sinônimo da afirmação “quantidades ilimitadas de gordura são inócuas”.

A realidade dos fatos é que estratégias como dietas VLCHF (dietas cetogênicas de alta gordura), com “fat bombs“, etc, podem ser uma estratégia válida, por tempo limitado, para pessoas que, em sua resposta individual, não apresentam grandes alterações em seu perfil lipídico (ou mesmo apresentam melhora do mesmo) – e idealmente deveria ser feito com acompanhamento médico, visto ser uma intervenção terapêutica (eficaz, como vimos, mas não isenta de potenciais efeitos adversos, como qualquer intervenção terapêutica eficaz).

O Hilton Sousa, do sempre interessante blog Paleodiário, traduziu um texto do Chris Gunnars, que eu sempre indico para pessoas que desenvolvem dislipidemia com LCHF, cuja leitura recomendo a todos. Reproduzo um pequeno trecho, abaixo, que se encaixa bem no contexto dessa postagem:

“(…) ainda que quantidades “normais” de alguma coisa sejam boas para você, isso não significa que quantidades maciças são melhores ainda. Todos os estudos mostrando que gordura saturada é inofensiva, usaram quantidades normais… isto é, quantidades que uma pessoa mediana consome.
Não há maneira de saber o que acontece se você começa a adicionar quantidades maciças de gordura saturada à sua dieta, especialmente se você a está comendo no lugar de oturas comidas mais nutritivas. Isto é certamente algo que os humanos não evoluíram fazendo.
Eu já ouvi relatos de médicos favoráveis a dietas low-carb (Doutores Spencer Nadolsky e Karl Nadolsky). Eles tiveram casos de pacientes praticantes de low-carb com níveis de colesterol muito aumentados, que normalizaram-se com a remoção do café com manteiga.”

Entenda: se você consome o café com manteiga (ou nata), sente-se bem, perdeu peso e seu perfil lipídico melhorou absurdamente (como nos primeiros dois casos que eu citei acima), O.K., em time que está ganhando não se mexe. Mas só porque o Joãozinho toma café com manteiga e tem LDL de 100 e HDL de 90 não significa que a Mariazinha, cujo LDL foi a 400, deva continuar fazendo a mesma coisa. O mundo não é justo. Uns podem, outros não.

Para os que leem inglês, recomendo DEMAIS a leitura desta postagem da nutricionista Low Carb americana Franziska Spritzler, na qual ela relata a sua experiência pessoal com dislipidemia severa provocada por dieta cetogênica VLCHF nela mesma, o que a obrigou a fazer uma dieta Low Carb com menos gordura e um pouco mais de carboidratos.

Entenda: não estamos falando de uma dieta Low Fat!! Já expliquei aqui no blog como low fat é desatroso. Estamos falando apenas de uma dieta low carb na qual não se foge da gordura natural dos alimentos, mas também não se força o consumo de mais gordura propositalmente. E, dentre as gorduras, opta-se mais por monoinsaturadas (azeite de oliva, nozes, castanhas, abacate) e poliinsaturadas (peixe, frutos do mar) do que saturadas de cadeia longa (carnes, queijo, manteiga).

Eu não preciso fazer isso. Joãozinho não precisa. Mas Franziska Spritzler e alguns de vocês leitores talvez precisem, se seus exames piorarem ao invés de melhorar.

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